EDUCAÇÃO E DESTINO: UMA BALA NA CABEÇA?
Um menino chega à escola, arma do pai em punho, atira na professora e depois, em sua própria cabeça. Dez anos foram suficientes para conduzir um ser humano a um ato desta natureza.
Saibam de uma coisa: sofrimento envelhece, tira a perspectiva. Salvo casos específicos de motivações patológicas, só há dois únicos caminhos a serem trilhados para entender tal ato.
O primeiro, mais óbvio e superficial, porém não menos verossímil, seria a percepção errônea em relação à morte. O que significa para a novíssima geração esta poderosa entidade, temida em tempos remotos, vestida de negro com a foice em riste e a feição macabra em um rosto cadavérico? Banalizada em nosso cotidiano de todas as formas, apresenta-se esvaziada de significado, uma vez que, virtualmente, é proporcional à frustração de uma partida de vídeo game perdido.
Perdeu a vida, dá um reset e pronto. E, se sair vencedor, torna-se quase imortal, uma vez que sua vida, em jogo, se estende em créditos, podendo perdê-la várias vezes sem sumir da tela e receber, como resultado o maldito “game over”. Trabalhei numa instituição com crianças de uma comunidade favelada em São Paulo. Era comum, numa briga, um toquinho de gente, com sete, oito anos, dizer ao outro: “Quando sair daqui eu te mato na favela” ou “Tio, fulano me pegou o lápis! Vou matar ele!” Logicamente, a denotação do “matar” não ultrapassava os limites de uma pedrada ou uns sopapos, caso a interferência dos monitores não fosse capaz de aplacar a rusguinha.
Mas, fico imaginando aqueles meninos, cuja realidade por si só banalizava o verbo matar, o que fariam se tivessem acesso a uma arma? Crianças que vivem num ambiente violento não precisam de vídeo game pra adquirir uma percepção errônea do morrer. Além do que, dadas as experiências pessoais que muitos haviam tido em seu curto tempo de vida, matar e morrer são tratados como algo no mesmo nível do rompimento pessoal, do abandono, do simples “ficar de mal”. Enfim, ou estas crianças tem consciência do efeito inexorável da morte e dão de ombros, ou não têm consciência nenhuma. Qual a diferença entre perder um pai com um tiro ou ser abandonado por ele? Pelo filtro de um olhar infantil, acho eu, nenhuma. Tudo parece demonstrar na vida desta nova geração que, matar e morrer não passam de meros eventos, meras casualidades tão importantes quanto perder num jogo. Não se sabe a força do morrer, simplesmente porque não se sabe a força do viver. Este pode ser um caminho para entender o fato que chocou muito mais ao público do que a seus divulgadores. Vi no Jornal Nacional a mais absoluta fleuma. Um caso isolado de violência na escola, friamente relatado e prescindível de grandes aprofundamentos.
Um outro caminho seria o de se especular sobre as motivações de uma criança em querer matar a professora e as razões pelas quais um ser humano de apenas dez aninhos, mira uma arma contra a própria cabeça e põe fim a si mesmo, DENTRO DO ESTABELECIMENTO DE ENSINO, local onde pressupõe-se um centro de proteção e seguridade do jovem por excelência. Digo especular, porque não se apresentou qualquer informação na imprensa referente a isto, nem se demonstrou interesse em avaliar o fato.
Permito-me divagar: não me parece claro que a intenção última do garoto seria a de matar a professora. Também não está claro que as motivações teriam advindo de algum problema mental. Ter se matado indica, talvez, a sensação de culpa, ou a percepção imediata do ato cometido, coisa que, por falta de maturidade, só é possível ter depois de feito. Também pode ser interpretado como um ato de desespero, uma enorme necessidade de chamar a atenção para seu próprio sofrimento, ou até uma tentativa desesperada e inconsciente de pedir socorro. E, se considerarmos a possibilidade de realmente ter sido um ato suicida, matar-se poderia ser a forma de culpabilizar diretamente à professora (ou a escola) por sua morte prematura, deixando claro a todos que o problema está ali, que a pista para entender seu ato está lá.
De qualquer forma, acho que nenhuma destas incômodas vias de análise poderão ser levadas em consideração. O menino estava louco, ponto! Foi uma fatalidade e o alvo primeiro de sua loucura, a professora, pode ser vista como a vítima natural de uma criança com sérios problemas psicológicos ou neurológicos, afinal de contas, a escola é a segunda casa e a fragilidade da instituição ao se expor aos valores externos os quais não são, "em hipótese nenhuma", referendados pelo ambiente educacional, faz do ambiente escolar o verdadeiro pára-raios de toda a crise de valores da sociedade. Só se esquecem que, independente da “realidade interna” do ambiente escolar, uma instituição sensível às demandas de sua comunidade e um professor humanizado (que significa muito mais do que bem formado, moderno, descolado, bem pago, o caralho-a-quatro) é sim, capaz de perceber algo de errado e lançar mão do reconhecimento e da sua responsabilidade presumível para mobilizar agentes contra uma possível tragédia. Falo isto com um bolo na garganta e uma comoção que vão além da consternação pela criança ou da solidarização diante da professora atingida. E me obrigo, por uma questão de princípios a relatar minha experiência pessoal.
No ano de minha terceira série primária, mil novecentos e oitenta e três fatídico em minha vida pessoal, as coisas iam de mal a pior. Estava tudo às avessas. Venho de família numerosa, sendo o último de uma prole de oito, todos vítimas dos rompantes terríveis de violência de uma mãe que, hoje temos consciência, era portadora de alto grau de demência, com todas as características que o termo médico pode nos reportar. Estávamos em polvorosa diante da expulsão de casa de uma de nossas irmãs. Motivos, bem, não cabe aqui relatar. O fato que interessa é que, a única testemunha ocular do momento em que minha mãe a espancou e a jogou literalmente na rua, para minha desgraça, fui eu. E, embora dias depois, tudo se acalmasse e todos parecessem tentar se esquivar do ardil e da crueldade de nossa matrona, eu, com apenas nove anos, havia sido eleito a bola da vez. Tudo para dissuadir-me a relatar qualquer coisa que pudesse contrariar a versão “oficial” de minha mãe. Passei meses sendo maltratado. Comia pouco, muito pouco. Minha mãe colocava-me em frente ao prato e, num ritual grotesco, impedia-me de comer. Dormia mal. Por muitas madrugadas era acordado ao puxões de cabelo e palavrões sussurrados e imergia num inferno de ameaças e tortura psicológica, até que, por fim, já não conseguia dormir, esperando começar a sessão. De nada adiantava tentar contar ao meu pai ou aos irmãos. Tudo era negado e desdenhado por ela, como normalmente se faz com o relato de uma criança. Acho que a tranquilidade de minha mãe nestes tempos era a maior recompensa que ela poderia oferecer a todos e isto era o que a eles importava.
Seria de se esperar que tal situação se refletisse em meu desempenho escolar. Apatia, hiperatividade, introspecção... tudo isto devia ser bem visível ao meu professor, a julgar por seu interesse por meu caso. Que fique claro, venho de um tempo em que a escola e o educador nada tinham de sofisticado em se tratando de pedagogia e didática. Professores ensinavam e pronto. E o meu, o memorável professor Benedito (parece nome fictício, já que era Benedito e era negão, nada mais clichê) não fugia da regra.
Ainda neste período, selecionavam-se as turmas pela carinha dos alunos. Se tiver cara de pobre, andar malvestido e for arteiro, vai pra sala do sargento. Se for branquinho, bonitinho e pudesse pagar o micro-ônibus, vai pra professorinha. Eu era da sala do sargento.
E o tal sargento Benedito, não deixava escapar nada. Tentava de todas as formas entender o comportamento de cada um de seus alunos. Uma sala com mais de quarenta alunos! Já era ele, mal pago, assim como os de hoje. Já não tinha condições para sua formação e nem o Estado lhe oferecia cursos de aprimoramento, disso tenho certeza! Já não dispunha de boa infraestrutura e a merenda não passava de uma bolachinha chocha de coco e um horrendo leite de soja.
Tentava o são Benedito de tudo pra fazer a gente aprender. Minha letra era um lixo? Caligrafia! Não tinha atenção? Leitura! Caderno? Olhava toda semana! E bagunça? Bastava-nos a cara feia que fazia. Nossa!
Hoje lembro que, apesar de tudo ser tão quadrado, ninguém abandonou as aulas. A cada desvio nosso, sempre a mesma pergunta em particular: “Moleque, vem cá? Que que tá acontecendo?” “Toma jeito, rapaz! Tem vergonha, não?” E tome bronca na reunião de pais, tome perguntas, tome questionamentos... dureza o Benedito!
Meses depois de tortura e ódio velado, levaram-me ao limite. Eu não faltava à escola e, todo dia, aquela cara desconfiada do professor, as broncas por falta de atenção... até que tudo veio à tona.
Cheguei a um grau de fraqueza física que já não era mais possível perguntar aos pais e orientar pacientemente minha mãe a zelar por minha alimentação. O inspetor, um senhor muito simples, o Wladimir, viu-me subindo as enormes escadarias da escola de quatro. Me lembro de meu cansaço e minha desesperança. Recusava-me a faltar à escola, por razões óbvias. Era meu refresco do dia, meu descanso. Mas, já não dava mais.
Imediatamente, meu professor foi chamado. Providenciaram carona com uma professora do ginásio que me levou até minha casa, com o recado veemente de que deveriam comparecer à escola a minha mãe e meu pai. Não sei o teor da conversa, mas deve ter sido uma enrabada e tanto. Meu pai voltou todo apertado, analisou minha situação pela primeira vez e, no outro dia, depois de discussões terríveis com minha mãe, fui levado ao médico. Estava muito mal. Anorexia nervosa, foi o que disseram. Desnutrição aguda. Cardiopatia e distúrbios do sono. Viraram-me do avesso. Os desdobramentos de toda essa história não importam aqui. Apenas o fato de que, o brucutu, o sargento, o professor ultra-conservador foi quem lutou por mim, foi quem salvou minha vida!
E, o que isto tem a ver com a história do menino que deu um tiro na professora e depois se matou? Que tem a ver o cu com as carça, Edgar? Pra mim, tem tudo!
Tivesse eu uma arma em casa, tivesse eu a oportunidade de dar vazão à minha raiva e ao meu medo, apesar de toda a rigidez da escola PÚBLICA em que estudei, apesar dos poucos recursos didáticos, pedagógicos e materiais daquele negro (coisa rara na época um professor negro), negro sim! Falo com todo o carinho de meu coração, não seria, em hipótese alguma ele ou a escola, o primeiro alvo de uma atitude inconsciente, violenta e desesperada.
Alguém que com certeza, detinha em sua alma e em seu coração a maior das armas que um educador pode ter para levar até o fim seu objetivo e sua competência, alguém cuja vida deve ter passado por inúmeras dores e vicissitudes que um ser discriminado, estigmatizado, pode ter passado, alguém humano! Solidário! E preocupado com o outro de fato, salvou minha vida (tenho que repetir isto!).
Enquanto educadores hoje, com discursos sofisticados de lamentação e justificação de sua inércia, tem se tornado alvo do ódio alheio, aquela geração de velhos, atrasados, conservadores e todos os estigmas aos quais hoje carregam, que eu me lembre, com raras exceções, não desistiam de um aluno facilmente. Não usavam da avaliação e da autonomia pedagógica, como subterfúgios para deter o mísero poder a que necessitam os pequenos crápulas, que usam o véu da qualidade no ensino apenas para cooptar a opinião pública em suas greves por melhores salários.
Estes “velhos” educadores de meu tempo, fizeram greve, sim. Na época em que o prefeito de São Paulo era o bêbado Jânio Quadros. Pagaram o preço pela exigência de dignidade com seus cargos. Meus queridos professores foram TODOS DEMITIDOS, apesar do apoio de toda a comunidade. Foi uma luta pra retomarem seus cargos. Mas, aqueles sim, mereciam e faziam jus a um salário digno! E venceram, felizmente. Fiz panfletagem, fui à rua, com orgulho. Foi esta a resposta que dei a proteção recebida do Benedito e de tantos outros que passaram por minha vida. Hoje, preocupam-se os professores com a ‘verticalidade do processo de avaliação’. Pro inferno! Anos de “linearidade” , com a escola decidindo a quem passar sem nenhum parâmetro, fizeram uma geração inteira de diplomados no ensino médio sem saber fazer o “O” sentando na areia! E isto para o benefício de um Estado preocupado com números e não com resultados! O que pensam estes educadores? Chamam a isto de “luta pela qualidade na educação”? Em que, eu pergunto, ter um parâmetro curricular e de avaliação mínimos, atrapalha o ensino? É com isto que estão preocupados?
A Educação passa, na verdade por uma enorme crise de credibilidade! Pudera! Se nem o analfabetismo do aluno secundário pôde ser capaz de fomentar o questionamento à "linearidade" e a "autonomia" das instituições no processo de avaliação; se nem isto é percebido ou questionado, que dirá um aluno, cujo caso extremo requer uma atenção especial? Um professor ser o primeiro alvo de uma criança com problemas é sim, algo sintomático que tem que ser avaliado pela categoria! E que se faça o "mea culpa"! Que possam buscar entendimento sobre este enorme hiato entre o meio educacional e a sociedade! Que saiam do senso comum e das argumentações batidas de auto-insensamento e auto-hilação! Que sejam capazes de considerar as razões pelas quais a escola tem se tornado o primeiro alvo de destruição para alguém prestes a explodir de ódio e de indignação. Coloco-me solidário ao menino que fez isto da mesma forma que conclamo a própria professora desta criança a se solidarizar também com ele. Assim, quem sabe, teremos uma sobrevivente, capaz de sentir o peso de sua profissão. Não se trata aqui de culpá-la, mas de alertá-la! De não dormir de noite, preocupada com aquele aluno que mal abre a boca na sala, de descabelar-se, como meu homenageado professor Benedito e todo o corpo docente que se mobilizara por mim, um entre mais de quarenta na sala, um entre mais de dois mil na escola. Assim como fizeram por tantos outros colegas que, vez por outra, ainda se juntam pra lembrar destas figuras importantes em nossas vidas. Alunos que não esquecem da ATENÇÃO recebida, muito mais do que o carinho, a adulação ou a especulação pessoal da vida particular de alunos e colegas para melhor dominar o meio.
Quem terá coragem de atender a este pedido? Em nome desta geração, qual educador levará aos órgãos representativos a premência de uma autocrítica? Ou será que teremos que esperar que se aposente esta leva para, quem sabe vir gente menos pirotécnica e mais realista?