O PAPA E A BORBOLETA

Albino Luciani, o papa João Paulo I, tinha um segredo: frequentemente, no meio da madrugada, ele acordava, libertava a alma do corpo, acomodava-a numa borboleta amarela e azul, que ficava à sua espera sobre o peitoril da janela e voava, voava alto pelos ares do Vaticano, flamulando as belas asas com agilidade e graça.

Numa dessas madrugadas em que pairava livre pelos jardins, foi atraído por uma perfumada flor, a mais linda que já vira em toda a sua vida, delicadamente repousada na mão direita de uma santa. Não podia ser! Era Nossa Senhora de Fátima! A imaculada ofereceu-lhe a flor, para que a sugasse. A alma em borboleta aproximou-se e imediatamente aceitou a oferta, não conseguindo mais parar. O que haveria naquele néctar, que o deixava tão irresistível e delicioso? A iluminada Virgem Mãe de Cristo falou com ele borboleta, que permanecia sugando o extasiante alimento:

– Meu abençoado e amado papa do sorriso, teu pontificado será breve, embora tua missão seja muito especial. Pela infância sofrida e a humildade que sempre norteou tuas atitudes, foste escolhido para abrir os caminhos de teu sucessor. Precisavas receber a bênção de eleger-te sumo pontífice da Igreja Católica, para te tornares digno de cumpri-la. No tempo da espera, o Pai Supremo concedeu-te a graça das amenidades da existência em néctares dulcíssimos, doando-te as levezas do mundo, que alcançavas nesses voos mágicos, por entre flores das quais te alimentavas. Tua mãe indicou-te o caminho da fé, teu pai deu-te o exemplo do trabalho santificado pelo esforço, mas de nada adiantariam tais influências, se tu não fosses puro de coração. Guardo teus rumos desde o nascimento, recebi tal incumbência do Pai Supremo e a cumpro com amor e zelo.

– Virgem Mãe Santíssima, minha alma flutua em regozijo, pela honra de ser o escolhido para uma santa missão! Perdoa-me pelo atrevimento, mas algo me inquieta: por que não consigo parar de sugar o néctar desta flor? É o mais doce que já provei, o mais saboroso, contudo a sensação de aprisionamento me aflige!

– Tu precisas de muita força, meu filho. Força que este alimento fornecerá.

– Mas já estou aqui por muito tempo, daqui a pouco será manhã!

Tão logo concluiu a frase, Nossa Senhora de Fátima acomodou a flor sobre um gramado viçoso e desapareceu, em silêncio. A linda fonte de néctar enraizou-se na terra úmida e produziu ainda mais alimento para a borboleta amarela e azul, que sugava, sugava e sugava, com fome e deleite cada vez maiores.

Instantes depois, em seus aposentos no Palácio Apostólico, a freira que o despertava todos os dias teve uma surpresa terrível: ele não acordou! Estava morto! Albino Luciani estava morto! Ela saiu apavorada, gritando desesperadamente pelos corredores do palácio, clamando por socorro. Em poucos minutos, a residência oficial do papa estava repleta de cardeais e outros altos funcionários do Vaticano.

O mundo recebeu com pesar a triste notícia. Por alguns dias, não se falava noutro assunto. As exéquias foram realizadas sob chuva severa, o que não impediu que a Praça de São Pedro ficasse lotada de fiéis inconformados. Como a Igreja Católica Apostólica Romana não podia permanecer sem um novo líder supremo, instituíram o conclave para eleger um sucessor.

Ignorando o que acontecia em sua ausência, a alma de Luciani em borboleta continuava sugando o néctar da flor. Amparou-se na fé inabalável que preenchia-lhe a essência e aquietou-se, aceitando aquela missão. E assim, passaram-se dias... meses... quase três anos! Já se havia acostumado com sua labuta solitária, apesar de prazerosa, quando sentiu que a flor movia-se para cima. Acompanhou, agitando com energia as fortes asas. Era Nossa Senhora de Fátima que voltava a ampará-la na palma da mão direita. Disse apenas:

– Este é o momento!

Albino Luciani, em sua forma borboleta, ressurgiu na Praça de São Pedro, no instante em que Karol Józef Wojtyła, o papa João Paulo II, seu sucessor, expunha-se para o povo. Avistou, entre os presentes, um homem que apontava um revólver na direção exata de onde se encontrava o sumo pontífice. A borboleta, sentindo-se absurdamente robusta, voou muito rápido e pousou no ventre de Karol, abrindo-se toda e abrandando o impacto do projétil. A pobrezinha sucumbiu e o papa João Paulo II feriu-se com gravidade, mas se recuperou. Certamente ele morreria, se não fossem as asas de Albino Luciani em borboleta, que tinham as mesmas cores do seu brasão e que se metalizaram de tanto néctar bebido da flor de Nossa Senhora de Fátima, a santíssima homenageada no dia do atentado.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 10/02/2013
Reeditado em 11/08/2013
Código do texto: T4132676
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