Multiplicada

O sonho começou mais ou menos assim:

"Estou correndo a toda velocidade, num carro que roubei numa casa próxima ao local da fuga.

A rua está muito escura. Não enxergo nada! Não posso ligar os faróis, chamaria atenção demais.

Dei uma gargalhada nervosa e irônica.

Como se uma pessoas correndo a mais de cem quilômetros por hora já não chamasse atenção suficiente.

Não, eu não poderia chamar a tenção dele. Seria suicídio. Ele quer matá-lo. E por que? Por pura vingança. Que aquele coração podre queime no inferno!, pensei.

Estremeci.

Mas ele não o pegara. Não mesmo.

Haviam poucos carros circulando nas ruas escuras e tenebrosas de uma São Paulo sem energia. Ele tinha feito com que faltasse energia na cidade inteira. Mas por um lado, isso era bom, podia correr ainda mais rápido, ao mesmo tempo que seria mais difícil despistá-lo.

Inferno! Por que fui sair do meu buraco imundo justo agora? Como fui estúpida e inocente! Deveria ter percebido que era uma armadilha desde o início. Ele nunca encostou um único dedo nele.

Toda vez que pensava em meu pai sentia uma arrepio na espinha. Será que ele já tinha voltada para casa? Se é que pode ser chamado de casa o porão velho de uma casa abandonada a tempos. Tomara que papai não tenha saído para vingar minha mãe e irmã. Estremeci de novo.

Acho que ele não seria idiota. Meu pai não é idiota. Por que sairia em busca de vingança, sendo que foi esse sentimento sanguinário que nos colocara nessa enrascada?

Dei uma fechada num carro vermelho. O motorista buzinou e me xingou de alguma coisa que não consegui entender. Não importa. Preciso salvá-lo.

Olhei pelo retrovisor e avistei o Toyota prata que continua me seguindo durante duas horas, sem descanso, desde que fugi daquela lanchonete nojenta. Estava apenas alguns metros atrás de mim. Apavorada, acelerei ainda mais.

O que aconteceu em seguida apareceu em pequeno flashes. Uma batida. Meu mundo rodando, enquanto eu me agarrava firmemente ao volante até os nós dos dedos ficarem brancos. O carro finalmente parando de capotar em uma rua deserta, próxima a periferia. Algo quente e úmido escorrendo pelo minha testa. Passos ecoando em minha direção...

Primeiro senti o cheiro da tão família colônia masculina, e logo depois, ouvi sua risada e sua voz, sussurrada em meu ouvido.

- Avisei que não teria como escapar...

Eu mantinha meus olhos fechados até aquele momento, porém, juntei toda a minha coragem para abri-los, e me arrependi assim que o fiz. Bem a minha frente, com o rosto quase colado ao meu, estava uma das pessoas que eu mais amava na vida. Mas que agora, se transformara num completo monstro.

- O que aconteceu com você? - murmurei, unindo o restante de forças que me restavam, e segundos depois, a consciência já estava fora de meu alcance."

Despertei.

(Continua)