Problemas na escrita: sistema educacional
"Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por entendê-las" (Spinoza apud Bagno, 2004, p. 5).
Esta é uma opinião sobre a escrita e o sistema educacional. Estive pensando muito (novamente) sobre as redações de vestibular usadas como alvos hilários de sites de humor. Desta vez vasculhei comunidades do Orkut para ver como andavam as observações sobre tais textos. O resultado foi o mesmo do tempo de minha dissertação de mestrado "O ser, o ciberespaço e a produção do texto" feita há cinco anos, ou seja, nada de se verificar as causas de tantas atrocidades, apenas mais reações "gargalhantes" ao pândego.
Nada sobre o que se pode fazer e, sim, sarcasmos direcionados aos vestibulandos. Então descobri que nós, os "cultos", que nos julgamos acima desses "reles" semi-analfabetos, também podemos nos chamar de sádicos pseudo-eruditos, pois sentimos prazer nos erros redacionais dos outros (eu também me incluo nesses, pois também não resisto àquelas tiradas), como se nós mesmos nunca os tivéssemos cometido, e ainda cometemos.
Coincidentemente, recebi em meu e-mail hoje, no momento em que estou redigindo este artigo, o seguinte texto quanto ao uso do termo “presidenta” (no e-mail não há identificação do autor):
"SUA EXCELÊNCIA, A SENHORA 'PRESIDENTA' DILMA
Agora, o Diário Oficial da União adotou o vocábulo presidenta nos atos e despachos iniciais de Dilma Rousseff.
As feministas do governo gostam de presidenta e as conservadoras (maioria) preferem presidente, já adotado por jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão.
Na verdade, a ordem partiu diretamente de Dilma: ela quer ser chamada de Presidenta. E ponto final.
Por oportuno, vou dar conhecimento a vocês de um texto sobre este assunto e que foi enviado pelo leitor Hélio Fontes, de Santa Catarina, intitulado Olha "a" “Vernácula”!
Vejam:
No português existem os particípios ativos como derivativos verbais.
Por exemplo: o particípio ativo do verbo atacar é atacante, de pedir é pedinte, o de cantar é cantante, o de existir é existente, o de mendicar é mendicante…
Qual é o particípio ativo do verbo ser? O particípio ativo do verbo ser é ente. Aquele que é: o ente. Aquele que tem entidade. Assim, quando queremos designar alguém com capacidade para exercer a ação que expressa um verbo, há que se adicionar à raiz verbal os sufixos ante, ente ou inte. Portanto, à pessoa que preside é PRESIDENTE, e não “presidenta”, independentemente do sexo que tenha.
Se diz capela-ardente, e não capela 'ardenta'; se diz estudante, e não 'estudanta'; se diz adolescente, e não 'adolescenta'; se diz paciente, e não 'pacienta'.
Um bom exemplo seria:
'A presidenta se comporta como uma adolescenta pouco pacienta pensando ser eleganta por ser agora a representanta. Esperamos vê-la sorridenta, numa capela - ardenta, pois esta dirigenta, em atitude barbarizenta, não tem o direito de violentar o português, só para ficar contenta'."
(O texto termina aqui).
Não é minha intenção fazer partidarismo e, sim, mostrar que precisamos ter cuidado ao criticarmos a escrita ou a fala de outro. Vejam que o autor do texto usou a próclise “se diz...” no início de um parágrafo. Mesmo que aceito na linguagem falada ou escrita informal, ainda não se usa próclise na língua culta formal e, mesmo que o autor do texto em citação não estivesse sendo formal, está criticando um uso errado da língua.
Para não ser tão encrenqueiro dizendo que ninguém se manifesta contra esta situação, menciono Marcos Bagno e sua empedernida luta contra a gramática tradicional. Ele afirma termos uma história milenar de atraso no ensino da gramática e da redação que ainda não conseguimos superar... mas ele tenta:
"A gramática tradicional, que vem norteando o ensino da língua há quase dois mil anos, não é uma ciência: é uma doutrina. Como toda doutrina, ela tem seus dogmas, que devem ser aceitos sem contestação e transmitidos intactos às gerações futuras. A nomenclatura gramatical, por exemplo, que usamos até hoje – sujeito, objeto, advérbio, subjuntivo, pretérito, antônimo, preposição, artigo etc. – é a mesma proposta pelos gregos antes de Cristo. O que o ensino gramatical faz, então, é repetir esses mesmos termos, conceitos e definições, sem submetê-los a uma análise profunda" (Bagno, 2003, p. 82-3).
Acrescento Levy às palavras de Bagno: “é certo que a escola é uma instituição que há cinco mil anos se baseia no falar/ditar do mestre, na escrita manuscrita do aluno e, há quatro séculos, em um uso moderado da impressão” (Lévy, 2004, p. 8-9).
A soma das perspectivas desses dois autores traz à vista, se não uma solução, pelo menos uma causa dos problemas da fala e escrita: a cultura do comodismo e a aversão ao novo, à ousadia. E isto em uma época de mudanças “nanométricas” (este é por minha conta) em termos de comunicação. Uma das ousadias seria admitir, conforme Levy, que:
"A luz do espírito brilha mesmo onde se tenta fazer crer que não existe inteligência: “fracasso escolar”, “execução simples”, “subdesenvolvimento” etc. O juízo global de ignorância volta-se contra quem o pronuncia. Se você cometer a fraqueza de pensar que alguém é ignorante, procure em que contexto o que essa pessoa sabe é ouro" (Lévy, 2003, p. 29).
A frase principal desta citação, para mim, é “o juízo global de ignorância volta-se contra quem o pronuncia”, pois, assim como pensamos que nossos alunos não alcançam nosso pensamento, também não sabemos alcançar o deles. Não sabemos, por exemplo, como estimulá-los a gostar de saber escrever. Esse é apenas um dos problemas: não basta saber escrever, tem que se escrever bem e gostar disso, de saber escrever.
Que viciado em games não gosta de jogar? Que garota ou garoto fã de Justin Bie... Beir... Bieb... ãh, daquele menino de franja que canta, não se desespera no show, não gasta toda a mesada com cd's, dvd's, revistas sobre ele? Você conhece algum estudante assim? Já conseguiu fazer um aluno desinteressado se apaixonar pela norma culta da escrita? Acho que nem eu nem você. Não com nosso sistema de ensino.
O texto da presidente e outros me fizeram sentir como se ríssemos mesmo é de nossa própria ignorância. As redações desses candidatos a um curso superior, a suposta insistência da presidente em falar “presidenta”, o costume da próclise no início de frase tão criticado por gramáticos mostram um realidade débil do nosso ensino-aprendizagem. É a nossa realidade também, como educadores que cremos que somos.
Essas redações não são apenas textos mal feitos em papel, elas são os espelhos que refletem o resultado de nosso sistema de educação. Refletem claramente a “fuzarca” do que não conseguimos deixar claro. Paradoxal!
Em tempo, lembro que não tomo partido, mas o termo “presidenta” existe. É o feminino de presidente. Veja no Michaelis, Aurélio e Houaiss. O autor do e-mail, no mínimo, para não pagar mico, deveria se informar, para não ser um “anto”.
Referências
BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
Lévy, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 4ª ed. São Paulo, Edições Loyola, 2003.
______. As tecnologias da Inteligência - o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1993. 13ª reimpressão, 2004.
Fonte: http://www.webartigos.com/articles/40686/1/Espelho-espelho-meu-existe-redacao-mais-bela-do-que-eu/pagina1.html#ixzz1LPfqZ2r7