Um hino ao Amor dentro da Dor: Florbela do jardim solitário
Paula Regina Scoz Domingos Damázio
UFSC
A expressão poética muitas vezes representa a necessidade humana de comunicar as inconstâncias sensoriais apreendidas do imaterial, do transitório e das reverberações psicológicas dos seres humanos em face da realidade assumida como real. O processo da existência vivenciado pelo humano, demasiado humano se fragmenta e explode na ânsia de criar quimeras ideais, de sonhar para além dos meios, na tentativa de sobreviver à morte, símbolo da finitude dos corpos e das mentes. A fugacidade da vida e a intensidade com que se procura vivê-la geram no seio do ser os conflitos eternos no qual estremece a chama do Amor como idealização que une a esses dois grandes sentimentos internos, de tudo que passa e de como passa.
A idealização do Amor permeia a atividade artística humana como a tábua de salvação e elevação do simples ser sofredor ao bem-aventurado amante. No amor encontram-se escondidas as mais belas imagens de sons e cores, num espaço/tempo paralelo que sobrevoa o monótono viver dos homens comuns. Almeja-se, idealiza-se o momento e o acontecimento do amor como experiência de vida, experiência dos sentidos e mente em elevação por excelência. As caracterizações desse amor ideal como hoje ainda é encontrado,- lembrando o imaginário do amor eterno além da vida, etc -, modelou-se a partir das antigas lendas medievais, podendo ser lembrado a primeira história de amor enquanto vivencia “extra-real”, a lenda de Tristão e Isolda.
O Amor, ideário supremo e sublime da cultura ocidental, torna-se modelo, ponto de chegada para os homens, que se espremem entre a aparente realidade “objetiva” e entre os seus desejos, sonhos e ideais que permanecem no horizonte, na gana de poder ser e ver para-além-de. Dessa tensão existente entre ter e ser, entre amar (existir para fora do real) e o permanecer (dentro do cotidiano e da “coisificação”) cria-se um entre lugar no qual o amor aparece no horizonte, porém deságua e se incompleta a cada instante, o amor não saciado que se converte em solidão, desespero, escuridão dentro e fora de si.
Na poesia portuguesa do final do século XIX, encontramos a obra neo-romântica da poetisa que tratou como ninguém a experiência do “entre-amor”, Florbela Espanca. Há muita especulação acerca da reflexividade da poesia à vida pessoal da poetisa, como se fosse necessário um álibi (e não o é) para a existência dos conflitos e sonhos de que pulsam as poesias de Florbela. A poesia viva de que fala José Regio é em Florbela a existência incendiária do ideal do Amor, da fuga a um novo cosmo feito de flores e sonhos dourados. Essa experiência é sentida como expressão poética do eu lírico sincero, que se mostra inteiro, com suas veias abertas.
Desde seus primeiros livros, os sonetos de Florbela reverberam sentimentos e desejos humanos do amor, do sonho e da morte embalados em sensualidade e erotismo. As obras dos primeiros anos conservam certo comedimento de modo a coroar através da metáfora do sonho, ironicamente o lugar paralelo onde tudo se concretiza, a idealização do Amor supremo e sublime que se espera chegar, como uma flor embalada ao vento esperando ser fecundada de vida, envolta em uma sensualidade contida, doce, inocente de seus desejos. Em Charneca em Flor, livro publicado postumamente (1931) a explosão da sensualidade e do erotismo são tomados conscientemente pelo eu-lírico que devasta e se aprofunda ainda mais nesse entre-lugar, ora exaltando o ideal que se apresenta ao alcance das mãos, ora caindo no abismo da escuridão e da solidão da alma que vaga e do corpo que erra.
A explosão do eu-lírico que se desabrocha ao amor, e que não deixa de exaltar a si mesmo como também parte desse amor nascido, aparece no soneto “Versos de Orgulho” do livro já mencionado Charneca em Flor.
O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.
Porque o meu Reino fica para além …
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus !
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém !
O mundo ? O que é o mundo, ó meu Amor ?
- O jardim dos meus versos todo em flor
A seara dos teus beijos, pão bendito…
Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços…
- São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito.
As duas primeiras estrofes das quatro que compõe o soneto se dirigem ao próprio eu-lírico enquanto ser de exceção: “O mundo quer-me mal porque ninguém/tem asas como eu tenho!”, “Porque eu sou Eu e Eu sou Alguém”. Nesse primeiro espaço o eu-lírico edifica uma muralha entre o mundo “real” e o seu mundo, que se mostra superior por ser perpétuo enquanto “Reino do além”, e é dentro desse Reino que nasce, pelas próprias mãos de Deus, o eu-lírico como Princesa entre plebeus na torre de orgulho e de desdém. A escolhida por Deus para ser Princesa da torre de orgulho e de desdém traz ainda personificada em seu corpo as belezas da natureza: “trago no olhar os vastos céus” como também “os oiros e clarões são todos meus”. Por portar tantas qualidades superiores que a separam naturalmente dos simples, plebeus de seu reinado, e que a envolvem na torre de orgulho em si e de desdém ao fora de si, o eu-lirico encontra o motivo do mal que se move contra si: o fato de ser alguém dentre ninguéns. As asas quem as tem é somente o ser andante, águia que sobrevoa os pequenos e grandes da terra, e que vislumbra um horizonte bem maior, o ser poeta, o ser que dança consigo mesmo.
Nos dois últimos tercetos aparecem pela primeira vez a alusão ao amor fora de si, a outra parte que compõe a exaltação à elevação através do sentimento do amor, que neste poema aparece como algo palpável, próximo do eu-lírico. A redução do mundo ao mundo do eu-lírico, que surge como contraponto a algo estranho e mal-quisto, agora se restringe ainda mais à própria criação dentro dessa criação divina: “o jardim dos meus versos todos em flor.” que se completa com a outra parte do amor com “a seara dos teus beijos, pão bendito...”. O mundo representa a união desse eu de exceção e do amor ideal alcançado, o amor e o eu-lírico se completam pelos êxtases, sonhos e cansaços, na imagem final no qual o mundo: “São teus braços dentro dos meus braços/Via Láctea fechando o Infinito.” O poema desabrocha a medida que se alcança perceber o movimento de entrelaçamento desse eu-lírico descrito como à parte de um mundo de plebeus, que se refugia em sua torre de orgulho, mas que se entrega a outro mundo dentro do qual o eu e o amor se unem feito um só. Com isso a poesia do último momento de Florbela parece se abrir a sua própria força e sensualidade, jogando ao ares os rasgos de prazer por se sentir possuída pelo amor, que busca mas que nem sempre a acompanha.
Os Versos de orgulho são os versos da idealização ainda mais intensa do amor, pois o amor que se idealiza na imagem do outro fora do eu aparece no poema antes como um casamento entre a escolhida pelo dedo divino, portanto pura e da mesma forma ideal, e o amor, ponte inqüestionável apontada para o céu, que se completam para se tornar tudo dentro do nada. É nesse sentido que a poesia de Florbela se torna mais intensamente erótica e sensual, desvendando os lances de abandono que são ao mesmo tempo conscientes por parte do eu-lírico mergulhado dentro de si, dentro do próprio amor que se imagina, dentro da sua finitude transcendida em infinito.
Em outro poema do livro Charneca em Flor percebe-se o eu-lírico num mesmo movimento no sentido do amor por si e de si, em “Amar!”
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
A imanência, a finitude de cada verso (vida) trasborda nos brados do eu-lírico que despeja o desejo de amar tudo e todos, de amar o Amor por amar. Amar até a perdição, de si mesmo, do céu, amar tanto e não amar nada. Rasgar as lembranças do passado, nem o que se recorda nem o que se quer esquecer, nada fica, tudo é indiferente. O amor feito roda, que roda dentre e fora, o amor que engole, o amor que muda, e não fica. A flor da primavera, a vida uma só primavera, que convida a cantar, florir com sons, feito o amor. Para no pó ter por fim, indo ao pó pelo último sopro de luz, feito andarilha, caminhante que se perde para se encontrar.
Florbela convida a descer nas profundas do ser, nas ânsias malogradas, no abandono de si dentro e fora do mundo. O seu meio caminho, meio destino, sabotado talvez, é criador da poesia do entre lugar no amor, do quase-amor que é completo em si por ser incompleto. Sentir-se dentro do turbilhão dos desejos mais recônditos, sonhar sonhos de flores e pétalas caindo, correr pelos trigais, emaranhar os corpos, ser o céu por um instante, pobre céu humano tão humano em seu tão pequeno instante. Florbela, que desabrocha, flor bela da “Charneca em flor”.
Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruta, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
No final do seu sonho Florbela deixou aos homens a dor transformada em amor, do chorar o choro de lágrimas de beleza, e as imagens mais bonitas desse longo ideário de quimeras escondidas, do fio de amor que corre em cada um, de talvez por mais de um instante, ser além, ver além, a si, ao outro, a vida, a nossa trama. E lá em cima talvez uma estrela brilhe...