O CIENTISTA DA FOME 
                                       Juliana Valis



                    Josué de Castro foi um estudioso brasileiro que compreendeu profundamente as disparidades sócio-econômicas do país, de modo a abordar a questão da fome coletiva em múltiplas dimensões, pelo viés da ciência e também pelo da arte. Misto de médico, geógrafo e escritor, Josué de Castro esmiuçou o tabu da fome em seus aspectos geopolíticos, sociais e econômicos. Nascido em Recife no ano de 1908, Josué desde cedo teve contato com o problema da má alimentação no Brasil. A vida severina nos mangues pernambucanos, tão bem descrita pelo poeta João Cabral de Melo Neto, constituiu para Josué de Castro uma verdadeira escola sobre miséria, fome e abnegação. O próprio médico-geógrafo, em seu romance “Homens e Garanguejos”, ressaltou não ter sido propriamente o meio acadêmico o lugar no qual ele obteve os primeiros conhecimentos sobre a fome, e sim as proximidades do rio Capiberibe e os bairros miseráveis de Recife. Embora tivesse sido membro de uma família sertaneja de classe média, Josué soube captar desde a infância os anseios inerentes a um povo faminto tanto de comida quanto de assistência social. 

                    A esse contato preliminar com o problema da fome, em Recife, seguiram grandes estudos de Josué de Castro sobre as más condições alimentares em âmbito brasileiro e mundial. Formado em Medicina pela antiga Universidade do Brasil, Josué analisou o fenômeno da fome coletiva, de modo a conferir tratamento doutrinário a um assunto que até então era tabu no país. Assim, o referido médico não só vislumbrou as questões fisiológicas e nutricionais intrínsecas à fome, mas também procurou compreender tal problema com o auxílio de análises sociais. Nesse sentido, como salientou o sociológo Herbert de Sousa, Josué de Castro concedeu à fome uma conotação político-científica. 

                    Imbuído de tal viés científico, Josué participou de vários estudos sobre as condições alimentares no Brasil, entre os quais se sobressai o inquérito realizado em 1936, sob a coordenação do Departamento Nacional de Saúde. Em tal abordagem sobre a fome no território brasileiro, foram publicados diversos livros de Josué de Castro, tais como “O problema da alimentação no Brasil” (1933), “Documentário do Nordeste” (1937), “A alimentação brasileira à luz da geografia humana” (1937), “Geografia da fome” (1946), além de outros. Entre todas essas obras, destaca-se a última, em virtude de sua abrangência interdisciplinar e de suas repercussões literárias. De fato, o ensaio “Geografia da fome” foi traduzido em cerca de vinte e cinco idiomas e rendeu a Josué de Castro um prêmio da Academia Brasileira de Letras. Mas esses seguramente não foram os únicos méritos de tal obra. A “Geografia da fome” é, sobretudo, um ensaio que proporciona um amplo panorama acerca dos fatores biológicos e sociais da fome coletiva em cinco áreas brasileiras: Amazônia, Nordeste açucareiro, Sertão nordestino, Centro e Sul do país. Vê-se, por meio da análise sobre as condições alimentares inerentes a cada área, o esforço de um médico em entender as causas e os sintomas de uma das doenças que sempre afligiram o Brasil, ou seja, a fome endêmica . 

                Além de fazer uma perquirição acerca do problema da fome coletiva em âmbito brasileiro, Josué de Castro também vislumbrou tal tema mediante uma abordagem mundial. Nesse sentido, o referido médico-geógrafo frisou os vínculos entre carência alimentar e subdesenvolvimento, em várias regiões do mundo, especialmente na América Latina. Por meio de livros como “Geopolítica da fome”, Josué ressaltou que as causas da inanição humana em várias localidades do globo não concernem exclusivamente às catástrofes naturais nem aos abalos climáticos, mas estão sobretudo ligadas à forma pela qual a maioria dos povos foi colonizada e explorada. Em outras palavras, a fome nada mais é do que um manifesto fisiológico de complexos problemas sociais, cujas causas remontam à própria história de exploração do homem pelo homem. 

                Atento a todos esses aspectos sócio-econômicos intrínsecos à fome e à miséria, Josué de Castro não se restringiu ao plano das idéias sobre tais problemas. Sua vida política e acadêmica revela diversas ações direcionadas à erradicação dos suplícios da fome, tanto no Brasil quanto no exterior. Em 1940, Josué de Castro foi designado diretor do Serviço de Alimentação e de Previdência Social, criado pelo governo de Getúlio Vargas. 

             Posteriormente, em 1942, Josué fundou a Sociedade Brasileira de Alimentação e, naquele mesmo ano, foi encarregado de dirigir o recém-criado Serviço Técnico de Alimentação Nacional. Professor em prestigiadas universidades brasileiras, tais como a antiga Universidade do Brasil, o aludido médico-geógrafo soube conciliar os estudos científicos com suas atividades políticas. Dessa forma, Josué de Castro foi deputado federal por Pernambucano durante oito anos consecutivos, de 1954 a 1962, de modo a levantar a importância de uma efetiva reforma agrária para o combate à fome no cenário brasileiro. 

           Como cidadão imbuído de ideais progressistas, Josué enfrentou dificuldades com o advento do regime militar no Brasil, que se instaurou mediante o golpe de 1964. Assim, o referido médico teve seus direitos políticos cassados, além de perder o cargo que conquistara como embaixador brasileiro no âmbito da Organização das Nações Unidas. Exilado de seu país após a instauração da ditadura militar, Josué de Castro fixou residência na capital francesa e continuou seu combate à fome mundial. Desse modo, passou a lecionar na Universidade de Paris e a chefiar o Centro Internacional de Desenvolvimento, com o escopo precípuo de auxiliar países subdesenvolvidos no que tange à luta contra a miséria e contra as precárias condições alimentares. Além dessas atividades, Josué de Castro foi presidente do Comitê para a Constituição dos Povos, de modo a pugnar simultaneamente pela paz mundial e pela melhoria dos índices de desenvolvimento humano nas regiões paupérrimas do planeta. Em 1970, Josué tornou-se presidente da Associação Médica Internacional para o Estudo e Condições de Vida e Saúde, em prosseguimento aos seus planos profícuos no que concerne à contenção da fome no mundo. 

             Por todo esse trabalho desenvolvido em prol da humanidade, Josué de Castro obteve reconhecimento e prestígio em diversos países, ao receber prêmios como o Franklin Delano Roosevelt (em 1952), da Academia norte-americana de Ciência Política, e o Prêmio Internacional da Paz (em 1954), além da Ordem de Andrés Bello, conferida pelos governantes da Venezuela (em 1968), e da Grande Medalha da Cidade de Paris (em 1953). No âmbito acadêmico internacional, Josué de Castro foi professor honoris-causa de diversas universidades, entre as quais a de Santo Domingos, na República Dominicana, e a de San Marcos, em Lima. De cidadão brasileiro, o médico-geógrafo passou a ser também cidadão do mundo, consciente das necessidades e dos anseios inerentes a milhões de pessoas famintas e alijadas de quaisquer meios dignos de subsistência. 


           Exilado na capital francesa pela ditadura militar, Josué de Castro faleceu no ano de 1973, com homenagens de diversos países e organismos internacionais, entre eles o Conselho para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), do qual fora presidente de 1952 a 1956. Após ter realizado notáveis empreendimentos no concernente à luta por um mundo sem fome, Josué de Castro deixou como maior herança a convicção plena de que é imprescindível e sempre necessário trabalhar pela melhoria das condições de vida dos povos. Assim, Josué foi um médico em ininterrupta busca pela cura de uma doença tão ou mais perniciosa que enfermidades como aids e câncer: a fome. 


            De fato, aquela mesma doença letal que Josué de Castro combateu com tanta veemência durante toda a sua vida ainda hoje assola um percentual bastante significativo da humanidade, de modo a desafiar quaisquer pessoas de bem. Segundo relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas, no ano de 2002, cerca de 815 milhões de indivíduos em todo o mundo sofrem de subnutrição crônica, sendo que 54 milhões de tais pessoas vivem na América Latina e no Caribe. Intrinsecamente vinculada a tais estatísticas da fome, a pobreza constitui outro grande problema mundial a ser superado. No Brasil, de forma específica, a pobreza atinge mais de um quarto da população, ou seja, cerca de 44 milhões de indivíduos. Ainda conforme o relatório da Organização das Nações Unidas, por volta de 49 milhões de brasileiros vivem com até meio salário mínimo mensal. No Nordeste, mais da metade do povo sobrevive com até um salário mínimo. 

              Diante de todas essas estatísticas, o que tem sido feito em prosseguimento aos trabalhos que Josué de Castro deixou como legado à humanidade ? É factível que muitos projetos populares e programas governamentais, como o atual “Fome zero”, têm sido desenvolvidos com o objetivo de erradicar a subnutrição que assola tantos indivíduos. Assim, torna-se cada vez mais imprescindível combater a miséria pelas suas próprias causas e procurar os responsáveis por tal desrespeito à humanidade. Afinal, de quem seria a culpa pela existência de milhões de pessoas famintas e subjugadas à pobreza ? 

                   Após todas essas considerações sobre a doença da fome e de seu correspondente crime, é necessário tomar medidas eficazes para prevenir tais males. Como médico e geógrafo, Josué de Castro dedicou boa parte de sua vida a combater as enfermidades da fome e da miséria. Como político e professor, Josué denunciou o delito anteriormente explanado. Ao analisar as causas e os efeitos da subnutrição, Josué fez do estudo da fome uma ciência interdisciplinar, impregnada de fatores sobretudo humanos, econômicos e sociais. Assim, é preciso aprender de vez a lição daquele insigne cientista e perceber que os indivíduos são os grandes juízes de si mesmos. Se fizerem mais justiça social, mediante melhor distribuição de renda e fornecimento de subsídios aos mais desfavorecidos, serão absolvidos do crime de causar fome. Caso contrário, condenar-se-ão à prisão perpétua na cela lúgubre do próprio egoísmo.