Maude, Kevin

Maude gostava de pintar. Tinha estudado pintura e hoje vivia do rendimento da venda das suas obras de arte. Isso libertou-a de ter outra profissão, o que era um alívio. Detestava cumprir rotinas, horários, obrigações mesquinhas. O ateliê ficava no centro da cidade, no primeiro andar de um prédio de escritórios e consultórios. De dia havia muito movimento de entrada e saída de pessoas, clientes e doentes. Maude saía cedo para evitar essas confusões que a perturbavam. Trabalhava de noite, pela madrugada dentro. Logo, dormia pouco, muito pouco. Habituou-se a dominar o sono, progressivamente. Progressivamente, conseguiu dormir apenas três ou quatros horas por noite. Uma grande vantagem para o seu trabalho. Passava as manhãs a passear por um parque, um parque sossegado de árvores esguias e caminhos de terra. Olhava a natureza como os impressionistas, interessava-lhe a cor, dizia que lhe interessava a cor, mas a partir de dentro para fora, ver a realidade movida pela sensibilidade imediata, mais que captar, não captar, exprimir uma forma possível de ser realidade. O parque eram, pois, múltiplos parques, movimento, mudança, verdades mutáveis. O “Nascer do Sol” de Monet, a luz e a cor entrando por aquele parque, a verdadeira impressão sentida ali em toda a envolvência do olhar de Maude. Costumava correr, fizesse chuva ou sol. Adorava aquela sensação de solidão, de facto àquela hora da manhã não havia ninguém. Maude considerava-se uma pessoa feliz, embora não soubesse bem o que tal significava. Ser feliz, o que é? Sou feliz? Fazia o que queria e era pouco exigente em relação a quase tudo. Faço apenas o que quero, ou quase. Mesmo no que diz respeito à pintura. Pintava por prazer, vendia e podia viver do que ganhava fazendo o que gostava. Que mais exigir? Isto era suficiente. Como diziam os estoicos, não peças à vida mais do que ela te pode dar. Se for assim, é possível ser feliz. Ela já era muito exigente, mas de uma forma passiva de exigência. Não tinha muitos amigos, não era uma pessoa de relacionamento fácil, e preferia os homens às mulheres. Considerava-os mais fiéis, mais autênticos, mais directos. Muitas mulheres pensam assim. Os homens pensam o contrário, amizade com homens, com mulheres a questão é outra, a amizade é outra, de outro tipo, há sempre uma componente de sexo metida nisso. Os homens vêem nas mulheres um desafio e aceitam esse desafio, mesmo que nunca o saibam enfrentar, mas prolongam-no, adiam-no e se estão prontos a avançar esperam um sinal do outro lado, são sempre elas que o dão. É aí que são directos, mesmo que sejam apenas as suas fantasias e ilusões. Um homem pode ficar amigo de uma mulher que amou ou que ama, uma mulher não suporta isso. Nunca digas a uma mulher que te ama que queres apenas a sua amizade, ela vai odiar-te. Maude pensava em Kevin, o seu último namorado. Conheceu-o numa exposição de pintura em que ambos participaram. Falaram e ambos sentiram no momento uma atracção recíproca, qualquer coisa epidérmica talvez motivada pelos mesmos gostos artísticos. Discorreram sobre Munch, Freud, Degas, Bacon, o construtivismo. O que a arte pode fazer para unir dois corpos presentes numa exposição de pintura, mais a mais quando dois corpos têm trabalhos pendurados nas paredes de uma galeria! É surpreendente. Viveram juntos dois ou três anos, ela não sabia precisar. Encontravam-se no ateliê dela ou dele, não importa. Sentiam-se livres, recusavam um envolvimento mais sério, como se costuma dizer. Foram momentos intensos de afecto e de sexo, particularmente de sexo, sempre vivido de um modo efervescente, quase violento, para agrado de ambos. Kevin era um pouco angustiado e pessimista. Era mesmo angustiado e pessimista. Tinha militado com entusiasmo em partidos políticos no passado, mas hoje era um desiludido da ideia de mudar o mundo. Tudo isso lhe parecia um folclore, o importante, convenceu-se, era cada um tentar sobreviver sem nenhuma esperança. Tinha-se tornado quase um misantropo com uma péssima imagem da humanidade. Gostava de ler Schopenhauer, invejava-lhe o génio que nunca teria. De início o pragmatismo existencial de Maude entusiasmou-o, desviou-o do mal de vivre, adormeceu os seus fantasmas. A pintura de Kevin traduzia esse novo estado de crença em algo, no amor, na união dos corpos, na cumplicidade, no prazer, na felicidade partilhada, no ombro que nos ampara. De início, sim, havia uma luminosidade nas telas, nas tintas, nas molduras, no gosto de pintar, de se levantar, de expor, de sorrir, de passear, de dormir, de comer, de conviver, de sair, em tudo aquele homem solitário e mal-humorado, de rosto fechado e aparentemente velho embora novo, em tudo, repito, havia uma tal luz de esperança que só a paixão e o amor podem trazer e transformar. Sim, transformar as trevas em luz. Sim, as cortinas do ateliê tinham-se corrido logo desde o nascer do sol. Dizia um amigo, tinham-se corrido as cortinas e via-se Kevin pintar com entusiasmo. estava modificado. O amor! Havia alegria à solta por aquele espaço caótico e desordenado de tintas, pincéis, telas, baldes, jornais, livros, roupas velhas e lixo, muito lixo. A casa do mundo estava a sofrer uma revolução, não política, mas pessoal, a revolução da pessoa do senhor Kevin. De início, nos primeiros tempos da relação com Maude. Com os meses, a passarem de um ritmo acelerado a um ritmo lento, cansativo, pesado, tudo se foi transformando. E durou dois ou três anos, deve ter sido isso. A revolução pessoal durou pouco, facilmente degenerou numa crise tão grave que o levou a recusar a pintura e tudo o que pudesse estar-lhe associado. As telas que tinha em exposição recolheu-as, invocando que eram cópias plagiadas de um pintor desconhecido. As do ateliê destruiu-as com um lança-chamas, as tintas, os pincéis e todo o restante material colocou num ecoponto ao fundo da rua, por uma questão de civismo. A pintura era uma excrescência, que só seres desprezíveis se poderiam dedicar. Como posso alguma vez ter sido pintor, essa canalha de borradores, essa arte inútil? Recusava-se a pronunciar o nome de Maude, ela fizera-lhe muito mal. Mas que mal? Nunca se saberá. Kevin referia-se a algo incompreensível e Maude nunca compreendeu verdadeiramente os motivos. Dois anos depois da separação, Maude soube que ele se tinha suicidado. Depois de várias tentativas, falhadas, enforcou-se num quarto de hotel. O hotel ficava em frente ao parque que ela todas as manhãs frequentava. Qual a relação? Ninguém sabe. Enforcou-se depois de ter bebido uma garrafa de conhaque, a bebida preferida e que tanta inspiração lhe dava quando começava a pintar. Qual a relação? Que importa! Podia ter fumado, lido, cantado, telefonado a alguém, podia ter dormido, podia ter saltado da janela, engolido comprimidos, disparado um tiro como o jovem Werther. Adiado para o dia seguinte, para o mês seguinte, para o próximo ano. Mas não. Bebeu conhaque e enforcou-se. Era noite, podia ter sido de manhã ao acordar, a meio da tarde enquanto fazia a digestão. Não tem importância. Era noite, bebeu conhaque e enforcou-se. Não tem importância.