Saiba o que a Ditadura fez em mim
Sou fruto da Ditadura e só agora me dou conta das consequências disso. Há pouco descobri que o Brasil não é aquele país descrito por alguns professores daquela época. Acreditei por longos anos que aqui não havia terremotos, desmatamentos, degradação... Nem sabia o que era corrupção. Acreditei que meu país era um paraíso, onde tudo o que se plantava dava, onde não havia problemas sociais, um verdadeiro gigante por natureza... Cantava o Hino Nacional antes de entrar em sala de aula, formando filas como os militares. Marchava no sete de setembro para comemorar nossa “independência”. Acreditei que vivia no melhor lugar do mundo e que nada poderia nos afetar.
Passei anos devolvendo informações, decorando listas de palavras, nomes e datas históricas. Não entendia o ciclo da água e achava que o céu mandaria sempre mais para substituir o que gastávamos e poluíamos. Aprendi que os recursos naturais eram inesgotáveis. Só os minérios terminariam em um dia bem distante. Eu não ouvia falar em agrotóxicos, rios poluídos e que a floresta Amazônica corria sérios riscos. Aliás, para mim, o que interessava saber de onde vinha aquela lenha que queimava no fogão que me aquecia? As árvores eram tantas por todos os lugares daqueles 8,5 milhões de quilômetros quadrados!
Eram somente dois partidos: Arena e MDB. Só chegava para o povão o nome de quem estava no poder. Os elefantes brigavam entre si e nós éramos a grama pisoteada. Para não ter encrenca, torcíamos pelo governo. Minha família não discutia política. Ninguém falava nada contra os generais do poder. Isso garantia vida “sem problemas”. A revolta estava na moda ditada pelos hippies, pelas gírias, nas mensagens subliminares contidas nas músicas que ouvíamos de Caetano e de Chico e que cantávamos com a inocência das crianças da época.
Havia uma maquininha que remarcava os preços no mercado. E tínhamos medo de um dia não poder comprar o que estávamos acostumados a comer. No quintal, uma horta para ter o que colher sem gastar fazia com que esquecêssemos a falta de alguns itens do supermercado na mesa. Havia a tal carestia que, para mim, era uma palavra ouvida da boca dos adultos.
As notícias chegavam pelo rádio ou pela tevê, mas já “filtradas” pela tal censura que eu entendia que era “coisa que criança não podia saber”. Se havia mortos, desaparecidos e gente sendo mandada para viver longe do Brasil, isso era algo que não nos tocava, pois o que diziam destas pessoas é que eram “gente ruim que queria destruir a paz que reinava no território brasileiro”. E acreditávamos no que ouvíamos!
Havia um silêncio estranho na conversa das pessoas. Algo misturado com o medo da morte, da tortura, mas que não se discutia e nem se questionava, apenas vivenciávamos e temíamos.
Aprendi a ver os fatos como episódios da história. Um sem ligação com o outro. Apenas fatos passados. História do Brasil, de gente que não existia mais e que fez algo que foi importante para cada época. Nomes para decorar e devolver nas provas escolares. Não desenvolvi meu senso crítico e nem a capacidade de estabelecer relação de um fato com outro. Não sabia o que era consequência e tampouco onde estava a causa de uma consequência. Hoje sei o que isso tudo significa: eu sou a consequência de uma causa história; sou o fruto da Ditadura e o silêncio forçado de todos que viveram em minha volta e que fez eu não perceber a realidade.
Somente, depois de mais de 20 anos, eu despertei do sono profundo da ignorância. Que minhas filhas percebam o presente para garantir um futuro melhor aos meus netos e bisnetos. Que nunca mais haja pessoas ditando o que fazer com a nossa vida para manter-se no poder e manipular o pensamento daqueles que merecem viver felizes e livres em qualquer lugar deste planeta!
Autora: Luciane Mari Deschamps, 44 anos, professora desta geração pós-ditadura.