O Quadro e a Primavera.
O apartamento me sufoca como o som das músicas que ouço. Mas...como posso usar a máquina de escrever? O branco do banco; o crayon do quadro a minha frente;o batente da porta...o que mais importa se não posso escrever?... Meu casaco de antílope permanece estático,amoldado à cadeira,desde quando o deixei.A cerveja não é a mesma,pois o gosto distinto particulariza cada garrafa, como as pessoas que passam nas ruas,como as pessoas que passam na nossa existência. Onde estarão os meus olhos? Talvez perdi-os na distância que me leva às músicas que ouço... Ah! O cais e a Eternidade! Fernando Pessoa me agita por dentro,e eu,impossibilitado,me escondo por fora na certeza de nunca transpor os limites do meu possível. Ah! Odes,Cantos,Saudações ! São todos canções e eu não as canto...Que encanto poder ouvi-las,senti-las,de todas as formas,de todas as maneiras. Que sensação de ficar e partir! Como partem os navios dos portos...Esta máquina de escrever a minha frente revela-me mais segredos que meu pai me ensinou. Eu os vejo no papel. Que inferno de ser e não-ser...Quisera ser tomado de assalto e num sobressalto descobrir-me a mim. Ah!hhhhhhhhh Grito e assisto a desesperança que rompe e não posso contê-la,nem retê-la,nem vê-la. Só posso gritar. Ah!hhhhhhhhhhhhhhh ! Esta cerveja que tomo vale mais que o casaco de antílope,que a música que ouço,que o cigarro que fumo.Ela é real. Os contornos da figura do quadro me conduzem,me induzem para dentro do quadro. Mergulho...sem esquadro,nas profundezas de uma área geométrica,perplexo !?...Onde estará o Cais para aportar-me? Ou será que o Cais ficou para trás,na imensidão do meu indagar?...Raios da menina que come o chocolate sem qualquer metafísica! *...e a tabacaria fecha...* mas não encerra o que tenho dentro de mim. A Primavera se inicia com lindos dias,segundo a meteorologia. E eu me encontro nos contornos da figura do quadro. Saiam todos que não os quero ver no quadro que aqui de dentro vejo. Não mais instigo a intriga,não mais maldigo a Vida,só quero a paz de encerrar-me no quadro que é pendurado na parede da sala...
SP-Primavera/1977/23/9