HOLOCAUSTO NUNCA MAIS (PSICity) ROTEIRO DE CINEMA (3ª REDAÇÃO) 9
PAULO CHENKO
(ponderativo)
O pessoal de rua hoje está injuriado, SILVIANA, você está vendo aí. Vamos falar com a KÁTIA ANTONELLE, ela é modelo e já desfilou em muitas passarelas mundo afora, não é KÁTY? Vais investir em mais um filho?
KÁTIA ANTONELLE
(cheia de charme)
Deus me livre e guarde! Para ele nascer viciado com o nariz entupido de farinha? Benza Deus!
101. INT. AUDITÓRIO DO PROGRAMA VESPERAL DA SILVIANA — DIA
SILVIANA DE BAND
(conduz um dedo ao ouvido apurando a atenção no ponto eletrônico na cavidade da audição esquerda)
Pelo que estou ouvindo aqui no ponto de escuta eletrônica, há uma “sugestão” para que hoje não haja mais entrevistas de rua. Agora o programa vai seguir daqui tão somente do auditório. A rua está suspensa, pessoal, até segunda ordem. É isso, gente, fazer o quê? Estava divertido. Mas tem gente aí com poder de decisão que não gosta. De patrão, não se pode reclamar. Pessoal (falando com a plateia) estamos por nossa conta.
Vamos torcer para que não terminem com o programa antes das conclusões finais dos entrevistados. Eu não vou falar em censura, por que essa coisa de censura, dizem que já acabou. Estamos vendo que não é bem assim. Não é mesmo?
DR. LAIRMOONEY, o senhor acredita que há uma chance, ainda que remota, de ser descoberta uma vacina contra o vírus da “amblose disforme”? Isso ainda pode acontecer? Ou esse vírus saiu vencedor na luta contra a espécie humana? Crianças não vão mais nascer, ou pode ser apenas uma epidemia de passagem?
DR. TARQUESH LAIRMOONEY
(em tom sincero e definitivo)
Veja você, o HIV original surgiu na década de 30 do século passado, foi descoberto décadas depois. E a vacina contra ele originou algumas mutações ainda mais mortais do mesmo no século XXI. Uma vacina não seria descoberta a tempo de sustar o surto da epidemia do vírus da “amblose disforme”. Seria necessário muito mais tempo de pesquisa. E nós não temos esse tempo.
(Houve um murmúrio de desesperança que surgiu na plateia e ecoou em todos os corações. O constrangimento foi geral e avassalador. Os espectadores de casa somaram-se à intensa comoção que essas palavras foram capazes de gerar).
SILVIANA DE BAND
(voz embargada, pronúncia hesitante)
Quem nanasceu, nanasceu, quem não nasceu não nasce mais. É isso o que o sensenhor quer dizer, nãnanão é mesmo?
DR. TARQUESH LAIRMOONEY
(convincente e peremptório)
Acredito que por volta do ano 2200, se tanto, não haverá mais nenhum ser da espécie Homo sapiens/demens sobrevivente sobre a superfície do planeta. Incluindo aqueles de prolongada longevidade.
(Após calar por alguns momentos, causando intenso suspense na plateia traumatizada pela revelação impressionante, DR. LAIRMOONEY, como que pesando bem as palavras, continuou).
DR. TARQUESH LAIRMOONEY
(numa tonalidade compassiva, carregada, talvez, de inusitada ternura)
Vamos ter de nos habituar a essa ideia. Conviver com ela. Redirecionar os objetivos de nossa espécie para adaptá-la às consequências desse trágico evento. Utilizar os recursos que nossa espécie acumulou, riquezas e bens materiais, conquistas tecnológicas e serviços para que possamos conviver pacificamente, além dos paradigmas dos conflitos políticos, sociais e econômicos através dos quais cresceu a nossa espécie.
SILVIANA DE BAND
(inconformada e contida)
A humanidade vai mesmo acabar por falta de descendência? — a pergunta de SILVIANA gerou uma ansiedade ainda mais superlativa.
DR. TARQUESH LAIRMOONEY
(com voz absorvente, impetuosa e veemente)
Sou um homem de ciência..! Mas tenho de reconhecer que a “amblose disforme” é um fenômeno bioquímico absolutamente estranho, beirando o sobrenatural... Para o qual a pesquisa científica não teve resposta adequada. Não há esperança de cura. Não que não pudesse ser, um dia, curado, mas porque não há tempo para levar adiante as pesquisas laboratoriais. Mesmo considerando a imensa gama de recursos tecnológicos de que atualmente dispomos.
Considerando-se o ritmo de desdobramento da epidemia, é possível que em 2090 não haja uma única mulher em condição gestante.
(Um silêncio intenso ecoou num oceano de impressionante pasmo, mistura de êxtase e sentimento do mundo profundo e indizível. Perplexidade!).
SILVIANA DE BAND
(reunindo forças para parecer adaptada à nova situação planetária. Desejando parecer verossímil em uma postura de aceitação dessa realidade assombrosa, com certa mínima dignidade).
Desculpem se eu não posso parecer normal como gostaria. Mas DR. TARQUESH, o senhor está autorizado a falar essas coisas? Fazer essas revelações. As agências governamentais que o senhor representa lhe deram autorização para isso?
DR. TARQUESH LAIRMOONEY
(peremptório)
Nenhuma agência governamental tem jurisdição sobre a verdade! O sol continua a brilhar, mesmo quando encoberto pelo eclipse. Por que eu haveria de sonegar essas informações de vocês? Vocês são mais importantes do que as vontades e os interesses de meia dúzia de cafajestes cheios de poder econômico e político, que sempre lhes sonegaram investimentos e informações. Nesse momento crítico, por que eu haveria de continuar fazendo esse jogo de cartas marcadas? Vocês não merecem saber o quanto antes o que vai lhes acontecer enquanto espécie?
(Emocionados, os participantes de auditório do programa Vesperal da SILVIANA aplaudem as palavras do “DR. T” como passou a ser conhecido mundialmente o DR. TARQUESH).
DR. TARQUESH LAIR MOONEY
(despedindo-se da plateia e do público brasileiro e globalizado pela necessidade de informações pertinentes à nova condição da espécie humana).
Denis Diderot, enciclopedista francês e filósofo iluminista, dizia que “nascemos todos de uma descendência sempre disposta a nos prejudicar e nos fazer mal”. Com o advento da “amblose disforme” acredito que essa descendência atingiu sua finalidade limite. Sinto-me motivado a afirmar que ele tinha razão, hoje, mais do que no século XVIII, quando mencionou essas palavras. Muito obrigado pela oportunidade de estar aqui com vocês despido de toda pompa que esses títulos de pós-graduação aparentemente sinônimos de saber superior, mas, realmente, metáfora de um conhecimento sem nenhum valor pertinente que pudesse superar essa condição de impotência e impostura de nossa tecnologia que se quer tão avançada.
Mito obrigado pela oportunidade de dizer essas coisas de livre e espontânea vontade, sem ter de botar panos quentes na verdade.
102) INT./EXT. CARROS. RUAS, PRAIAS. AVENIDAS — DIA
(A família de HELIO entra no carro. Eles estão sob o efeito hipnótico do discurso profético, religioso, do Pastor MCKENZIE).
CARLA
(em off)
As PESSOAS, todas as PESSOAS, transformadas em tropas de choque de SATÃ. Em todos os lugares do planeta. Milhares de milênios de suposta evolução e o Homo sapiens/demens continua pastando no mesmo lugar mental primitivo. Neolítico.
(Os pensamentos de CARLA parecem ecoar nas mentes de seus familiares PAI, MÃE, IRMÃO. Eles olham-se de soslaio. Faz-se presente certo ressentimento. Mútuo).
103) INT. QUARTO. APARTAMENTO — DIA
As DOMÉSTICAS que fazem a limpeza no quarto de SABRINA levam as mãos aos ouvidos. Ato contínuo: saem do quarto apressadamente.
104) INT. APARTAMENTO. SALA DE JANTAR — DIA
(Crianças sintonizam a TV no “Canal-10”. A BABÁ reclama, amuada, de que estava a assistir a programação da Record, onde um trio de apresentadores troca prosa e banalidades sobre amenidades de personagens famosos, tipo: “FULANA foi vista com BELTRANO na festa de casamento do casal SICRANO”).
(A DOMÉSTICA que havia saído do quarto de SABRINA estranha a mudança de canal para o Canal-10 sem que o controle remoto fosse acionado).
(As crianças parecem conversar entre si sem pronunciar uma única palavra. Elas esboçam apenas um quase imperceptível mover de cantos das bocas, enquanto olham o “filme do dia” na “TV-Ghost”).
105) INT. SALAS DE ESTAR. QUARTOS DE MOTEIS, PADARIAS, BARES. LOCAIS ONDE HÁ UMA TV PÚBLICA OU PRIVADA — DIA/NOITE
(A câmera focaliza a decepção das PESSOAS. Elas tentam inutilmente mudar de canal, sintonizar em programas que costumam visualizar. Não conseguem. Nos monitores de TV aparecem apenas os chuviscos eletrônicos. O único canal de TV que conseguem sintonizar, por vezes, é o canal-10. E seus filmes “full-time”).
(PESSOAS leem os jornais impressos que noticiam o impasse dos departamentos de propaganda e publicidade que somam altos prejuízos por não conseguirem posicionar nos monitores das telinhas suas programações. Consequentemente, não estão faturando os comerciais. As empresas de PP&RP sentem-se ameaçadas. A beira da falência).
(A imprensa impressa denomina o único canal de TV que os espectadores conseguem sintonizar de “Ghost-TV”. A TV-Fantasma está impedindo os outros canais de serem sintonizados? Há um grande clima de apreensão por parte dos diretores e acionistas dos grandes conglomerados de TV).
106) INT. CONVENÇÃO DE AGÊNCIAS DE PP&RP. RESTAURANTE DO HOTEL MAKSOUD PLAZA. SÃO PAULO — DIA
DIANE
(uma funcionária, comenta)
Ninguém parece estar mais interessado nos outros canais de TV.
CARLA
(fazendo anotações)
Sim, os filmes fantasmas. A TV “full-time”...
RICARDO
(executivo cheio de razão)
Estou dizendo, há excesso de explosões solares. Elas estão causando esses problemas de sintonia. Tudo está voltando à normalidade. Todos os canais voltarão em breve à sintonia normal.
RUBENS
(executivo apreensivo)
Pensei em mudar de profissão. Ser técnico em eletrônica. Todos os aparelhos de TV da cidade parecem estar entrando em pane.
RAQUEL
(confirmando)
A Associação das Senhoras Plugadas Em Novelas superlotaram os ramais de reclamação dos conglomerados de TV.
CARLA
(introspectiva)
Os barões dos conglomerados de TV estão apavorados. Muitos foram internados. No Brasil, três deles foram internados com problemas de AVC.
RUBENS
(relaxando)
Isso é que é “Pânico na TV”. E o bicho ainda está pegando. E parece que vai pegar ainda mais.
RAQUEL
(intrigada)
Crianças e adolescentes parecem saber o que está acontecendo. Há teorias, adolescentes e crianças participaram, de algum modo, das interferências. E dos eventos fenomênicos de inusitada superviolência no trânsito.
RICARDO
(irritado)
Isso é bobagem. Não acredito. Conta outra. Essa história de entidades de outra dimensão ocupando corpos e mentes de CRIANÇAS e ADOLESCENTES...Conta outra.
CARLA
(conciliativa)
Verdade! Todos pareceram, uns mais, outros menos, estar participando dessa espécie de empatia globalizada pelas ondas emitidas pelas transmissões da TV-Ghost. E quase todos somente veem a TV-Fantasma. É uma espécie de preferência universal. As estatísticas não mentem.
RUBENS
(interrogativo)
É complicado. Sei não! Ninguém parece saber o que está acontecendo na realidade. É tudo palpite. A “TV-Virtual” é como o satélite artificial invisível, ela existe, mais ninguém sabe explicá-la.
(As PESSOAS saem de reuniões e bate-papos parecendo indiferentes. Sem saber o que fazer. Algumas PESSOAS passam a sensação de que estão muito distanciadas de qualquer atitude que possa mudar o curso dos acontecimentos. Como se sujeitadas a eles).
107) INT. SALA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS. SÃO PAULO — NOITE
(A reportagem do JN prepara-se para entrevistar o doutor TROJAN, infectologista, chefe do plantão noturno do Hospital das Clínicas).
REPÓRTER
(tenta parecer o mais sem emoção possível)
Dr. TROJAN, qual a explicação científica para essa nova série de infecções motivadas por mutações do vírus H3V?
108) INT. SALAS DE JANTAR E OUTROS AMBIENTES PÚBLICOS E PRIVADOS ONDE PESSOAS ESTÃO A ASSISTIR O JORNAL NACIONAL — NOITE
(A câmera mostra o doutor TROJAN nos monitores de TV).
DR. TROJAN
(com franqueza)
Não apenas do H3V. As mutações estão ocorrendo com outros segmentos viróticos tipo a modalidade do vírus LULFHC.
REPÓRTER
(curioso)
Há realmente um campo magnético nas mutações viróticas? Propício à somatização e a indução dos infectados à aceitação da doença? E às mudanças drásticas de comportamento agressivo?
DR. TROJAN
(com convicção)
Ainda não é uma teoria reconhecida pela ciência médica. As variantes PT e PMDB do vírus H3V ferra os infectados com manchas na pele de coloração rosácea e avermelhada.
(As crianças e adolescentes observam os adultos com leves, quase imperceptíveis, movimentos nos cantos das bocas. As expressões faciais são de nítido distanciamento).
109) INT. LUXUOSO SALÃO DE BELEZA NO JARDIM AMÉRICA. SÃO PAULO — NOITE
(A clínica de beleza é especializada em usar cosméticos especiais para camuflar cada tipo de mutação virótica do H3V: tipo PMDB, PUF. COLL, e outras).
110) INT. SALA DE ESTAR — NOITE
(Na TV uma família está a assistir no Jornal da Globo, a continuação da entrevista com o DR. TROJAN).
REPÓRTER
(intrigado)
É como se cada infectado estivesse sendo marcado como gado? Os novos medicamentos em processo de pesquisa e fabricação são os mesmos para todas as variantes?
DR. TROJAN
(explicativo)
As vítimas passam entre doze e quinze meses perdendo a noção do tempo. E a competência orgânica. Cada marca de infecção difere nos efeitos. Há um “coquetel” para cada variante virótica.
111) INT. SALA DE REUNIÃO. JORNAL — DIA
(Ao redor da mesa, alguns JORNALISTAS do Conselho Executivo do jornal, debatem a participação do mesmo na “Expedição Norton”. Uma tela de TV transmite o “ghost-movie” do dia).
1° JORNALISTA
(persuasivo)
Vale o esforço de buscar respostas quando mais ninguém parece ter uma resposta coerente. (Virando-se para a REPÓRTER ao lado de NORTON) — Essa é a fotógrafa ADRIANE TATUIL. ROSSI LEE e ela representam o jornal na “Expedição”.
2° JORNALISTA
(questionador)
No momento não há consenso. Ninguém sabe ao certo de onde provêm as imagens da “TV-Full-Time”. Mas há fortes indícios de que este jornal participará da Expedição investigativa à Amazônia.
ADRIANE
(a defender a participação)
O mundo globalizado está uma babel. Todos opinam. Mas não há consenso sobre os eventos em lugar algum. Estaremos a caminho de chegar a uma resposta.
ROSSI LEE
(aperta um botão no controle remoto)
Mesmo nos meios científicos não há consenso. — Este é um trecho do “filme do dia” de ontem, da TV-Virtual.
112) INT. SALA DE REUNIÃO DO JORNAL — DIA
(O canal da “TV-Virtual” mostra acontecimentos que indicam que há uma central de retransmissão de imagens da “TV-Ghost” na Amazônia).
ROSSI LEE
(reafirma sua opinião)
Um crítico dos “Cahiers du Cinéma” divulgou ontem num canal de televisão francesa, que a “TV-Fantasma” divulga em seus filmes estilos de cineastas europeus do século passado.
2° JORNALISTA
(acompanhando o raciocínio)
Fellini, Antonioni, Chabrol, Visconti, Fassbinder, Pasolini, Greenaway, Rosseline, Lang, Truffaut, Godard, Losey, Rivette, Resnais, Wenders, Buñuel...
ADRIANE
(questionando a ideia)
As opiniões divergem. Um ex-cineasta e crítico de amenidades da política nacional, no JN de ontem afirmou que os últimos cult-movies da “TV-Ghost” reproduzem o estilo, “desse gênio maior de Hollywood que foi Samuel Fuller”.
ROSSI LEE
(irônico)
Muita areia demais para meu caminhãozinho...
1° JORNALISTA
(muito afirmativo)
Esses filmes têm duração de um dia. Todo dia um filme diferente. Nem todos os banqueiros associados a diretores europeus e hollywoodianos poderiam estar por trás dessas produções. Não há grana em estúdio nenhum do mundo que possa bancar produções de filmes de 24 horas. Sem intervalo comercial.
ROSSI LEE
(argumentativo)
Não vamos chegar a lugar nenhum reproduzindo opiniões, as mais diversas, sobre o que é e de onde vêm as produções de imagens da “TV-Fantasma”. Daí o investimento deste jornal na investigação dos indícios de que há uma central de transmissão eletromagnética proveniente da Amazônia. De acordo com o “Arquivo Jângal”.
113) INT. SALA DE REUNIÃO. BOURBON SÃO PAULO BUSINESS HOTEL. SÃO PAULO — DIA
(Executivos de vários países associados via interesses de conglomerados de TV em todo o mundo globalizado, estão reunidos numa sala com seus “lap-tops”, “iPods”, “net-books”, “not-books”, equipamentos eletrônicos de vídeo-transmissão de última geração, comunicam-se entre si via “translators”, secretárias-acompanhantes, equipagem de videoconferências).
(Vários idiomas estão sendo falados e traduzidos simultaneamente. A Babel de línguas tenta traduzir a diversidades de interesses semelhantes e se faz ver e ouvir como se a representação de um grande e impertinente zumbido eletrônico que a todos envolve. Via satélite).