Atravessar a rua é perigo de morte.
No espelho da loja de roupas me vi ali, parada. Mais do que nunca, senti a vontade de me conhecer. Contraditoriamente nunca me reconheci tão bem como naquele momento. Eu era, por fora, o espelho perfeito do que eu fui todos estes anos por dentro. Você certamente saberia me diferenciar pelos fios de cabelo peculiarmente azuis, mas havia algo naquele reflexo que expunha minha alma de um modo quase gritante. O inverno acabara de chegar e eu estava sozinha em uma loja comprando moletons. Terrivelmente horrorosos, e um ou dois números maiores do que o meu. Fico pensando no que se passava pela mente da minha vendedora. “Essa garota não devia sair sozinha, não deviam deixá-la usar este cabelo muito menos eu deveria vender uma roupa maior do que seu ego deve ser”. Mas era a minha cara ser assim. Quem disse que eu me deixaria sentir sua falta nesse inverno? Quem disse? No primeiro sinal de lembranças voando por minha mente sobre como eu poderia estar quente no seu... E essa era eu tentando afugentar qualquer uma dessas lembranças. Se eu sentisse frio, lá estaria meu horroroso e incrivelmente confortável moleton. Me abraçando, me esquentando... Pá! Minha sacola de compras bate em alguém. Me viro, me desculpo. Continuo a andar. “Quem disse que vou sentir sua falta? Eu tenho um moleton maior que o nosso passado, cara”.
Podia jurar que algo mudou o tempo num piscar de segundos. Ah, meu amor. Era você ali do outro lado da calçada. Era você ali do outro lado da minha vida.
O pior é que aquela situação também era a minha cara.
Comprando agasalho pra tentar esquentar o frio no coração. (...) Era você ali do outro lado da calçada. Atravessar a rua é perigo de morte.