Fantamas de uma Cidade Grande
Por: Valdeck Almeida de Jesus
Quando eu saí de Jequié para Salvador, em 1993, eu estava em busca de “espaço para viver”. Eu não queria assumir a sexualidade para a família nem pra mim. E não queria “chocar a família” ou me chocar, porque a gente aprende a vida inteira que ser o que a gente é, é errado. Ser negro é errado, ser gay é errado, ser branco é errado e ser loiro é errado… ser baixo, ser gordo, enfim…
E em Salvador eu achei que eu seria ou mais um na multidão, ou eu poderia, pra mim mesmo, me olhar no espelho com mais coragem. A maior parte do tempo eu vivi em Salvador sozinho, na solidão. Não a solidão de companhia de pessoas, de amigos, de relacionamento, de família etc, mas a solidão da busca humana, a solidão da busca que nem sempre a gente sabe o que é que está procurando. E nem sempre sabe se realmente está em busca. É meio complexo, mas acho que a vida é assim: louca, complexa, incompreensível.
Com o passar do tempo eu fui me encontrando com pessoas, com situações, cursos, atividades, música, enfim. E fui me deixando levar sem nem às vezes saber que estava sendo levado. É como se estivesse na correnteza de um rio e na hora que cansava pegava o primeiro tronco que estivesse próximo, pra respirar um pouco, tomar fôlego. Muitas vezes nem sabia que estava no meio de uma correnteza e que estava indo para algum lugar. Eu não tinha, como muita gente também não tem, uma meta, um projeto, um trajeto a seguir.
E essa corrida nesse rio às vezes não tinha tronco pra me segurar; às vezes tinham vários troncos. Eram pessoas, era o trabalho, uma arte, poesia, às vezes não tinha tronco nenhum. Às vezes eu afundava, por falta de tronco para me segurar. Às vezes eu boiava mesmo com vários troncos por perto. Outras vezes ia flutuando sobre a água. Vivendo, aprendendo e desaprendendo.
Depois que minha mãe morreu, em 2000, eu tomei consciência de que ela tinha envelhecido. E que eu estava na correnteza o tempo todo e nem sempre eu percebia a vida passando. Ou eu passando, sei lá. Essa questão de tempo e de espaço é muito bem complexa. E aí vieram os fantasmas que estavam sempre ao meu redor e eu não via. Ou por serrem fantasmas ou porque eu não acreditava em fantasmas. Eles foram chegando e tentando me assombrar. Alguns eu espantava tomando cerveja nos finais de semana com os amigos; outros eu espantava simplesmente ficando em casa e pensando a vida; mais alguns eu espantava trabalhando ou dormindo, enfim.
Apareceu uma pessoa, das tantas outras pessoas-troncos nas quais eu me segurei e que, essa pessoa ou estas pessoas às quais eu me apeguei não queriam servir de calço pra ninguém. Eu não sabia que eu estava fazendo elas de calço, de tronco pra me firmar. Elas estavam, também, na correnteza do rio, talvez no mesmo processo que eu, de consciência, semi-consciência, inconsciência de como o processo tava indo, como a correnteza estava forte ou fraca, de onde era fundo, de onde era raso. No momento em que essa pessoa-tronco afundou ou boiou ou se engarranchou numa pedra, ou a água levou para a beira do rio, e eu não pude acompanhar, porque a correnteza me jogou para o outro lado, eu comecei a tomar consciência de que eu precisava de mais alguns troncos por perto. Não só para me segurar e me salvar, me safar, mas pra ficar ali, ao meu lado. E aí foi nesse momento em que eu caí em depressão: tristeza, desânimo… Eu acho que eu já era desanimado, depressivo e triste antes, mas a falta daquele tronco-principal fez tudo vir de uma vez só. Abriu as portas para todos os fantasmas chegarem.
E aí foram remédios, foram médicos, foram psiquiatras, psicólogos, psico sei lá o que, centro espírita, livros sobre depressão, mensagens de ânimo, orações, enfim. E aí apareceram outros troncos e cada vez que os fantasmas vinham eu espantava eles. Cada vez menos fantasmas apareciam.
Na vida numa grande cidade, ou numa cidade grande, com dois milhões e novecentos mil habitantes nem sempre é possível a gente encontrar encontrar as pessoas, os troncos. Mas o resumo é que depois de mais de vinte anos, ou estou anestesiado, ou não preciso mais de tantos troncos. Estes troncos não servem apenas de apoio para não afundar, mas para afundar junto, se necessário…
Por: Valdeck Almeida de Jesus
Quando eu saí de Jequié para Salvador, em 1993, eu estava em busca de “espaço para viver”. Eu não queria assumir a sexualidade para a família nem pra mim. E não queria “chocar a família” ou me chocar, porque a gente aprende a vida inteira que ser o que a gente é, é errado. Ser negro é errado, ser gay é errado, ser branco é errado e ser loiro é errado… ser baixo, ser gordo, enfim…
E em Salvador eu achei que eu seria ou mais um na multidão, ou eu poderia, pra mim mesmo, me olhar no espelho com mais coragem. A maior parte do tempo eu vivi em Salvador sozinho, na solidão. Não a solidão de companhia de pessoas, de amigos, de relacionamento, de família etc, mas a solidão da busca humana, a solidão da busca que nem sempre a gente sabe o que é que está procurando. E nem sempre sabe se realmente está em busca. É meio complexo, mas acho que a vida é assim: louca, complexa, incompreensível.
Com o passar do tempo eu fui me encontrando com pessoas, com situações, cursos, atividades, música, enfim. E fui me deixando levar sem nem às vezes saber que estava sendo levado. É como se estivesse na correnteza de um rio e na hora que cansava pegava o primeiro tronco que estivesse próximo, pra respirar um pouco, tomar fôlego. Muitas vezes nem sabia que estava no meio de uma correnteza e que estava indo para algum lugar. Eu não tinha, como muita gente também não tem, uma meta, um projeto, um trajeto a seguir.
E essa corrida nesse rio às vezes não tinha tronco pra me segurar; às vezes tinham vários troncos. Eram pessoas, era o trabalho, uma arte, poesia, às vezes não tinha tronco nenhum. Às vezes eu afundava, por falta de tronco para me segurar. Às vezes eu boiava mesmo com vários troncos por perto. Outras vezes ia flutuando sobre a água. Vivendo, aprendendo e desaprendendo.
Depois que minha mãe morreu, em 2000, eu tomei consciência de que ela tinha envelhecido. E que eu estava na correnteza o tempo todo e nem sempre eu percebia a vida passando. Ou eu passando, sei lá. Essa questão de tempo e de espaço é muito bem complexa. E aí vieram os fantasmas que estavam sempre ao meu redor e eu não via. Ou por serrem fantasmas ou porque eu não acreditava em fantasmas. Eles foram chegando e tentando me assombrar. Alguns eu espantava tomando cerveja nos finais de semana com os amigos; outros eu espantava simplesmente ficando em casa e pensando a vida; mais alguns eu espantava trabalhando ou dormindo, enfim.
Apareceu uma pessoa, das tantas outras pessoas-troncos nas quais eu me segurei e que, essa pessoa ou estas pessoas às quais eu me apeguei não queriam servir de calço pra ninguém. Eu não sabia que eu estava fazendo elas de calço, de tronco pra me firmar. Elas estavam, também, na correnteza do rio, talvez no mesmo processo que eu, de consciência, semi-consciência, inconsciência de como o processo tava indo, como a correnteza estava forte ou fraca, de onde era fundo, de onde era raso. No momento em que essa pessoa-tronco afundou ou boiou ou se engarranchou numa pedra, ou a água levou para a beira do rio, e eu não pude acompanhar, porque a correnteza me jogou para o outro lado, eu comecei a tomar consciência de que eu precisava de mais alguns troncos por perto. Não só para me segurar e me salvar, me safar, mas pra ficar ali, ao meu lado. E aí foi nesse momento em que eu caí em depressão: tristeza, desânimo… Eu acho que eu já era desanimado, depressivo e triste antes, mas a falta daquele tronco-principal fez tudo vir de uma vez só. Abriu as portas para todos os fantasmas chegarem.
E aí foram remédios, foram médicos, foram psiquiatras, psicólogos, psico sei lá o que, centro espírita, livros sobre depressão, mensagens de ânimo, orações, enfim. E aí apareceram outros troncos e cada vez que os fantasmas vinham eu espantava eles. Cada vez menos fantasmas apareciam.
Na vida numa grande cidade, ou numa cidade grande, com dois milhões e novecentos mil habitantes nem sempre é possível a gente encontrar encontrar as pessoas, os troncos. Mas o resumo é que depois de mais de vinte anos, ou estou anestesiado, ou não preciso mais de tantos troncos. Estes troncos não servem apenas de apoio para não afundar, mas para afundar junto, se necessário…