Redação do Trabalhador no ENEM
“A educação é fundamental, é a chave para que o Brasil se torne de fato um país desenvolvido” (ROUSSEFF, Dilma. 2010). Ideia atraente em palavras e, disto, decorre a falsificação da realidade, bem como o seu mau-uso nesta mesma realidade.
Falando em realidade, nos atentemos a ela. Sábado e domingo, fiscalizando o Enem, deparei-me com o seguinte paradoxo: o trabalhador quer mudar de vida através da educação (nada mais bonito de se constatar). Entretanto, como mudará de vida através dela – da educação - se no dia anterior trabalhou o dia ou a noite inteira e, naqueles dois dias, estava diante de uma prova de 90 questões por dia (além da redação no domingo)?
Com a licença de uma amiga a qual comentei isto, reproduzirei parte de nossas trocas de ideias. Ao comentar o caso, ela me disse que “a pessoa tem que estar focada, mas não tem como desistir. A superação é maior do que a realidade permite, a pessoa tem que se superar pra depois não se arrepender”. Pois bem, “focada”, o “foco do indivíduo”, “a força de vontade”. Isto é o que o Capitalismo auxiliado pelo pensamento Liberal faz alguns pensarem, pensar que só depende da pessoa e, desta maneira, se consegue, heroísmo e dotado de grande força de vontade, se não consegue, preguiçoso e sem falta de vontade própria, não se superou, fracassado. A amiga também disse da negociação entre trabalhador e patrão. Como haver negociação favorável ao trabalhador se o mesmo se encontra em desigualdade. Como esperar conciliação se há interesses divergentes? O governo não deve esperar negociação, ou melhor, não deve esperar “a falsificação de uma falsa negociação”, uma falsa conciliação. Meu pai é empresário, e pelo que lhe conheço, sei que liberaria – até orgulhosamente – seu funcionário caso ele pedisse folga no dia anterior à prova para “preparar-se melhor”. Porém, e se um dia lhe ocorrer de não “conciliar” o seu interesse com o de seu trabalhador? E se o seu trabalhador não tiver audácia – sim, pois para alguns empresários, tal pedido seria encarado assim – de pedir-lhe a liberação? Não há conciliação de interesses entre patrões e empregados. Não há conciliação entre capital e trabalho. Não se deve esperar a boa vontade do empresário. Desta boa vontade, o “inferno” está cheio. O governo, que se propõe ao lado do trabalhador, deve, de fato, defender seus interesses.
Fracassados? Voltando a realidade daqueles dois dias, percebi que as duas senhoras que declararam ser trabalhadoras – uma, inclusive, trabalhando à noite inteira numa cozinha porque não atendida pelo patrão quando pediu uma “folga” – não estavam em mínimas condições físicas e psicológicas de fazer a prova. Sentadas na cadeira, lutavam pra manter os olhos abertos e fixos nas questões. No insucesso, uma delas entregou-se aos cochilos por várias vezes e a outra suspirava fundo, andava um pouco no corredor, ia ao banheiro, lavava o rosto – inclusive, me perguntando se, em algum lugar, conseguiria café, o que respondi em poucas (e dolorosas) palavras, como me foi incumbido, que não tinha conhecimento uma vez que era a primeira vez trabalhando ali.
O que constatei observando as duas senhoras é que não, estas duas senhoras e mais milhares de outros trabalhadores não são fracassados, já são vencedores somente ao se proporem mudar socialmente pela educação, não podendo ser culpabilizados pelas condições que não lhes eram favoráveis, como foram a mim quando fiz a prova, descansado, sem ter trabalhado no dia anterior ou em quaisquer outros dias, ou seja, minhas condições - e a de vários “concorrentes” das duas senhoras naquele dia - era de preparo físico e psicológico, além de, é claro, teórico. (Estou aqui falando somente da preparação física – e, até certo ponto, psicológica - do trabalhador que é o imediato do exame. A preparação em outro sentido, qual seja nos conteúdos, é algo mais complexo pra caber neste pequeno texto, mas igualmente importante.)
Além disso, constatei também que não se pode restringir algo que se propõe – e deve ser de fato – universal: o acesso à educação. Não falo da igualmente ridícula “concorrência em igualdade de condições”. No acesso à educação que se pretende universal, não há concorrência, caso contrário e obviamente, não é universal. Falo, pelo menos neste pequeno texto e mais imediatamente, de um caso dentre as diversas condições desfavoráveis ao trabalhador no acesso à educação, condições estas, falsificadas por frases de efeito, ideais e raras histórias de “superação pessoal”.
Mais uma vez, voltando à realidade, a trabalhadora que tentou ficar acordada o tempo todo, por fim e vencida pelo cansaço, desiste de terminar a prova, desiste no meio de sua redação. Frustrada e cabisbaixa, desenha, cochila, desenha, cochila, desenha, coch... E o governo, que se diz preocupado tanto com a educação - encarando-a como indispensável pr’uma mudança social - quanto com os trabalhadores – haja vista que o Partido dos TRABALHADORES está à sua frente – nada faz nesta lamentável situação. Contraditório, não?