Peter

Peter regressou de L., podia ficar a viver nessa cidade para sempre. Era possível ficar em L. o resto da vida. Nem procurava uma justificação para dar aos outros quando lhe perguntavam se ficar em L. era do seu agrado. Sim, era, não importa, posso ficar a viver em qualquer cidade do planeta. Quando saiu do seu país natal não pensava voltar nos próximos anos, ou talvez mesmo sair para sempre. E nenhuma dor ou saudade antecipada sentiu, ou pode dizer-se que sentiu. Indiferença, total indiferença, podia viver em qualquer lugar e afirmava-o com ar de superioridade. Qual a importância de um lugar, um lugar, qualquer lugar pode ser importante, vive-se e ocupa-se um espaço, trabalha-se, dorme-se, caminha-se, ama-se, tudo se faz em qualquer lugar. L. foi a cidade para onde fui um dia, agora regressava num outro dia ao seu país de origem, digamos assim. Regressava para partir de novo, talvez dentro de uma semana, duas semanas, no máximo. O seu superior hierárquico chamou-o ao gabinete e elogiou o seu brilhante trabalho, responsabilidade, empenho. Dedicação e sacrifício. Para Peter, apenas expressões sem sentido. Isto me soa a absurdo Da próxima cidade recusou ouvir o nome, na altura de partir saberia, era suficiente nesse momento. Como vimos, que importância tem para onde vamos viver? Nada muda, nada de importante muda, ele acreditava nisso. Peter acreditava nisso, nada muda, apenas o nome do lugar, todo o lugar é o mesmo lugar com outro nome. Saiu do gabinete, tinha uns dias para não fazer nada, estava de regresso a casa, como se costuma dizer. A casa, sorriu com a doçura da palavra, de regresso ao país natal, à cidade natal, estava de regresso, sorriu e sorriu ainda uma outra vez. Onde encontrar um hotel que seja aquele que eu quero? Procurou um hotel, um hotel barato no centro, o mais barato e rasca que se pudesse encontrar nalguma viela ou rua escusa. De hotéis luxuosos estava ele cheio, queria sentir o cheiro a podre, a gasto, queria sentir a degenerescência em redor, o som gasto de soalhos velhos, gente gasta como soalhos velhos, putas a berrar com chulos, chulos a berrar com chulos, pedintes a estender a mão, imigrantes excluídos, vagabundos, traficantes, drogados, melancólicos, desesperados, miseráveis, reformados recolhendo lixo, suicidas, desempregados, todos os outros como estes, o bolor, a fealdade, a tristeza, o sofrimento, a dor, a alegria disfarçada. Estendeu-se na cama e fumou o primeiro cigarro da manhã. Tenho de deixar de fumar. Fumou o segundo e o terceiro da manhã, ainda estendido na cama. Olhando o tecto, olhando o tecto que já foi branco. Lembrou-se da infância. Lembramo-nos da infância ao fim de três cigarros estendidos numa cama olhando um tecto. Da felicidade da infância. Foi um tempo sem tempo. Um dia o pai trouxe-lhe uma bola de futebol e a alegria de jogar com ele na praia todos os domingos. O sorriso da mãe, o sorriso do mundo, como se todos jogassem futebol com aquela bola aos domingos, domingos longos, felizes, tudo, todos felizes ao sol, ao sol eterno, aqueles dias profundos sem fim. Tantos dias se passaram depois, todos e tudo, tudo já morreu. Ali no quarto da pensão em ruínas, uma coluna de mortos desfilou em frente à cama e adormeceu. Adormeceu e acordou. Adormeceu e acordou. Entremos pelo seu sono. Este era sobretudo consequência mais que perfeita do cansaço acumulado nos últimos meses ou anos. Mas dormir também nunca foi um problema que tivesse. Nunca se sentiu atormentado por insónias. Deitava-se na cama e em cinco minutos caía nos braços de Morfeu. Naquela manhã o sono era banhado por um sonho muitas vezes repetido, repetido demasiadas vezes. Sonhava que sonhava. Havia uma avenida que se prolongava até ao mar. Parecia ser o mar. Alguém corria em direcção a uma mulher excessivamente pintada. Esse alguém oferecia um anel a essa mulher e o anel rolava pelo areal e o homem, que era esse alguém, correu, correu e ao fundo desapareceu quando a areia já estava húmida pela espuma do mar. Apenas as roupas dispersas ficaram ali isoladas, uma mancha negra na areia branca, a mancha das vestes do homem, as vestes corrompidas até se esboroarem em pó. Peter tinha conseguido tornar este sonho um sonho lúcido, como dizem os neurocientistas. Acordava conscientemente quando todo o cenário era pó. Assim foi naquela manhã, deitado numa cama, a cama de madeira carcomida e gasta, colocada a meio de um quarto tétrico de uma pensão em ruínas. Pensou, que maravilha desfrutar esta degradação! Da janela do quinto andar observou a cidade, o rio límpido, o porto, o parque maior da cidade, uma mancha verde, o mar da sua infância, o pai, a mãe, os irmãos, a bola de futebol, observou a felicidade de ter sido feliz. Um lugar deixa marcas, uma ilusão, mas as marcas deixaram de existir, apenas estavam na sua memória, apenas estavam na sua memória e estariam então com ele em qualquer lugar. Do alto da janela já nada mais tinha importância. As personagens tinham partido para dentro da sua memória, repito. Reforçou a teoria inicial, ali a sua pátria tinha morrido. Podia ir embora no dia seguinte, era mesmo um favor que lhe faziam. Mas o chefe, cujo nome também ignorava, dera-lhe duas semanas, iludido de qual era o seu verdadeiro desejo. Demasiado tempo para ocupar o tempo, para empregar o tempo, como dizia M. Butor. Que fazer? Entre os vinte e os quarenta anos, a sua idade actual, tinha estado em dezenas de cidades. Há vinte anos que não regressava a casa. O chefe dava ordens sem necessidade de contacto pessoal. Peter aceitou este emprego por essa mesma razão. Queria ir-se embora e não voltar. Queria ir para qualquer ponto, ficar em qualquer ponto, transitar entre pontos, coordenadas geográficas, deambular sem nenhum prazo fixado, percorrer o globo terrestre indiferentemente, aleatoriamente. Era o emprego ideal. Aos vinte anos era um homem só, sem família, poucos amigos, ou conhecidos, um homem sem raízes, um homem com raízes que as perdeu. Dominava várias línguas, sabia apresentar-se, sabia argumentar, tinha uma cultura geral bem alicerçada, sabia mentir, sabia iludir, sabia seduzir, rir, chorar, sabia amar e odiar. Foi este o cartão-de-visita que apresentou para ser aceite pelo chefe, ainda o mesmo desde esse dia, que imediatamente o reconheceu como a pessoa ideal para o desempenho do cargo de grande exigência e sacrifício, palavras do chefe. O chefe não gostava desta expressão, demasiado simplista. “Chefe” tinha um significado quase pejorativo. Peter sugeriu, quando com ele contactou por telefone há alguns anos, director, administrador, gestor, superior, superior hierárquico. Assim ficou desde esse contacto por telefone, expressão gongórica e até ridícula, mas o chefe não entendeu a ironia: superior hierárquico. Assim o tratou hoje, vinte anos depois da primeira apresentação, e uns tantos anos depois da fixação irónica do seu título. O S. H. a maior parte das vezes utilizava intermediários para emitir as ordens que Peter recebia e executava, sempre sem falhas. Falaram talvez umas cinco vezes, aquando da admissão, da mudança de título, outras duas para reforçar com autoridade a tarefa inadiável e agora, agora, vinte anos depois. Pessoalmente, só falei com ele duas vezes em vinte anos, surpreendente, ele, para quem trabalho. Peter não aparentava ter quarenta anos, no máximo davam-lhe trinta e dois anos. O chefe, vamos chamar-lhe assim, esse estava velho e acabado. A aparência de juventude de Peter era um mistério, um paradoxo. A vida que levava acabaria cedo com qualquer um. Ele meditava qual a razão de continuar com aquela cara inocente e de menino imberbe. Sempre fora assim e não tinha mudado. Facilidade em dormir, horas de sono seguidas, boa alimentação, domínio dos sonhos, exercício físico. Talvez. Genética ou ambiente, ou as duas coisas em conjugação. Ele era mais favorável às teses behavioristas, ou neobehavioristas, em tudo ou quase tudo. O comportamento tinha como núcleo essencial os factores sociais e culturais, com consequências a nível dos factores internos. Repudiava as concepções de Gesell, considerava-as perigosas. Enfim, questões sempre recorrentes para entendermos o humano, ou melhor, o processo de construção do humano, ou melhor, os processos de construção das várias possibilidades de se ser humano. Mas deixemos por agora o desenvolvimento deste arrazoado, não faltarão oportunidades. Em duas semanas, Peter tinha de ocupar o tempo. Um breve intervalo na sua vida, quer dizer, um breve intervalo na rotina da vida profissional. Mas antes digamos que Peter, do alto da janela do quarto no tal hotel rasca, reparou numa rapariga morena, com aspecto de desportista, falando com alguém. Mulher interessante, pensou. Como tantas outras que conheceu. A sua profissão exigia-lhe algo intrigante, exigia-lhe o esquecimento. Tantas pessoas e acontecimentos e tudo para ser esquecido. Esquecimento. O desprendimento. Apenas retinha algumas memórias, aquelas da infância e pouco mais. Quem conheceu, o que viu, o que viveu, deveria esquecer, desligar-se de todas as recordações. Por isso estava sempre a viajar, ficando mais ou menos tempo aqui ou ali. Por isso, poderia ficar num lugar para sempre que este lhe seria indiferente. Conheci tanta gente, mas não me perguntem pelos seus nomes. Os psicanalistas levam-nos para a infância, momento essencial das nossas vidas. Eu lembro-me da infância. E de uma névoa que paira sobre o tempo depois. Pode-se fazer exercícios para melhorar a memória, criar esquemas mnemónicos, pode-se, igualmente, fazer exercícios para piorar o esquecimento, uma anamnese de sinal contrário. De facto, uma névoa paira sobre mim, nada aqui durará muito mais.