Sting

Sting levantou-se do sofá e dirigiu-se para a porta de entrada do apartamento. Naquele dia não foi trabalhar. Estava com uma forte gripe, estava sem vontade de trabalhar, estava sem vontade de tudo ou de nada. Tinha ficado todo o dia, isto é, desde a manhã até ao fim da tarde, sentado no sofá da sala. Não comeu nada, bebeu água, dores no corpo, cabeça pesada. Sintomas normais de gripe. Os medicamentos iriam fazer efeito. Morava na casa onde viveu vários anos com a mulher. Era um apartamento indistinto perto do centro da cidade. O prédio era cinzento, sete andares, banal. Chovia, a sala estava mergulhada na obscuridade. Pensou que aquela casa lhe era hoje mais familiar do que quando a partilhou com a família. Não sentia nenhuma saudade do passado. O divórcio e tudo que se seguiu depois era apenas uma história possível entre muitas histórias possíveis, uma história que alguém tivesse contado a alguém, não se reconhecia nela, uma história como qualquer outra. Os filhos eram também agora apenas personagens que partiram, viviam noutra cidade totalmente esquecidos dele. A vida é assim, repetia muitas vezes para ele mesmo. Noutros momentos acrescentava um advérbio, a vida é assim, inexoravelmente. Gostou de exercer medicina, da prática hospitalar, do convívio com os colegas de profissão. Estabeleceu relações mais estreitas com alguns doentes, muitos visitavam-no no consultório apenas por amizade. Quando foi expulso da ordem dos médicos foi uma fase da sua vida que acabou. Inocente ou culpado? Não se sentia culpado, numa certa perspectiva estava inocente, talvez fosse mesmo um exemplo, ou, no pior dos casos, muitos outros teriam feito o que ele fez. Numa certa perspectiva, seriam apresentadas provas da impossibilidade de agir de outro modo. Outros médicos já o tinham feito ou fariam. Numa certa perspectiva, a medicina envolve riscos que se assume reconhecendo a hipótese de falhar. E falha-se. Numa certa perspectiva, um médico, só em casos extremos, erra dolosamente. Mas erra muitas vezes por negligência. Ele errou por negligência, acusaram-no desse crime. Numa certa perspectiva, podiam ter interpretado que o seu acto médico não foi um crime. Nunca tinha pensado nisto que agora no escuro da sala pensava. Era um raciocínio que lhe parecia ao mesmo tempo lógico e ilógico. Era inocente e culpado, dependia da perspectiva. Tinha uma certeza. Tal como o divórcio, este episódio era-lhe hoje indiferente, podia falar dele com nomes próprios de culpados e inocentes, de juízes, de vítimas e criminosos. Contar esses factos como se fossem outros que os tivessem vivido. Sentia que a tolerância é aceitar que o mundo é sempre “o melhor dos mundos possíveis”, disse-o alguém que ele sabia quem era. Repetia, uma história para ser contada, lida, imaginada. Para rir ou para chorar. O emprego na casa de ferragens garantia-lhe a sobrevivência, sem luxos, mas ele não gostava de luxos. Gostava daquela solidão de chegar a casa ao fim do dia, de se fechar no seu mundo, de olhar as revistas de medicina alinhadas na estante, de contar os números que se iam acumulando semanalmente. Comprava-as num pequeno quiosque e recebia outras pelo correio. Como a estante estava a ficar sem espaço para mais revistas de medicina, era urgente comprar outro armário, e maior, maior para não haver mais problema de espaço com as revistas de medicina. Chegar a casa ao fim do dia, cozinhar qualquer coisa e sentar-se no seu sofá em frente àquele saber enciclopédico de que ele já pouco sabia ou nada lhe dizia. Só a revista em si mesma, colorida, papel lustroso, capa dura. O interior era uma sombra, um abismo profundo onde ele não queria mergulhar. Sting levantou-se do sofá e dirigiu-se para a porta de entrada do apartamento. Tinha tocado a campainha. O vizinho informou-o que estava marcada uma reunião de condóminos para a próxima semana. Deveria receber a convocatória brevemente. Sting abanou a cabeça e balbuciou algumas palavras, concluindo o outro que ele estava doente e que estaria na reunião. Fechou a porta. Ainda não foi desta vez que alguém me chamou para a tal viagem sem regresso. Quase cheguei a pensar que era a hora. Não. Apenas o vizinho, apenas uma convocatória para uma reunião de condóminos, apenas isso. Preciso de um novo armário à medida, um armário com espaço suficiente para as próximas revistas. Há espaço suficiente na sala para a grande tarefa de comprar um novo armário. Espaço na sala e espaço no armário, não me posso esquecer disto. Ver os centímetros de madeira progressivamente ocupados com aquelas cores que se alinham, formando uma massa heterogénea, semana a semana. Que espectáculo me aguarda em frente ao sofá da sala! Pensou, pensei, penso, a vida tem de ter uma motivação qualquer. Uma qualquer. Agarrar com força uma finalidade, um objectivo. Acreditar em qualquer coisa, lutar por essa qualquer coisa. Ter orgulho nessa coisa. A isso os filósofos chamam “o sentido da existência”. Sim, julgo ser isso. Sem um sentido, uma crença, um objectivo, grande ou pequeno, o que se pode esperar da vida? Por momentos a totalidade da sua vida surgiu, a sua vida. E ela continua, corre. A vida única e singular que cada um vive. Quer dizer, como cada um interpreta que vive. A sua vida era o valor da vida. Sentado no sofá depois de um dia de trabalho tem sentido. É necessário que tenha sentido. Como agora onde estou e tudo surge em mim inexorável. No próximo sábado, estarei melhor, vou sair cedo de manhã para ir à praia. Sentir o frio, ver o mar de perto. Com gripe ou sem gripe. Vou de manhã cedo e talvez mergulhe no mar. Talvez caminhe horas pela praia. Preciso curar esta gripe. Vou deitar-me. Vou sonhar. Sonhar que caminho pela praia e mergulho no mar. Vou sonhar o próximo sábado que ninguém sabe se existe. Nada há a lamentar, disse ele.