O ALMIRANTE IMORTAL (SOBRE JOÃO CÂNDIDO)

ALMIRANTE IMORTAL

Não vejo ninguém que defenda, nos dias de hoje, a escravidão no Brasil colonial ou de alguma outra forma. Mas houve muita gente que a defendeu (e talvez ainda exista). Mas existem homens e mulheres na história que a todo o tempo se levantaram contra a escravidão e contra práticas escravistas. Aliás, a escravidão ainda se faz presente em nossos dias, com suas estatísticas ainda desfavoráveis aos negros e à predominante presença dos brancos em melhores posições sociais e econômicas no Brasil.

O cenário é o Rio de Janeiro, e o ano 1910. O motivo é simples e nem é revolucionário. Os marinheiros, que nesta época não possuíam o prestígio de hoje, revoltaram-se contra os castigos humilhantes e extremamente doloridos que sofriam por pequenos “delitos” ou indisciplina. A prática era comum e normal. Anos depois de abolida a escravidão negra no Brasil, a marinha era ainda vítima de castigos do tempo da prática escravista. Eram as chibatadas, que não só feriam o corpo, mas doíam no mais profundo da alma e da dignidade do cidadão brasileiro. Um marinheiro negro chamado Marcelino recebeu o castigo sob os olhos assustados da tripulação. As duzentas e cinqüenta chibatadas foram aplicadas, mesmo após o marinheiro desmaiar. Foi o fim. Liderados por João Cândido Felisberto, são tomados os principais navios de guerra do Brasil. O motivo, como já disse, não era nada de revolucionário: queriam o fim da chibata, a abolição total dos castigos ultrajantes impostos aos marinheiros. Era inadmissível num país como o Brasil, uma república que já havia rompido com as práticas e políticas do tempo colonial e imperial. Eram castigos que não possuíam razão de ser. Não havia explicação alguma para que, cidadãos brasileiros fossem humilhados com punições tão contraditórias com os novos tempos. A princípio o governo tomou um susto, pensando tratar-se de um levante político, mas percebendo-se os motivos, negociou-se, e após várias reuniões decidiu que os dias da chibata estavam acabados. Ao governo não interessava prolongar a revolta que já havia assustado o Rio de Janeiro, mas também não poderia se expor como fraco. A população do Rio de Janeiro estava sem entender direito o que acontecia ao ver os navios brasileiros apontarem canhões para sua própria terra. Também o alto comando da Marinha, que não era composto de negros e pobres, não suportava a insubordinação, e descontente com o fim do movimento, juntamente com o presidente da República, à época o Marechal Hermes da Fonseca, acusam seus líderes de conspiradores e os prendem. Os revoltosos já contavam com uma vitória total. Mas na verdade haviam sido enganados pelo governo por uma falsa anistia. Desarmados, até mesmo esboçam uma reação, mas não conseguem êxito.

Parecia um triste fim, mas a chibata não voltaria. Nisto consiste a grande vitória do movimento, que mesmo traído pelo governo deixou sua marca na história, eternizando o nome de João Cândido. Não se criou ao redor de sua figura um grande mito, porque ele mesmo fez questão, de, durante sua vida ser apenas o João, como gostava de dizer. A um repórter teria dito que queria apenas ser um “João-ninguém”, porque era um homem que precisava mais de dinheiro do que de publicidade. Sua vida a partir desse momento não seria diferente dos perseguidos políticos de toda a história. João Cândido é preso de forma desumana numa ilha onde vê morrer seus companheiros, é enviado para a Amazônia e depois de muito sofrimento, volta ao Rio de Janeiro para viver humildemente, trabalhando doente depois de sofrer muito com a vida particular. Passou quase anônimo num cais do Rio de Janeiro vendendo peixes. Sem apoio da marinha a quem serviu ou mesmo do Estado brasileiro, João leva sua vida como um simples cidadão. Quando já mais idoso, é constantemente assediado pela imprensa, estudiosos e jornalistas querendo seus depoimentos. Ele, no entanto, não parece muito interessado em si mesmo a não ser em continuar sua vida. Talvez não tenha olhado a si mesmo como um herói, mas apenas alguém que cumpriu sua obrigação.

João Cândido quando marinheiro, foi à Inglaterra, e lá ficou entusiasmado com o tratamento oferecido aos marinheiros daquele país. Não havia castigos e muito menos havia algum tratamento desumano ou degradante, muito ao contrário, eram bem alimentados e tinham plenas condições de desenvolver um bom trabalho. Impressionado, talvez João tenha voltado ao Brasil pensando nas condições dos marinheiros brasileiros. Quanta diferença e quanta injustiça. Não creio que tenha sido a comparação entre o tratamento de lá e de cá que o tenha feito assumir o posto de líder da Revolta da Chibata, mas sim a degradante vida que levavam. Mas ver o diferente possibilitou a ele, certamente, uma reflexão sobre como poderia ser tudo de outra maneira. João era então um homem do mundo. A experiência como marinheiro lhe dava amplas possibilidades de ser respeitado e de perceber o que teria que ser modificado, mesmo contrariando a rígida disciplina e hierarquia militares.

A memória de João Cândido está cada vez mais presente na sociedade brasileira. Não chega a ser um herói ou um mito, mas é um exemplo de homem honesto, que não suporta ver a injustiça. A sociedade brasileira e a história têm lembrado mais do nome de João Cândido, além do simples líder da Revolta da Chibata, mas como um homem que merece destaque maior. João Cândido na verdade, é um capítulo de nossa história, um passado que possui reflexos importantes em nossos dias, quando vemos tantos seres humanos castigados por injustiças várias. Seu exemplo e sua força, sua coragem e sua determinação remetem-nos a uma reflexão sobre como poderíamos transformar tantos castigos em alívio para tantas pessoas. A presença de João Cândido no Brasil faz desse país cada vez mais um país de pessoas que não só passaram simplesmente por esta vida de maneira tão comum. Apesar de ser uma pessoa muito simples e de não ter se formado numa guerrilha, soube lutar bravamente pelos seus e por si, pela moral da marinha e acima de tudo pelo bem estar dos seus companheiros, aos quais nunca abandonou. Soube também suportar e resistir aos castigos a ele aplicados com bravura de homem do mar e do homem do senso de justiça. Deve ter sido extremamente doloroso ver seus companheiros morrerem na prisão da ilha das cobras sem a menor dignidade humana. João, não consigo imaginar como, sobreviveu a esse horrível castigo, que punia o homem por ser justo, honesto e coerente com seu pensamento. Esse capítulo de nossa história não pode ser apenas uma página virada. Esse homem não pode ficar mais restrito a algumas linhas em nossos livros didáticos de história. Homens como João merecem nosso respeito e nossa admiração. O simples homem das fotos em que aparece, praticamente sem nenhuma ostentação de heroísmo, mas ao contrário de um homem fraco (principalmente nas últimas), com um sorriso ainda presente no rosto apesar de tantos anos de sofrimentos e amarguras, mostra-nos o João Cândido sereno e consciente de que viveu de maneira simples, mas com o orgulho de missão cumprida.

Fico a pensar na lição desse homem para nós, cidadãos deste início de século XXI. O mestre dos mares, almirante negro tem muito a nos dizer com seu senso de justiça, com seu sorriso compenetrado, talvez em seu passado de glória que seu país insistia em fingir não existir. Deixemos que esse homem fale a nossos dias, com seu exemplo, sua garra e sua coragem. E que seu exemplo, quase silencioso, torne-se um grito a ecoar em nosso tempo de tecnologia avançada e justiça a recuar cada vez mais.

A luta pelos direitos humanos, travada por João, antecipa uma luta que é da nossa sociedade atual. Como todas as grandes figuras da história, ele também esteve à frente do seu tempo, percebendo a necessidade de se reinventar a humanidade e suas práticas. Quando grande parte da população entendia tudo como “normal”, João se vê diante de um conflito próprio, em que também é personagem, e que precisa interpretar um outro papel, o que fez com maestria. Que o exemplo de João Cândido nos ensine a se indignar com as injustiças e castigos a que muitos hoje em dia estão submetidos. Que possamos fazer como a luta pelo fim da chibatada, um vai e não volta, diferente das ondas do mar que João tanto amava, que vão e vem.