A misericórdia em São Paulo
Lendo as atas da Câmara paulistana do início do século XVII podemos concluir que, em 1608, a Irmandade da Misericórdia possuía em São Paulo, além do hospital, uma igreja, "que servia de matriz para a vila, sendo por esse tempo o seu provedor o português Domingos Luis, o Carvoeiro".
Alguns pesquisadores discordam da existência de qualquer hospital no planalto até o século XVII, afirmando serem os padres jesuítas quem dispensavam atendimento aos doentes, brancos e índios. Quanto à Irmandade, dizem que "ela assistia aos doentes e pobres em suas moradas, casava e adotava órfãos, sepultava os indigentes, mandava dizer missas pelos irmãos falecidos, dava de comer aos pobres [...]"
De qualquer forma, ao abrir-se o século XVII, a confraria da Misericórdia possuía a sua igreja em São Paulo - a Igreja da Misericórdia, no largo do mesmo nome, junto à Rua Direita. Essa igreja foi demolida em meados de 1717, dando-se início, no mesmo local, à construção de uma outra, que ali permaneceu até 1888.
Convém lembrar que a Misericórdia teve sede em São Paulo antes que a própria Câmara, que só se fixou em 1619, depois de muito perambular, antes também da própria igreja possuir sua matriz na vila.
Em sermão pronunciado na Bahia, o padre Antonio Vieira proclamava:
"Melhor fora não haver na Misericórdia igreja, que não haver hospital: porque a imagem de Cristo que está na igreja é uma imagem morta, que não padece, porque a verdadeira imagem de Cristo são os pobres, que são imagens que padecem. Se não houver outro modo, converta-se a igreja em hospital, que Cristo será mui contente."
Como que ouvindo o polêmico pregador barroco, a Misericórdia passou, desde então, a preocupar-se com a criação do seu hospital. São Paulo não era mais uma pequena comunidade: as descobertas dos bandeirantes no sertão haviam gerado um novo ciclo econômico, fundamentado na mineração: em 1709, a vila se transformava na sede da capitania de São Paulo e Minas, em 1711, recebe o título de cidade e, por volta de 1745, é criado o bispado de São Paulo. Aumenta a população com a chegada de aventureiros, de funcionários burocratas e de soldados.
Fazem parte da Misericórdia paulistas enriquecidos nas Minas, como José Góes de Morais e Matias Rodrigues da Silva, integrantes da reunião que, em 24 de abri de 1715, decide a criação do hospital da irmandade. Na ata da reunião se pode ler:
"[...] e por cada um e todos juntos, assentaram e concordaram que na Santa Casa de Misericórdia houvesse hospital para sempre, para remédio e futuro dos mais pobres e indigentes, como, com efeito, se deu princípio logo pondo camas e recolhendo-se, neste mesmo dia acima declarado, uma mulher pobre com um braço podre, para tratar do seu remédio [...]".
O hospital que deve ter funcionado ao lado da Igreja da Misericórdia, por volta de 1800 já havia desaparecido. Diante das dificuldades econômicas, a Irmandade passara, a partir de 1774, a encaminhar os doentes necessitados para o Hospital Militar, respondendo pelos pagamentos das despesas.
Em 1824, é adquirida a Chácara dos Ingleses, na Rua da Glória, local em que, dois anos mais tarde, seria inaugurado o novo Hospital da Santa Casa. O viajante Kidder, chegado nesse tempo a São Paulo pelo Caminho do Mar, descreve o Hospital da Misericórdia como "lindamente colocado fora da cidade, num lugar descampado".
Data dessa época, mais ou menos, a instalação na Santa Casa do atendimento às crianças abandonadas, a chamada "roda". Recém-nascidos eram abandonados aos cuidados da Irmandade, que lhes dedicava todo o cuidado - o aleitamento era feito por amas contratadas, em geral índias, moradoras de Santo Amaro, que recebiam de dois a cinco mil réis mensais pelo serviço. As crianças ficavam sob custódia da Santa Casa até alcançar a maioridade, recebendo educação e preparo profissional. A "roda" funcionou em São Paulo até 1950.
A capital paulista se transformou de antigo burgo de estudantes em cidade de fazendeiros e metrópole do café. A população duplicara e se constitua agora de 50% de estrangeiros. O pequeno Hospital da Rua da Glória não comportava as solicitações. Em 1875, Caetano de Campos, o único médico da Santa Casa, registra: "chega a inspirar terror a pobreza da terra paulistana". E é por sua insistência que o pequeno hospital é reformado internamente, passando a contar com a ajuda de cinco irmãs de caridade, da Ordem de São José, vindas especialmente da França. Caetano de Campos reclama por mais espaço e por mais médicos, "pois era obrigado a incomodar colegas quando tinha de operar".
Em 1878, o comerciante português Antonio José Leite Braga, irmão da Misericórdia, oferece à corporação um terreno de sua propriedade, no Morro do Bixiga, para que fosse edificado um novo hospital. Sobre essa doação se fundamentou o processo de concorrência pública para o erguimento da nova sede e D. Pedro II comparece à cerimônia de lançamento da pedra fundamental, acompanhado de Dona Thereza Christina.
Em 1880, uma nova oferta surpreende a Mesa Diretora da Santa Casa: o coronel Rafael Tobias de Barros colocou à disposição da entidade um terreno no Arouche, parte da antiga chácara do Dr. Rêgo Freitas, avaliada em 40 contos de réis. As obras seriam consideravelmente barateadas se fossem executadas no Arouche, já que o terreno do Bixiga exigia movimentação de aterro. O Jornal A Província, de 31 de dezembro de 1880, noticia a opção unânime pela oferta de Tobias de Barros, em reunião em que votaram 48 irmãos.
Depois de muitas dificuldades e sucessivas campanhas de fundos, o novo hospital foi aberto a 31 de agosto de 1884, mediante a transferência de 101 pacientes adultos e 36 crianças. Nenhuma comemoração foi programada, para não chamar a atenção do Imperador, que presidira o lançamento da pedra fundamental do hospital...em outro lugar.
O projeto da nova sede é de autoria de Luís Pucci, autor também do Museu do Ipiranga. Em 1879, o arquiteto justifica a adoção do estilo gótico, que marca a obra "pela sua gravidade e por ser mais econômico e de fácil construção".
Com a finalidade de quitar débitos pendentes, a Mesa da Misericórdia, em 1885, solicitou ao bispado a devida autorização para exumar os ossos do antigo cemitério da Rua da Glória e dos Lázaros, profanando os terrenos para poder vendê-los. Idêntica providência foi tomada em relação à Igreja de Misericórdia, que, transferida para o hospital, teve seu terreno profanado.
Em 1899, São Paulo padece da peste bubônica. Mais de 200 doentes são atendidos pela Santa Casa de Misericórdia a cada mês, estimando-se o movimento anual de 2500 pessoas.
Na virada do século, a Misericórdia mantém, além do hospital, o Externato Santa Cecília, com 160 alunas, o Asilo da Mendicidade com cem residentes, o Externato São José, com 594 alunos, o Hospital de Lázaro e a Roda de expostos, que recolhia aproximadamente 85 enjeitados por ano.
Em 1900, a Santa Casa apela para os poderes públicos, mais exatamente para o governo do Estado de São Paulo:
"Vê-se que a cargo da Santa Casa de Misericórdia está quase todo o serviço de assistência pública em São Paulo, a não ser os estabelecimentos de ensino subsidiados pelo Estado e alguns hospitais particulares, são os nossos institutos os únicos que socorrem a primeira infância abandonada, a velhice desamparada e os doentes pobres, sem a menor discriminação de cor, de classe ou de crença".
Três anos apenas e, não obstante todas as necessidades, sob os auspícios do Estado, abre-se na Santa Casa a Escola Médica, futura Faculdade de Medicina da USP, com sede provisória na Escola de Comércio Álvares Penteado e aulas teóricas na Escola Politécnica.
Em 1915, as várias cadeiras da clínica começam a funcionar no Hospital Central da Santa Casa e ali permanecem até 1945. O diretor da Escola de Médica era o mesmo da Santa Casa, o Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho.
Em 1915, deram entrada no Hospital Central 6603 doentes, com uma média diária de atendimento de 988 pessoas. O pico foi de 1059 doentes/dia, com índice de mortalidade equivalente a 4,9%.
Quando a gripe espanhola de 1918 chegou a São Paulo, espalhou-se o terror. Basta dizer que 75% do corpo clínico e administrativo da Santa Casa adoeceram. Apesar disso, foram atendidos e medicados 1042 casos de gripe, com 838 altas e 161 óbitos. Duas enfermeiras-irmãs e um médico, Theodoro Bayma, faleceram da moléstia.
Hospital paulistano por excelência, a Santa Casa sempre atendeu a cidade em momentos de necessidade. Durante a Revolução de 1924, por exemplo, foi transformada, de 5 a 30 de julho, em Hospital de Emergência. No bombardeio da cidade, morreram ali 503 pessoas e 4864 obtiveram tratamento. Para atender os feridos, a Santa Casa transferiu 318 pacientes das clínicas médicas para o Santuário do Coração de Maria, Colégio Sion e Externato Santa Cecília.
Liberaram-se, assim, nove enfermarias masculinas, duas femininas e uma de crianças para as vítimas da Revolução. O salão nobre da Santa Casa foi transformado em dormitório para o corpo clínico e estudantes de medicina, que a todo instante eram solicitados. O hospital, que dispunha de lenha para apenas três dias e alimento para oito, teve que usar de meios extraordinários para conseguir mais combustível e mantimentos, já que os fornecedores fecharam as suas portas, com exceção daqueles que o proviam de pão, leite, galinha e ovos.
Em 1932, durante a Revolução Constitucionalista, o Hospital Central também foi requisitado, ficando a disposição da segunda Região Militar "para ser aproveitado, se necessário, em ocasião oportuna". Ali foram internados 1273 soldados. O último boletim médico registrou 359 doentes e 19 falecimentos. Pedro Ayres Neto, então diretor clínico da Santa Casa, em seu relatório ao provedor Pádua Salles registra: "A Santa Casa não faltou ao seu dever, honrando sua tradição, não traindo a confiança que nos seus serviços sempre depositou o povo de São Paulo".
Capítulo à parte na história da Revolução Constitucionalista foi a Campanha do Ouro pelo bem do Brasil. Nas vésperas da ocupação militar da cidade e perdidas todas as esperanças de resistência, a Comissão do Ouro legou à Santa Casa o que restava dos donativos recebidos, "livrando-os, assim, de possíveis e até prováveis tentativas de apropriação". Do saldo que lhe coube, a Irmandade mandou erguer um prédio de 12 andares cuja fachada lembra a bandeira paulista. Os rendimentos deste imóvel do Largo da Misericórdia ainda hoje revertem aos cofres da entidade.
Em 1940, São Paulo tem 200.090 fábricas onde trabalham 440 mil operários; em suas oito mil ruas existem 36 mil casas comerciais e trafegam cerca de 150 mil veículos. A cada ano cresce o equivalente a uma cidade de 500 mil habitantes. A mortalidade infantil, a desnutrição e o raquitismo atingem índices altíssimos. A Santa Casa se prepara para servir essa cidade. A administração do provedor José Cássio Macedo Soares, que duraria 11 anos, se dedicara a transformar, ampliar e atualizar os serviços da entidade; para tanto busca recursos na melhor administração dos bens imobiliários da Santa Casa.
Em 1946, os rendimentos imobiliários somavam seis milhões; em 1958, passaram a 51 milhões. Em 1954, quando São Paulo comemorava o seu IV Centenário, a Santa Casa registra 887.473 leitos/dia ocupados, número que não parou mais de crescer, à medida que a cidade se firma como pólo industrial. A última grande ampliação do Hospital deu-se em 1978, com a criação do Pavilhão da Imagem, um moderno edifício de forma circular.
A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo permanece na Vila Buarque, em um prédio de tijolos aparentes, cercado por edifícios, ocupando todo um quarteirão, abrigando, ali, um dos museus mais bonitos de São Paulo e um rico acervo de registros históricos.