A menina

A menina brincava de montar quebra-cabeças. Era um hobbie que tomava grande parte do seu tempo. Ela pouco se importava. Havia peças menores. Outras peças eram enormes e ajudavam bastante a tornar a tarefa mais rápida. Ás vezes ela montava cidades, outras vezes só frases e pessoas que não conhecia, mas que a mãe garantia que eram importantes, famosas e tecia histórias sobre elas. A menina não gostava muito de histórias. Ela gostava, mas só das que tinham coisas que não existiam. Essas eram iguais aos quebra-cabeças, com as peças, estranhas uma para a outra, porém quando colocadas em seu devido lugar, juntas formavam um quadro bonito com final feliz. Quando terminava de montar um quebra-cabeça ficava feliz. Era mais uma tarefa bem sucedida na organização do caos. Não ficava satisfeita por muito tempo. Sempre queria um novo caos, uma nova caixa cheia de peças esperando para serem unidas num quadro. Um dia seu pai chegou em casa, pegou um copo na cozinha e jogou na parede. Ela começou a unir os cacos, montando o copo novamente, o primeiro quebra-cabeça tridimensional. As peças não se encaixam perfeitamente. Ela cortou o dedo. Por que o copo quebrado não pôde voltar a ser copo? O dedo cicatrizou. Sempre dedo. O copo não é sempre copo? Não. O copo é o caos em tensão formando um copo. No outro dia o seu pai não quebrou nenhum copo. A mãe também não contou nenhuma história sobre aquela mulher que ela estava montando. Eram semanas de silêncio. Um dia sua mãe lhe deu um quebra-cabeça que estava numa caixa toda branca, mas que dizia ter mil peças. Nunca montou um tão grande. Um desafio. Como montar algo tão grande sem ter a mínima ideia do que era? Era dia de lavar roupas, mas não tinha nenhuma roupa do seu pai no varal. Ela começou a juntar as pecinhas. Conseguiu terminar a moldura do quadro. Era toda preta. No outro dia, antes de ir para a escola, a xícara do seu pai, que sempre ficava suja sobre a mesa, não estava lá. Ela continuou montando o quebra-cabeça. Fez o rosto de três pessoas. Tinha um homem, uma mulher e uma menina. Passou parte da noite tentando montar os corpos, mas acabou dormindo. Despertou com o sol entrando pela janela. A grama do jardim estava grande. Seu pai não cortou a grama. A moldura era preta mas o resto, tirando as pessoas, era todo branco. Que lugar era esse? Moldura preta, mundo branco e três pessoas. Não sei. Mas esse homem parece meu pai. Essa mulher parece a minha mãe e essa menina se parece comigo. Terminou. Faltavam duas peças, uma no peito do homem e outra no peito da mulher. Como poderia ter perdido duas peças?! Isso nunca aconteceu antes. Saiu procurando. Não estava na cozinha, nem no quarto, nem no banheiro, nem na garagem. Foi ao quintal. Tinha um buraco bem no meio do jardim e as duas peças estavam lá. Seu pai e sua mãe estavam de pé ao lado do buraco. Seu pai a abraçou, beijou sua testa. Ela pegou as duas peças e voltou ao quebra-cabeça, mas as peças não encaixavam. Continham, cada uma, a figura de um coração. Não se encaixavam no quebra-cabeça. O homem e a mulher não podiam ficar sem coração. Voltou ao jardim. Seu pai tinha uma mala na mão. O táxi chegou e ele foi embora. Não. Não! Correu atrás do carro. O carro era rápido demais. Não! A mãe a abraçou. Voltaram para casa chorando. As duas peças que não se encaixavam. O copo mal colado que não era mais copo ainda estava na cozinha. De que serve um copo mal colado que só é junção de vidro sem função alguma? Jogou-o no lixo. Restou o quebra-cabeça para sempre na incompletude.

Tati Dalat 23/09/2012

Tati Dalat
Enviado por Tati Dalat em 23/09/2012
Reeditado em 25/09/2012
Código do texto: T3897437
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