HOLOCAUSTO NUNCA MAIS (PSICity) ROTEIRO DE CINEMA (3ª REDAÇÃO) 20

235. EXT. SOL DE OCASO. PRAIA DO COQUEIRO. LITORAL PIAUIENSE — DIA/NOITE.

(TAUIL e ROSSI LEE curtem a paisagem deserta)

ADRIANE TAUIL

(em tom de comentário)

Tenho de ficar colada em você todo tempo. Tenho a sensação de que se ficar longe de ti, se você sair de meu campo de visão um único momento, nunca mais te verei. Fico aterrorizada só de pensar ficar sozinha nesse mundo. Seria uma solidão insuportável. Um medo insuportável. Uma sensação invencível de desamparo. Abandono.

ROSSI LEE

(acalmando-a)

Solidão não é estar sozinho. É estar inadequadamente acompanhado. Se estás sozinha contigo e gostas de ti e de tua companhia, então todos os seres do universo paralelo da memória te fazem companhia. Como poderias te sentir sozinha?

ADRIANE

(aquiescendo)

Sei, PERIMURICÁ está presente, sempre. Depois de todo esse tempo deve ter também morrido. Mas está aqui.

ROSSI LEE

(com humor)

Aquele CHE GUEVARA fim dos tempos (risos). Ele dizia que a vida tinha um propósito. Ele lutaria para libertar os “hots” aprisionados nas enxovias dos “pigs”. (Risos, gargalhadas).

ROSSI LEE

(ainda sorrindo)

“A matéria é mesmo feita de sonhos”.

236. INT./EXT. CHALÉ NA PRAIA DE ITATINGA. MARANHÃO — DIA

(Ao caminhar pela praia, o casal adâmico não mais se incomoda com a companhia daquelas pessoas dos séculos XVIII e XIX, transeuntes fantasmais aleatórios. Por vezes são vistos rapidamente quando estão em ambientes tipos museus históricos. Esse, afinal, é também o mundo deles. De alguma forma aqueles habitantes ainda estão por lá).

237. INT./EXT. CASARÃO EM ALCÂNTARA. MARANHÃO — NOITE

(O casal adâmico está sentado ao redor de uma mesa antiga num casarão colonial de portas e janelas azuis. Um candeeiro ilumina a sala com suas sombras de antigamente. De repente, como se vindos de um universo paralelo apareceram convivas. Agora, inexplicavelmente, estavam apreciando cenas de um casamento do século XVIII. As pessoas com seus costumes de há quatro séculos, rodeavam-nos como se fazendo festa. A mostrar-lhes que ainda não haviam, de todo, abandonado aquele lugar fixo, quieto no tempo. Passado).

238. EXT. TERRAÇO TURÍSTICO. CRISTO REDENTOR. NOITE. RIO DE JANEIRO — NOITE

(O casal adâmico, idoso, mas incrivelmente energizado, olha a paisagem do alto a se descortinar frente à estátua onde aparecem, ao longe, o Pão de Açúcar e parte da baía da Guanabara. A desolação ao redor é simplesmente irreversível. A sensação de uma solidão sobrenatural irradia-se das paisagens. Uma TV insiste em transmitir, via Ghost-Canal, imagens da ascensão e queda do III Reich, entremeadas com cenas dramáticas de prisioneiros dos campos de concentração. Imagens que fazem contraponto com as da enxovias nos subterrâneos do “SPA” no Ibirapuera).

239. EXT. PRAIA DA TRINDADE. PORTAL DE TRINDADE. PARATY. ESTADO DO RIO — DIA

(O casal adâmico caminha pelas areias da praia. A câmara focaliza o local muito do alto, como se numa foto de satélite. Vai se aproximando aos poucos até tornar nítida a paisagem. Ao se avizinhar da praia, aos poucos focaliza em plano geral os passos do casal. ADRIANE sente os dedos de ROSSI LEE a apalpar sua mão. O cabelo longo como se de um hippie. Ela veste um vestido comprido, meio transparente, com motivos florais).

ADRIANE TAUIL

(solicitando)

Diga o que você quer, querido, diga!

ROSSI LEE

(insistente)

Quero que você prometa uma coisa! Por favor, diga que sim!

ADRIANE TAUIL

(intercalando-se)

Sim, claro que sim. Como poderia negar-lhe o que quer que fosse? “O que ele poderá querer?” — E logo protesta: “Não, não prometo nada! Só faltava! Ser a última mulher da Terra e fazer promessas!”

ROSSI LEE

(interrompendo-se)

Por quê...

ADRIANE TAUIL

(interrogando)

O quê? Que você disse?

ROSSI LEE

(insistente)

Uma única vezinha, umazinha, você não faz alguma coisa sem reclamar?

ADRIANE TAUIL

(repetitiva)

Diga, é só dizer, eu farei tudo, qualquer coisa... Prometo!

ROSSI LEE

(buscando aprovação)

Mesmo? Jura?

ADRIANE TAUIL

(condescendente)

Garanto. Qualquer coisa! O que é?

ROSSI LEE

(voz afirmativa)

Nunca fale com anjos! Nunca mesmo!! Não podemos nos arriscar a começar tudo de novo!!!

ADRIANE TAUIL

(com ironia)

Anjos! Ora!! Anjos!!! Anjos de natureza vegetal? Anjo lagarto, ave, serpente? — Ela, uma idosa cheia de manias, defesas e narcisismos atávicos, estranha a rabugice do companheiro.

ROSSI LEE

(com insistência)

Jure! Por favor!! Jure!!! — “Nos dias de seus pais costumavam dizer das mulheres que sabiam contar até seis porque não havia fogão de sete bocas”. — E eles riam disso. Riam disso. “Riam disso”, repete ele.

ADRIANE TAUIL

(interrogativa)

Não ouvi direito. Que você disse?

ROSSI LEE

(balbuciando)

“Se depreciavam as mulheres assim, imagina o resto do mundo”!

ADRIANE TAUIL

(acusativa)

Você está falando sozinho outra vez!

ROSSI LEE

(suplicante)

Nunca fale com anjos. Você promete mesmo?

ADRIANE TAUIL

(afirmativa)

Sim! Claro!! Prometo!!!

ROSSI LEE

(peremptório)

Não aceite nada deles. Não faça promessas com eles!

ADRIANE TAUIL

(afirmativa)

Nada mesmo! Nenhuma promessa!! Juro!!! Por Deus. Pare com isso, querido! — Anjos!!! — “Ele está ficando bobo! Como se pudesse alguma coisa com anjos!” — Nunca vi nenhum anjo a vida inteira. Exceto quando toda a gente habitava essa terra.

ROSSI LEE

(afirmativo)

Eles não virão dessa vez!

ADRIANE TAUIL

(explicativa)

Somos o último casal da Terra. Não precisas ficar caducando! Você não tem o direito de prescrever-se. — Ou tem?

ROSSI LEE

(indagativo)

Quê? Querida, ser o último tudo bem, mas começar tudo de novo? Nunca! Tanto horror!! Todo aquele horror!!! Não, não quero ser essa espécie de criminoso temerário. Nunca mesmo!!!.

ADRIANE TAUIL

(justificando-se)

Não haverá nada demais se aparecer um anjo. Eu descarto as pretensões dele. Acredite!!! Coisas da Bíblia. Ora essa! Quem sabe? — A mulher olha para os lados e para cima girando-se em volta de si mesma.

ROSSI LEE

(intenso)

Vozcêeeeehussushlksklçsjhfheum. Drysysykjshmsisdjkshosse.

(O zumbido soou nítido na tradução de seu significado na mente da mulher):

“Não quero ser nenhum instrumento biologicamente virtual de nenhum Deus ex-machina disposto a me usar para começar tudo de novo”.

240. EXT. SALÃO FECHADO DE HOTEL HÁ MUITO ABANDONADO. CIDADE DE PARINTINS. AMAZÔNIA — DIA

(O casal adâmico, sorrir de inexplicável felicidade. Estão contentes e se preparam para ingerir uma beberagem de vinho com uma porção de outra bebida que eles puseram nas taças. Eles ingerem o conteúdo delas, e se abraçam com uma indescritível ternura).

(Algum tempo depois eles começam a viver uma experiência fenomenal delirante. Eles sentem que se afastam da Terra a grande velocidade em direção ao horizonte. Vencendo distâncias numa rapidez impressionante. Ultrapassam terras, rios, vales, pântanos, cidades, cânions, cadeias de montanhas, paisagens desérticas e geladas... Até chegarem à linha do horizonte planetário. Numa velocidade de escape, o foco evade-se do planeta, entra na esfera externa do sistema solar. Passam rapidamente por planetas, luas, asteroides, em direção ao vácuo. Vencem distâncias infinitas, passando por sistemas solares de beleza inusitadas, estrelas, galáxias. Sempre em direção alhures).

241. INT./EXT. — DIA/NOITE

(A “TV-Ghost” exibe cenas do documentário ficcional “O Mundo Sem Ninguém”).

242. INT./EXT. NAVE — DIA/NOITE

(Starnautas caminham para fora da starnave acompanhados por centenas de milhares de exemplares da espécie Homo sapiens/demens).

(Os milhares de exemplares de indivíduos da espécie Homo sapiens/demens são tangidos para fora de uma grande nave mãe em direção à superfície selvagem de um planeta desconhecido. Entre eles estão militares das três armas, representantes dos Três Poderes vestidos à caráter. Roqueiros, concertistas famosos, tenistas, atores, cantores, atrizes, diretores de cinema, atores famosos da Broadway e de Hollywood, escritores, jornalistas. Veem-se os principais atores e atrizes da série LOST, e de outras, modistas, modelos, paparazzi, religiosos, homens, mulheres, crianças).

243. INT./EXT. NAVE — DIA

(Todos desembarcam como se estivessem meio que drogados, desde que nenhum deles mostra resistência. Apenas caminham passivamente em direção aos redutos de rocha maciça onde se encontram milhares de cavernas desabitadas para as quais se dirigem como se elas fossem suas únicas possibilidades de abrigo. (Em “off” ouve-se a trilha musical da canção da banda Titãs denominada “Vossa Excelência”).

244. EXT. GRANDE ÁREA DE TERRA DE CAPIM BAIXO COMO SE DESTINADA À PASTAGEM — NOITE.

Uma adolescente vestida de noiva destaca-se do grande aglomerado de pessoas. Ao se vê sozinha agacha-se em meio à vegetação para fazer necessidades fisiológicas. Enquanto seu olhar fixa uma estrela muito brilhante próxima a uma das duas luas do planeta. A estrela brilha numa constelação até então desconhecida em meio a outras constelações. Nesse lugar e nesse céu completamente estranhos.

245. INT. CAVERNAS — NOITE

(O tempo passou. As pessoas com suas vestes desgastadas pelo uso sem substituição das roupas demasiado desgastadas. Começam a disputar restos de caixas de biscoitos e sopas que são aquecidas primitivamente numa fogueira coletiva. Alimentos esses tirados de caixotes quando desembarcados da nave mãe. O monte de lenha em chamas foi aceso com um isqueiro tirado do bolso de um senhor vestido à “Black-tie”. Mas o isqueiro não acende mais.

246. INT./EXT. CAVERNAS — DIA

(Um grupo de sobreviventes que regrediram à condição de hominídeos começa a grunhir em direção a outro grupo. Ambos os grupos parecem se hostilizar na disputa de um lugar próximo a uma fonte de água aonde se encontram a beber alguns animais primitivos. Eles não ousam se atacar mutuamente tementes de despertarem a atenção das feras que bebem água na lagoa pouco extensa. As pessoas agora parecem ter regressado à condição pré-histórica de habitantes de cavernas, com um nível tecnológico, social e mental próximo à condição original dos primeiros hominídeos).

247. INT./EXT. CAVERNAS — DIA/NOITE

(Um grupo familiar primitivo mostra-se muito apreensivo ao ouvir os ruídos pesados dos pés e os sons guturais de gargantas ferozes que rondam o espaço exterior da caverna).

(Vestidos de trapos e precariamente encolhidos no colo de algumas mães, crianças sujas buscam se abrigar, os olhos arregalados de temor. Um homem peludo a quem outros grunhem um nome audível como algo parecido com Peluso, vai até um cantão da caverna onde começa a escavar com as mãos em busca de algo).

(Ele acha uma pistola que havia trazido ao desembarcar da “starnave”. Ele a aponta em direção à entrada da caverna. Nela aparece a cabeça de um espécime que parece um Tiranossauro Rex. Ele aponta a arma e, assombrado com a cabeçorra do animal, puxa o gatilho em sua direção. As poderosas mandíbulas com dentes aguçados de 18 cm numa cabeça com um metro e meio de comprimento não se abala em nada com os tiros. Estendendo o enorme pescoço a fera aproxima-se abrindo ameaçadoramente a bocarra diante do grupo indefeso de frente a essa ameaça tão poderosa. Mas a fera não tem condições de penetrar pela estreita entrada da caverna).

248. EXT. DA CAVERNA. UM SOL DIVERSO INTENSO DE TONALIDADE ALARANJADA CHAMEJA A RUTILAR NO HORIZONTE LUMINOSO E MUITO DISTANTE — DIA

(Um dos homens da caverna abre os braços e gira volteando em torno de seu próprio corpo num movimento de 360°. A luminosidade solar do lugar incendeia o écran. O homem fala para si mesmo como se falasse através dele O Espírito: shiiixzzjontyhhshszc! E continua a repetir esses sons alveolares e fricativos).

249. EXT. DA CAVERNA. UM SOL DIVERSO DO SOL DA TERRA, INTENSO E LARANJA, CHAMEJA A RUTILAR NO HORIZONTE LUMINOSO E MUITO DISTANTE — DIA

HOMINÍDEO SAPIENS/DEMENS

(a girar com as palmas das mãos coladas nas orelhas)

Hiwhkwhmsoryssshissgurrthreilhasahinsthihaj! — Uma voz interna traduz os sons fricativos:

“Pereçam os dias com seus reis burgueses, seus conselheiros criados e cativos em demasia. Todos escravos! Todos servos fieis! Raça de cães construtores de necrópoles! Eu os criei para ser homens, mas vocês precisam ser servis! És Espírito e estou a falar contigo! Estás aqui comigo! Agora! Sempre! Tua jornada será novamente longa! Este fim...Outra vez... Origem. Esta Escolha. Tua. A opção de quem não sabe o que faz! Este, teu livre arbítrio! Segundo Tua Vontade!!!”.

250. EXT./INT. CAVERNA — NOITE

(Um hominídeo seminu, esfarrapado, parado na paisagem desolada do planeta desconhecido, tendo o vento e a poeira como companhias próximas, vê um chapéu preto de abas largas, levado pela ventania. O chapéu fica preso numa espécie de cacto espinhoso, com galhos torcidos em forma de coroas de espinhos. O vento ameaça levá-lo para longe. Ele pisa depressa na aba do largo chapéu preto. Levanta-o até a altura do umbigo e olha para dentro da copa onde está presa uma das coroas de espinho do cactus).

251. INT. CAVERNA — NOITE

(O mesmo hominídeo em franca regressão psicossomática ajoelha-se em frente à Rocha da Caverna e parece orar. Enquanto ao redor da cabeça pingos de sangue descem em fios frente à testa. Ele repete sons inteligíveis (enquanto balança o tronco para a frente e para trás, num gesto a demonstrar certa patologia atávica).

252. EXT. CAVERNA — NOITE

— FossssisisisisilllllllshekestrWoWynsnsnllonansn:

No écran aparecem as frases traduzidas dos sons fricativos do hominídeo: “Essa solidão e essa angústia de não me pertencer senão a mim. A dominação de meus desejos. Não preciso me culpar nem a ninguém por existir”. — (Ele repete essas orações como se fossem as únicas que conhece).

253. INT./EXT. CAVERNA — NOITE

(O personagem ajoelhado em suposta oração, o tronco deslocando-se em efêmeros movimentos para frente e para trás. O chapéu de abas largas está em frangalhos. A testa sangra quando, por vezes, roça na parede de pedra da caverna).

254. INT./EXT. CAVERNA — DIA/NOITE

(O hominídeo é mostrado em distanciamento cada vez mais intenso. O espaço no interior da rocha vai ficando menor. Até que a enorme estrutura de pedra se mostra a partir do exterior. Ela se expõe como sendo um grande edifício de apartamentos em ruínas).

255. EXT. CAVERNA. PAISAGEM PRIMITIVA — DIA/NOITE

(A paisagem vai ficando menor. A distância cada vez maior, mais e mais longínqua do lugar primitivo permite, afinal, que se visualize esse gradativo distanciamento à altura da estratosfera. Ao longe, muito longe, é possível visualizar as configurações geográficas do planeta Terra).

FADE OUT

(The End)

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 15/05/2013
Reeditado em 15/06/2013
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