Sonho de uma noite sem modernidade: o português e o sentimento da multidão
Paula Regina Scoz Domingos Damázio
UFSC
A história da humanidade é atravessada por diversas representações do real, conforme a percepção do tempo e do espaço dentro da dialética entre o homem e o meio. Através dos tempos o homem remodelou-se a cada nova perspectiva dessa dialética que se modificava, de modo a criar símbolos a uma nova simbologia emergente. A modelação das manifestações artísticas das culturas correspondem até certa medida ao tipo de experiência histórica que está sendo vivenciada. Dentro desse caleidoscópio humano vê-se um bailar de cirandas nas formações das prateleiras humanas com seus altos e baixos, desde os reis e os seus plebeus, na concepção maniqueísta da sociedade medieval, até as indústrias com os seus proletários, no tipo de relação social dos dias de hoje, o momento da modernidade. A representação do homem moderno oferece mais um quadro para compor o mosaico das várias camadas e formas desse camaleão de duas pernas.
O renascimento do homem no homem moderno representa a experiência da revolução dos modos de produção e da explosão do instantâneo. O período de destaque do começo dos tempos modernos, tirando os primeiros passos ainda frágeis nos séculos XVI e XVII, deve-se à Revolução Francesa e a promulgação de uma nova ordem social que modificou as estruturas tanto econômicas quanto políticas, abrindo espaço para a experimentação de novos modos de produção de massa. O século XIX é um momento de suma importância para a construção do homem moderno reverberando em sua dicotomia de ser um ponto de interstício entre o passado modo de vida e de um novo modo ainda não completo e não inteiramente apreendido. O novo mundo que se abre é um mundo onde refulge o barulho das máquinas noite e dia, em que se abrem as estradas ferroviárias com a rapidez dos trens, enfim é o momento da explosão. Esse é o “espírito moderno” que reduz o homem à máquina e que cria mais um modo de o domesticar e de amortecer a sua vontade de potência, que segundo Nietzsche torna a consciência do homem “permanentemente tomada por um afazer seguido de outro” (NIETZSCHE, p.123) servindo para preencher o tempo e educar no sentido da impessoalidade. Dentro desse século controverso pode-se encontrar tanto argumentos a favor da modernidade e de tudo que ela acarreta, e por outro lado, os que a vêem como nociva ao homem por inibir sua vontade criadora de valores.
O grande centro irradiador da cultura moderna, a França, produziu com autores como Baudelaire as simbologias do homem moderno, que observa o processo da modernização naquilo que aparece de imediato, a aglomeração nas grandes cidades, ou seja, a multidão. O homem da multidão, como o imaginou Baudelaire, é o flâneur, aquele que vaga sem objetivos com a curiosidade da criança e o olhar convalescente, que elege o circunstancial como matéria para suas elucubrações naquilo que há de mais fugaz, a moda. Esse herói da modernidade é um aristocrata do espírito, que se distingue da massa, e que viaja através do “grande deserto de homens”. A representação da modernidade para Baudelaire é a de um momento extremamente positivo, mas que entrevê na massificação um perigo capaz de causar a total trivialização e com isso o fim da arte.
Os diversos posicionamentos com relação à modernidade e a crítica a esse processo vão para além dos grandes centros como França e Londres, sendo também fonte de embate na península ibérica. Essa representação histórica que ao poucos cria sua simbologia e valores penetra por todos os meandros artísticos conferindo também ao escritor a tarefa de problematizar o comportamento e as modificações que um novo modo de vida confere ao homem. As Conferências do Cassino (1871), em especial com no discurso proferido por Antero de Quental, observa-se que a modernidade é avaliada no sentido positivo, mas que representa uma potencialidade que ainda não se efetivou em Portugal em virtude da falta de uma classe média, burguesa, que pudesse criar bases para a tríade essencial da modernidade, a ciência, a democracia e a indústria. A crítica feita por Antero em favor da modernização de Portugal rompe com o passado das grandes navegações e busca em outro passado, o da baixa idade média portuguesa, a experiência e a matéria para a regeneração de Portugal, aliada a ética cristã, na trajetória de voltar a ser uma nação sobre nações. A análise de obras literárias de três outros autores portugueses como Camilo Castelo Branco, Cesário Verde e Eça de Queiroz podem servir na criação de um panorama representativo da relação de Portugal com a modernidade, que, segundo Antero, é uma modernidade sem modernização.
As obras de Camilo, Amor de Perdição (1862), Cesário Verde, O Sentimento dum Ocidental (1888) e Eça de Queiroz, As cidade e as serras (1901) traçam um perfil representativo de quase 50 anos no qual o estilo literário passa de romântico à realista/naturalista, com a nova geração muito bem representada por Eça e Antero. Em se tratando da poesia de Cesário Verde, a ligação de uma expressão do eu-lírico com o meio ao qual está submerso fica bastante evidenciada, podendo-se analisar a obra como uma manifestação impressionista dessa relação do fora no dentro. Com a perspectiva da constante dialética da modernidade, como aquilo que transforma, mas também destrói, pode-se problematizar esse elemento de tensão dentro das obras dos autores portugueses de maneira a experienciar o processo de modernização (ou segundo Antero, de não modernização) e principalmente o processo do desdobramento da modernidade portuguesa, levando em conta o papel de referência para a produção artística e intelectual brasileira no século XIX. O processo de análise do elemento “modernidade” dentro das obras cria uma rede de entrelaçamentos de diversas perspectivas, como visto anteriormente podendo dividir-se entre um posicionamento positivo perante as transformações aliadas ao momento da “explosão”, como também um posicionamento que se afasta desse movimento buscando no modo de vida anterior, na imagem benigna da tranquilidade e estabilidade do campo como modo de fuga dessa constante sedimentação e perda de valores em prol de uma nova representatividade das relações sociais e econômicas.
O romance de Camilo, Amor de Perdição, se enquadra dentro da estética romântica, vindo a ser um dos clássicos do gênero, encontrando receptividade por parte do público ainda hoje. A obra segue a proposição romântica do amor impossível que não se concretiza em vida, e que encontra na morte a solução para o fim da angustia e sofrimento pelo amor condenado. O drama de seus personagens principais, Simão, o jovem revolucionário e Teresa, que prefere o claustro a casar-se com outro homem, está repleto de cenas típicas do exacerbamento romântico, mantendo-se fiel ao gênero com o fim da morte irredutível. Alguns poucos aspectos da obra são relevantes para a análise da questão da modernidade, que se reforça mais pelos seus valores não-modernos do que por propor uma abordagem de caráter problematizador do momento histórico, que já em França estavam prestes a produzir textos como o de Baudelaire e o seu Pintor da vida moderna.
A caracterização do personagem Simão, transformando-se através do amor de revolucionário republicano à pobre apaixonado, evidencia a grande importância auferida a esse sentimento como único mobilizador possível dentro do meio social pré-moderno de Portugal em que o direito e a igreja estão em uma mesma mão. Simão, desse modo, passa de marginal a bom moço, concretizando o ideal burguês de mediocrização e acomodação em relação às questões polícias. O ponto modernizante que aparece na obra deve-se à reivindicação da liberdade amorosa de escolha, frente à imposição totalizante na prática dos casamentos. Além da problemática amorosa há na obra a introdução do elemento plebeu, com a figura de Mariana, que ao contrário de simbolizar algum tipo de apreciação em favor de uma mudança na estrutura social, mostra-se ao contrário, favorável a esse tipo feudal de relacionamento. Nesse caso o amor não aparece enquanto mobilizador, mas no sentido de aprovação da representação da estrutura política e social. Há um ponto da obra que remete à questão da modernização de Portugal, no diálogo entre o pai de Simão, Domingos Botelho e sua mãe, Rita Preciosa, em que esta, recém chega da corte indo ter a Vila Real, profere a avaliação de se estar no século XII. Essa nota proferida por uma personagem vinda das altas esferas onde refulgem o luxo da corte é contrastado com o meio “parado” de uma região afastada dos centros urbanos, mostrando de relance a não-modernização de Portugal.
Já a poesia de Cesário Verde apresenta uma outra avaliação estritamente relacionada com a experiência da modernidade, sendo considerado um dos precursores do modernismo do século XX ao pôr em poesia a expreriência do cotidiano numa linguagem inovadora. A sua poesia se manifesta enquanto reflexo transfigurado da realidade de modo a apreender esse espírito moderno que erra pela cidade, na Lisboa do século XIX. O poema O sentimento de um ocidental demonstra de maneira clara o mergulho do eu-lírico no contato com a modernidade, num constante embate com os símbolos que sobrevoam e angustiam esse “eu” aprisionado nas garras da moderna condição. Na extrapolação do sentimento de um “eu” para todo o ocidente que se moderniza, nesse homem do ocidente que vaga pelas ruas há sempre a sombra de grilhões. No poema de Cesário a modernidade, e em especial a cidade, é sinônimo de prisão que desperta o “desejo absurdo de sofrer”. A estrutura do poema, de fragmentação, reforça o tema que remete à vivência de se estar num todo sem nunca poder compreendê-lo por inteiro.
O eu-lírico vagante de Cesário, ao contrário do austero flâuner de Baudelaire com a total positividade da experiencia moderna, não encontra mais que a sujeira, a desigualdade e o emparedamento nesse grande mar humano. Desde às seis horas, hora do fim do dia de trabalho, até a noite fechada, esse eu se embrenha pela multidão, e ao encontrar pelo caminho tantos e vários rostos divaga pelas impressões que nascem desse forçado encontro. A modernidade se mostra pelo prisma daquilo que espreme, oprimindo o ser e o encerrando na desesperança onde nem as quimeras são mais possíveis, nem um passado glorioso nem um futuro onde se possa viver em “habitações translúcidas e frágeis”. Para Cesário, no grito do seu “eu” ocidental, o homem não possui mais nem a ingenuidade de sonhar do passado e nem terá como desembrenhar-se das amarras desse contínuo ir e vir, insosso e mau cheiroso, onde rodam assim como o relógio a contar as horas as inúmeras máscaras desfiguradas de toda humana condição... a velha e a criança, a trabalhadora e burguesa a prostituta, sob lampiões que perturbam, a massa irregular, os bêbados, o mendigo, tudo rodando e rodando, para ir desaguar no mar de fel, sem se ter lugar, sem talvez nunca ser. Cesário canta a dor de ser um pedaço, uma gota, sem nem mesmo se saber se é, sem nunca poder ser outra coisa.
Por fim, a última análise a ser proposta acerca da experiência da modernidade trata da obra de Eça de Queiroz, A cidade e as serras, obra póstuma de 1901. Eça, junto com Antero, foram os promulgadores de uma nova estética literária de cunho naturalista e experimentalista seguindo na esteira de Flaubert, Zola, etc. A postura crítica perante a sociedade de modo geral sempre se fez presente nas obras de Eça, se tornando um pouco mais amena em suas obras finais. A cidade e as serras sinalizam uma certa idealização romântica envolvendo a problemática da modernidade. No processo de construção das personagens e das mudanças que sofrem ao longo do romance vê-se o desenrolar de uma proposta de modernidade firmada na junção entre campo e modernização. Nessa obra, Eça não imagina um Portugal transformado em Paris, na imagem negativa da profunda indiferença e solidão que desumaniza o homem, mas antes um Portugal rural fortalecido.
Com a construção da dialética serra x cidade, Eça tematiza vários traços da modernidade conforme apreendidas por seus personagens Jacinto e Zé Fernandes. A urbana Paris apresenta-se sob dois aspectos, primeiro como o lugar consagrado, único reduto civilizador, na mesma perspectiva positiva do flâuner. Nesse primeiro momento traçado por Eça, Jacinto apresenta-se como um dândi, rodeado dos aparelhos mais sofisticados para os mais diversos usos, com todos os luxos possíveis, enfim a figura do consumista inveterado, do homem moderno do século XIX. Mas Jacinto é acometido pelo pessimismo que o seu excesso de fartura não consegue suprimir, causando a morte da imagem da cidade como único lugar onde a vida seria possível, e abrindo espaço para o contraponto da serra, ou seja, da não modernidade. O segundo momento instaura-se com a mudança do personagem Jacinto do centro para a serra, e consequentemente a perspectiva adotada muda em prol de um retorno aos modos ancestrais de vida, escolhendo a serra como reduto do homem moderno por excelência. Na serra, Jacinto se torna um agente modernizador “como um rei fundador de um reino, e grande edificador” aliando ao mesmo tempo os costume de uma vida pacata com os produtos da moderna civilização. A proposta de Eça de juntar o que há de modernidade com o que há de primitivo parece um solução um tanto romântica, mas que não deixa de ser a construção de uma crítica à modernidade às vezes sentida como a grande decadência do homem.
As obras dos autores portugueses do século XIX vistas através de suas representatividades em relação à modernidade, mostram as mais variadas formas de se pensar a respeito do que é ser um experienciador da vida moderna. Seja omitindo-se, seja sentindo inteiramente toda a dor que ser moderno pode causar, ou ainda seja sonhando um sonho em que o homem volte a um tempo onde o tempo não passe. O homem multidão se fez, quebrando nosso olhar em mil pedaços, traçando em nossos rostos o véu do ininteligível. Ser moderno é viver sobre cacos, é pisar fundo sentindo a dor, querendo sorrir qualquer canção, é ver o sol a todo momento, mas ser escuridão ao mesmo tempo. Ser moderno é ser insuperável, é cantar num vaso quebrado...
REFERÊNCIAS
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
BRANCO, Camilo Castelo. Amor de perdição. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1980. 218 p.
COELHO, Teixeira. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. 212 p.
QUEIROZ, Eça de. A cidade e as serras. São Paulo: Editora Núcleo, 1994. 175 p.
MACEDO, Helder. Nós, uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Editora Presença, 1999. 191 p.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma polêmica. São Paulo: Companhia Das Letras, 2004. 179 p.