O Conto Fantástico: A rua irada e Um homem sem olhos
O conto fantástico nos apresenta a abertura de uma perspectiva única de um fato da vida. Suas origens remetem a própria existência humana pela necessidade primordial da comunicação dos sentidos/sentimentos. O conto tem a mágica do desconhecido que se revela em poucos minutos, transformando o mundo em fantasia. O tempo que separa o começo do fim é o tempo de ir ao encontro das estranhezas e de profundezas antes nunca imaginadas. Como pequenos olhos do universo o conto compõe um mosaico de sensações e situações reveladoras das mais confusas contradições humanas. Há no conto a clareza de um segundo real, da mais sólida existência, que se alastra do autor ao leitor como ondas vibrantes de um mar irreal. Como não sentir o conto entrar pelo corpo adentro? A sabedoria ancestral escondida em poucos arranjos de palavras. Do conto oral da tradição maior ao atual literário vendido em livrarias existe a mais elevada forma da história. A história vivida, a história imaginada, ambas reais embaixo do sol, ambas com vida e feitas por e de vidas. O encanto do instantâneo que prende e nos arrasta para o obscuro do não ser. O suspenso temporário, a vibração da revelação, os sonhos lindos em manhãs de primavera. Como não querer o conto? Abraçar-se a ele e pedir mais. Mais uma história, mais uma real ilusão, mais um tesouro escondido. O saber de tudo que é apenas passagem, de marcas insignificantes, sem contornos, transparentes. Dentro do conto há canto de todas as vidas vividas, de todos que não mais e dos que ainda serão.
A rua irada
A experiencia da A rua irada revela um novo abismo. Como imaginar uma história (fantástica) que nasce antes mesmo daquele que a narra? A imagem e a ideia. Ela existe antes mesmo de nascermos, uma imagem e uma ideia. Assim.
O narrador (sem nome) propõe ao narratário que o imagine num determinado espaço: “num desses restaurantes de serviços rápidos”. Mais do que isso, ele explica que esses restaurantes são lugares “onde os homens engolem a comida tão depressa que ela perde toda qualidade de alimento, e aproveitam sua meia hora de folga com tanta pressa que ela perde toda qualidade de repouso.” É nesse espaço que o narrador se coloca e é dali que surge toda a sequencia de ações.
O tempo é marcado pela sua falta. Os homens do restaurante, servos da modernidade, estão acorrentados ao Grande Olho e único que é o relógio a vigiá-los. Essa corrente que o narrador diz ser a mais pesada que jamais se prendeu a um homem. Aqui está uma ideia e uma imagem marcando o desconcerto do mundo moderno.
Surge um novo personagem. Enigmático e estranho em meio ao aspecto geral do espaço que o cerca. Ele usa uma cartola como se fora uma mitra, uma sobre-casaca como se fora paramento de algum sumo-sacerdote... e reverencia os objetos como se fossem de alguma forma merecedores de respeito. O olhar liga o narrador com esse outro, sua personagem. Olhar apocalíptico. A partir disso há um diálogo entre eles. Não há nomes. Nem apresentações.
Esse personagem protagoniza o conto e conta a sua história fantástica. Durante quarenta anos, dois meses e quatro dias ele cumpria a pena do cotidiano, do hábito encerrado em si. Na mesma hora e no mesmo lugar lá estava ele, o mesmo, segue em direção ao símbolo do mundo moderno e rápido, o metrô. Porém o real transforma-se para o irreal, o caminho se torna mais longo que o normal, a rua fica irada. Como um cavalo corcoveando a rua, a mesma rua de sempre, sempre a mesma, pula, sobe desce e o leva para o desconhecido. Uma sensação irracional o toma, ele está suspenso no espaço, no vazio do espaço. O encontro com o homem do outro mundo... o rua o eleva a esse homem, a fulguração de estrelas que mal podem ser suportadas por olhos humanos. A rua leva ao céu.
A rua busca por justiça, e se vinga de todos que a ignoram, que a negligenciam. Uma rua ou uma vida, não é possível viver a explorá-la sem ser castigado. Não é possível se esquecer do céu e adorar as novas máquinas engenhosas que levam os homens para qualquer lugar, menos ao céu. A rua, o caminho, linhas tortas, uma vida inteira. Há mudanças numa vida, tudo não é nunca sempre o mesmo. Uma história fantástica, uma ideia real... o aqui e o agora, será só isso? A ideia existe e tudo se confunde, o imprevisto pode acontecer a qualquer um. A imagem nos persegue... é preciso encará-la. Dia após dia, ano após ano, onde a rua nos leva? Ao céu de estrelas fulgurantes? Ou a Estação Oldgate? Será que estamos vivos?
Os dois personagens, são um personagem. Os dois são o homem do restaurante. Os dois se inclinam no fim, ao pote, a rua, ao céu. Tudo não passa de ideias e imagens, pouco importa quem é quem, as ideias e as imagens é que são imutáveis e estão lá, fora. O homem vive, mas é pequeno e dura pouco. A exploração é maior e vive sempre, o descuido é maior e vive sempre, o cotidiano é maior e vive sempre. O homem... para o homem somente o curto espaço do céu, vontade de céu, mas ele é pequeno de mais e dura tão pouco... Para além do além existe alguem ou ninguém? Os homem, a parte de um que completa a parte do outro, na certeza de um e na raiva do outro, a dúvida, que no fim vira pó, e para ele lá está brilhando como nunca a estrela maior. E aqui... do outro lado do papel? A rua irada vai me pegar? A pressa ou a imobilidade de anos luz? Minha condição... incerta.
A diegese de minha criação, a minha ficção... se confunde, se mistura, com essa diegese. A rua irada está dentro de tudo, todos. Irão me cobrar? Me levar para onde? Por que devo acreditar? Ouso duvidar... Mas a rua, ela está sempre lá, uma imagem e uma ideia.
E como sempre era uma vez.
Um Homem Sem Olhos
Num abrir e fechar de olhos, e já lá aparece o desfecho feito chave de ouro. É disso esse conto, de surpresa, suspense suspenso que cai duro no chão com um “eu também fiquei”. O narrador fora da história traz para a dança macabra dois personagens que se ligam como moléculas. Destinos entrelaçados que o acaso causa o choque, bruto. Assim é que Sr. Parsons nasce sob a máscara do homem comum, bem sucedido, mais alto, grande, vendedor de seguros. É dele a história? Do oprimido rebelado, de correntes que se quebram, da injustiça? (bom, a corrente dele pelo menos tornou-se de ouro, quanto ao resto não se pode saber se tem o mesmo brilho).
As ações sucedem a partir do momento em que Sr. Parsons sai de um hotel, e logo encontra um pobre e maltrapilho cego, sem nome, é um cego como todo cego... Nada mais que cego. O ar da primavera, o sol que muda em amarelo o chão de cinza, é a natureza mãe que se espalha, e o Sr. Parsons apieda-se de todos, os cegos. Mas há a vida, e na vida há de ser forte, perseverante, e assim o Sr. Parsons foi e é. E além de tudo, ainda se tem muita vida pela frente, e por que não se entregar a essa sensação tão boa? O cego vira-se em direção a ele, Sr. Parsons evita, o cego oferece um objeto, Sr Parsons acaba comprando, o cego responde a pergunta do Sr. Parsons quanto a sua visão, se é cego total ou não.
A narrativa volta ao passado, nesse espaço tempo paralelo, a história da explosão, muitos mortos, muitos feridos, e outros tantos cegos. Westbury, a anos atrás, produtos químicos para todos os lados. Depósito C, só tu poderia explicar, por os pingos nos (a)“is”! Sr. Parsons se impacienta, talvez com a pressa, com a sua vida de correria de sua carreira brilhante. O cego se revolta, depois de tudo que passou os seus olhos só serviram para encher o bolso dos capitalistas, bem humanos, os capitalistas. Seguros para a cegueira? Não, só se aceita imóveis.
Ó tramático cego! Lá vem ele e conta sua história tão triste, vitima, tão vitima. Luta feroz contra o adversário cruel. Uma chance apenas, uma salvação. O pátio, o sol, luz. Mas pobre dele, parece que o tiraram a esperança pelas pernas... tarde de mais. Gás mortífero penetra, contamina, destrói as duas janelas do corpo. E agora? Suficientemente comovente a história? Espera o cego pela recompensa do seu desastre.
Agora, o Destino tira a sua máscara de beatitude - calmo passivo inevitável mas não ruim - e mostra o seu rosto de horror humano, de sensações arrasadoras, que vibram e caminham pelo corpo. Cego por culpa do outro, o maior, o mais forte, uma única chance. Não foi só isso... o contrário. Na calçada, o contrário. Jogo de espelho, ele é ele, e ele é ele. Horror súbito, é Markwadt, o cego não mais será somente cego. O cego é o homem escondido, sem olhos dentro de nós, todos Markwadt, tentando ser Sr. Parsons.
Cegos os dois? O bom o ruim? ambos na escuridão. Um é luz outro escuro, o fraco mudado em forte e o forte mudado em fraco. Inversão de olhos... sombras. Abre um rastro de luz o sol de mentira verdadeira, num segundo da maior humanidade. A humana distorção, recurso tão mais antigo... O rosto, a fala, os sonhos, as taras estilhaçados, rasgados em mil pedaços, pela luta de rostos falas sonhos taras de almas vazias. Vazio, falta, só isso? Com que encher os olhos...? Sem mais olhos. Com olhos. Com o que ser? Do que se fazer? O barro nem mais existe na cidade grande, o céu é sempre claro, mesmo na escuridão. A mesma semelhança, com ou sem, os mesmos absurdos. Moral? Resta as fugas, essa do cego cego e do cego não tão cego, ele ao menos sente o perfume da primavera... A fuga que deixa rastro, fios, o Destino. O nó, confronto de fugas.
Mergulhar na profundeza guardada em si. No medo solitário da escuridão.
Julgar? Como? Eu? só mais uma alma vazia se rasgando nas asperosas facas da condição humana. Humana fuga fora e dentro de mim.
Mea culpa, somente minha.
Tradição, fantasia e horror.
Antes, agora, depois.
O conto, conta e canta!
Um medo! Um susto!
De conto em conto a curiosa galinha humana enche o papo.
História fora da estória
Gilbert Keith Chesterton, 1874/1936, londrino, homem de palavras.
Convertido, de anglicano para católico romano.
Em favor dos valores cristãos contra a moderna condição.
Autor de poesias, teatros e ficções.
Alguém que veio e continua.
Vive em linhas de vida.
Benjamin McKinlay Kantor, 1904/1977, americano de Iowa, homem de cinema e palavras.
Correspondente na Segunda “Grande” Guerra.
Jornalista, novelista e adaptador de sua própria obra para o cinema.
Especialmente de 30 a 40.
Em papel e noir.