Subterfúgio
Fui chamada de Angelina logo que nasci, mas, hoje em dia, não me importo mesmo em ter um nome com tanta gente me chamando de variados de coitadinha, trombadinha ou menina de rua. A gente esquece até de quem a gente realmente é quando vive nas ruas; perdidos no mundo, sem ter pra onde ir e, ao mesmo tempo, ser e estar em todo lugar. Eu que nunca sei quem sou. Eu, com a minha pouca idade, já nem me lembro mais de como era morar em uma casa, com conforto, comida, roupa limpa e família reunida. Deve ser porque eu nunca vivi essa realidade. Desde cedo, eu me lembro de ter dado os primeiros passos aqui nessa mesma zona e já me acostumei com a rotina de pedir esmolas, brigando por um canto pra dormir e, só assim, ficar o mais perto de tranqüilidade. Eu que fiquei congelada no tempo, se é que ele teria tempo para resfriar-me. Aqui não é moleza não. A gente aprende que, mesmo rodeado por pessoas que passam pelas mesmas dificuldades, estaremos sempre sozinhos. Quem não fica esperto, logo deixa que os outros se aproveitem de sua boa fé - até mesmo de má, se convém - nas mínimas brechas que encontram. Nada pertence a ninguém por aqui e o único refúgio que eu encontro são os meus pensamentos. Passei 12 anos da minha vida com medo e desconhecendo o amanhã, simplesmente sobrevivendo. Mas a gente vai levando; alimentando as esperanças - se é que já não mudou de nome - de um dia ter um lar depois de apanhar tanto da vida. Eu que desperto tão cedo com essa barulheira danada do trânsito de São Paulo. Nos meus sonhos eu vejo um lugar, gramado verde e limpo, repleto de frutos, de cercas brancas, um jasmineiro cercado de crianças empinando suas pipas e pulando corda. Eu me vejo sentada, com um vestido de princesa, segurando a boneca mais linda da loja...a criança mais feliz que já habitou a Terra. O meu sonho é poder pertencer a um lugar. Nem precisa de muito para me satisfazer. Eu só queria merecer o respeito e que nunca mais ninguém me olhasse com desprezo ou com esse ar de dó. Poder brincar com as outras crianças, estudar, me tornar alguém importante no futuro, olhar para mim mesma e, no fim do dia, ter alguém me esperando em casa pra cuidar de mim e me perguntar como havia sido a minha tarde. Eu respondeis que, com certeza, não teria sido vazia e desesperançosa. Eu que me deito no asfalto e conto as estrelas nas janelas dos edifícios.