Vou-me embora

Chegará o dia em que fecharei a porta da saída pela ultima vez e não serei mais um morador, dali em diante, passarei a ser visita, passarei a ser evento.

Irei embora deixando pra trás as marcas dos meus anos passados, deixando minha bagunça onde só eu conseguia me achar, deixarei as marcas das paredes onde me apoiei quando quase caí, quando bati a cabeça. Deixarei o chão que arranhei por anos.

Deixarei a criança e o adolescente, deixarei as asas dos pais. Apagarei uma ultima vez a luz do quarto e, como sempre, esquecei ligado o ventilador esperando sinceramente que alguém o desligue rápido.

Vai vir o momento em que não se poderá mais adiar a partida, terei de ir embora e descer as escadas devagar, ciente que outros degraus, estranhos degraus me esperarão em outro lugar para me levar a outras paredes que me darão outra proteção.

Mãe e pai não esperam por este dia, não gostam desse dia, de jogar sua cria no mundo de forma tão ampla, perder todo o controle de que horas você sai, que horas você volta. Mesmo que não possam mais regular este tipo de coisa, ter essas informações os faz sentir ainda no controle.

Quando partir, deixarei um sorriso e um aviso “ligo quando chegar lá”. Irei chegar apenas uma vez e nunca mais sairei, minha presença constante será substituída por fotos, telefonemas e lembranças, alguns risos.

Os vizinhos olharão, porque vizinhos sempre olham, o carro cheio de coisas velhas e coisas novas, os irmãos que ajudam a arrumar tudo e os pais que choram, deixo o armário vazio de roupas, levo a escova de dentes, levo aparelhos velhos que tenho carinho. Os vizinhos pensarão, conspirarão sobre o motivo da minha partida, será que teríamos brigado? Deixem-nos pensar o que quiserem, eles tem bons motivos.

O sol irá cair uma ultima vez naquele cenário, filho daquela casa eu não serei mais pela manhã, as luzes da noite acenderam uma a uma devagar e eu irei embora, irei embora sob a luz dos postes que iluminam mal a rua.