O LAGO ERA AZUL - (social)

Era um lugar agradável, cercado por serras, ao longe se avistava além do verde natural, bandos de pássaros. O belo nome do povoado foi inspirado por causa do Lago que lá existia, cercado de muito verde, ficava na parte baixa da cidade .

A noite, o Lago era banhado pela Lua e suas margens se tornavam recanto dos namorados. Durante o dia, meninos aprendiam a nadar nas águas frias, que no verão eram barrentas e no inverno azuis como o céu do Planalto Central. Pela manhã, senhoras cuidavam de lavar roupas, e o Lago, na falta d´água se tornava o quintal de casa.

O belo Lago era palco de lendas, como a “mulher de branco” - contavam que haviam visto uma mulher de branco vagando em noite de Lua ás suas margens - ou que o Lago tinha águas tão frias no centro que sugava as pessoas para o fundo, e que muitas pessoas haviam sido levadas pelas águas.

Mas, ao redor do Lago uma cidade surgiu, um povoado de pessoas simples, um loteamento surgido do nada, povoado por pessoas humildes expulsas de algum outro lugar dos arredores. Chamo o lugar de povoado pelas poucas casas da época, muito cerrado - vegetação típica - Caju no meio do mato, cachoeiras próximas, pouca eletricidade, bares pequenos, onde à noite, os poucos jovens da cidade se encontravam.

Nesse povoado, a noite tinha o céu mais lindo que se podia imaginar, e noite era uma festa, as pessoas mesmo na escuridão se reconheciam, se podia sentar na porta de casa na frente de quintais sem muros e observar a Lua e as estrelas, podia- se namorar embaixo das árvores no domingo de manhã, enquanto os amigos jogavam futebol em campo de terra batida em frente a igreja.

Penso, que apesar da dita falta de riqueza, não havia riqueza maior do que a liberdade de se reunir com os amigos para ouvir "música urbana" em frente de casa ou na academia improvisada onde um belo mestre de capoeira - negro como a noite - ensinava a gingar capoeira, a cantar ladainhas, e a tocar berimbau - diga-se de passagem que naquele povoado se acreditava ter o era o melhor - capoeira, bailes para se dançar coladinho - " baile da Maria Cebola" - onde as meninas tiravam os meninos para dançar - ,e o bom papo depois da aula de capoeira, Blues negro americano, rock nacional, sua juventude era eclética e não imaginava...poucas pessoas e muitas cultura, pena tudo isso aliado a “pobreza”.

Naquele povoado, as meninas escreviam cartas a mão aos namorados e também as namoradas dos amigos a pedido dos mesmos, trocavam para leitura livros diversos, gibis, poesias e tinha até um grupo de teatro - quem diria - O “Jogos de Cena" - uma linda utopia, não registraram em fotos, a pobreza não permitiu, mas o salão comunitário lotou, anos 80, inflação, recessão e pouco poder aquisitivo, e muita criatividade para sobreviver.

O grupo Jogos de Cena, foi um sonho realizado, depois da apresentação de " O Seminarista "e vários jogos de cena, o grupo deixou de existir, a vida chamou os nove participantes a luta pela sobrevivência e pela existência.

A meia luz ou a luz de velas - detalhe nada romântico por sinal - era falta e não escolha - o povoado crescia, desmatamento, chuva, enxurrada, erosão, e menos água...pouca energia elétrica, mais gente, hospital distante, menos transporte, apenas uma escola e a vida minguava, promessas, falta de instrução... quase nenhuma perspectiva.

No meio do nada, sem aviso prévio " O Fala Favela" surgiu, o povoado enluarado, agradável com cheiro de mato e de chuva, não se desenvolveu, mas ganhou uma placa imensa - "Projeto Fala Favela", havia construído o Salão Comunitário - os jovens que não se sentiam ainda favelados, indignados com o novo título derrubaram a placa - rejeitando o rótolo imposto que destrói sonhos ao invés de construí-los - mas, infelizmente não derrubaram a chegada da violência pela falta de infraestrutura, o lixo das ruas sem asfalto, o sumiço do lago tragado pelas várias erosões e pelo enorme desmatamento de suas margens - e a palavra favela surgiu com uma imensa força e com ela não se pôde mais mais ver a Lua sentado à porta de casa, como nas cidades do interior - a violência não mais deixou - ao longe passou a se avistar pouca vegetação e muitos barracos dos loteamentos agora vizinhos.

A fama do povoado aumentou e não foi por causa do grupo de teatro, e sim por causa do número de assassinatos.

Mas, o povo não se entristecia, com os moradores do antigo povoado veio a resistência... naquela terra de gente simples, tinha missa todo domingo, e a igreja pequena lotava, tinha bingo cujo o prêmio podia ser uma vaca, outro Bingo específico do Supermercado, depois tinha sempre festa de vez em quando tem parque em frente a igreja, tinha Festa do Divino Espírito Santo todo ano, tinha futebol da rapaziada à noite na quadra e os animados cultos evangélicos... e apesar da grande maioria das portas se trancarem as oito da noite, tinha a resistência de seu povo.

E assim, muitos anos se passaram e a vida seguiu o seu curso, entre histórias de violência, lendas, poeira, e de longe em algum lugar, ouve -se uma música ao fundo que lembra os velhos tempos, onde o povoado era apenas um lugar simples que comprou um terreno para construir uma casinha para criar os filhos... ouve-se " música urbana"...e dizem que ainda hoje a identificação é inevitável, apesar da resistência. O certo é que uma imensa tristeza chegou ao olhar dos velhos daquele lugar, há lágrimas que brotam a todo instante pelas vidas que se extinguem, os jovens de agora perderam o direito de se tornarem adultos, e não há mais tempo, a morte parece ter nascido antes da vida em uma lógica causada pelo descaso de quem governa sem governo. O antigo povoado míngua, mas, tende também a resistir a não se tornar triste tal qual a história do lago que um dia foi azul.

1989/2010.

Texto produzido em 2010.

*Em memória de um amigo falecido em 2011 , vítima de violência urbana - + 1972/2011 - fez parte do grupo Jogos de Cena.

*Texto – que pode retratar muitas realidades.

*Música Urbana – Referência - Letra da Banda Brasiliense - Legião Urbana;

*Jogos de Cena Grupo de Teatro Local (Teatro Amador) – 1991;

*O Seminarista – Peça Inspirada no livro - O Seminarista - do autor Bernardo Guimarães1872;

*Projeto “Fala Favela” -??;

VivianMariaMaranhão
Enviado por VivianMariaMaranhão em 24/10/2011
Reeditado em 20/04/2018
Código do texto: T3295336
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.