O prisma do amor na literatura medieval e na Ilha dos Amores

Paula Regina Scoz Domingos Damázio

UFSC

O amor na sua forma atual aparece como resultado espontâneo e absoluto de nossa época. Porém, em sua constituição o amor como conhecemos vem modificando-se ao longo do tempo desde a sua concepção de origem. E falar em concepção indica dizer que não é possível pensar no amor como uma sensibilidade estática ou imutável. A sentimentalidade é representada por diferentes épocas conforme as necessidades mais inerentes a seus contextos sócio-políticos-culturais. Essa representação do amor é de forma geral inventada pelo meio social e perpetua-se nas noções as quais se fundamentam ainda hoje a concepção de amor no ocidente.

O período medieval apresenta a semente fundadora de diversas sensibilizações que hoje tornaram-se banais. A individualização encontra nesse período o seu ponto de propulsão com as novelas cavaleirescas nas quais os cavaleiros compartilham entre o meio social em que vivem e a solidão da floresta, alcançando através de seus atos os méritos que os tornam individuais em relação aos outros. Outro aspecto originário desse período foi a invenção de uma nova sensibilidade de percepção do mundo através do amor cortês surgido em meio a sociedade aristrocrática medieval. São com os trovadores medievais e suas cantigas que tem-se a gênese de um novo tipo de amor prolongado até os tempos atuais.

O amor cortês surge na alta idade média, entre os séculos XII e XIV, na região provençal e sustenta em seu âmago as contradições entre o desejo carnal e a espiritualização da alma. Esse estado é contrastado com a promiscuidade da vida coletiva com suas portas abertas e espaços não privados. Em meio a essas condições surge a idealização perante o mundo e principalmente perante as relações amorosas. Cria-se um olhar que pretende elevar esse tipo de relação a algo mais digno e enobrecedor capaz de no campo literário trasmitir o sentimento de desconcerto entre a realidade e aquilo a que se aspira. O amor cortês modifica o tratamento do homem perante a mulher refletindo o meio social e sua hierarquia ao propor a postura do homem como o vassalo da mulher, a suserana (a senhor). O amador (homem) entrega o corpo e a alma a sua dama, apresentada como a mais perfeita e bela de todas as mulheres.

Porém esse amor encontra obstáculos seja espaciais, distância física da pessoa amada, seja obstáculos sociais, a mulher é casada portanto socialmente inatingível - ainda mais se tomarmos em conta o espírito extremamente religioso da época. Esses dois personagens são recorrentes na produção literária acrescentando outros como o marido da dama, os confidentes e os delatores desse amor proibido. O amor cortês aparece de forma ambígua pela sua dimensão não só idealizada, de perfeição espiritual que o amor proporciona, mas também por trazer uma dimensão erótica, do desejo pelo corpo, sendo aquela enobrecedora e esta causadora de sofrimento que impulsiona para a morte. O desejo e o perigo são outros sentimentos que permeiam o amor cortês o tornando irrealizável ao mesmo tempo que deve ser encoberto aos olhares dos outros.

Essa nova leitura das relações amorosas propõem a abertura de um novo espaço elevado a uma altura maior que a própria religião. A proposta do jogo amoroso do amor cortês se apresenta como contraponto de um outro tipo de relação amorosa em que predominam o instinto, a força e a comodidade social entre o homem e a mulher. Tomado sobre esse aspecto pode-se ver no amor cortes um principio de rebeldia contra a ordem vigente no qual está inserido, ao proclamar um tipo de amor que está acima das regras previstas e que não pode ser imposto mesmo sob o selo do matrimônio.

O amor cortês exalta a idealização do amor e repele aquilo que pode parecer prelúdio para um contato sexual, porém há a preocupação com o segredo da troca dessa correspondência entre o amador e a senhora a fim de preservar a reputação da mulher, já subjugada pela posição rigorosa e rebaixadora de esposa. O próprio amor cortês possui regras como pôde-se depreender do comentado acima, que precisam ser aprendidas pelo amador para poder conduzir o sentimento amoroso e para controlar o extravasamento do amor aprimorando o espírito à espera. A mesura seria a tentativa de conter os sentidos perante os outros através da discrição e de bloquear os extremos de loucura e de morte que a separação do objeto amado podem causar. O jogo do amor cortês não só serviu como imaginário literário, mas muito além disso é uma nova forma de sensibilidade com função educadora para uma sociedade cada vez mais interdependente e diferenciada da brutalidade da sociedade do começo do período feudal. No amor cortês tem-se o surgimento de novas regras de conduta utilizadas como modelos de civilidade e que representam o espírito de uma cultura mais refinada.

Os paradoxos desse amor manifestam-se nas relações tensas entre o amor e a morte, a nobreza (idealização) e o sofrimento (erotismo) e o confronto entre o casamento socialmente aceito e condicionado e o amor verdadeiro. Nesse universo controverso é que se entrelaçam a estrutura do novo pensamento a cerca dos relacionamentos amorosos e gerando em meio a isso um espaço que embora tenha sido em sua maior parte uma realidade literária e estética existiu em alguns casos na realidade efetiva com alguns trovadores. O que de fato nasce no amor cortês é a busca de uma individualização compartilha entre dois seres e a proclamação da autonomia dos sentimentos perante uma sociedade de cunho religioso e baseada na racionalidade erudita. Voltando a ideia proposta mais acima, o amor cortês empreende uma revolução quando inova de forma única a noção de amor até então conhecida por outra que promove o amor como algo a ser sublimado e levado às ultimas consequências.

O amor não é tratado como instinto básico saciável rapidamente, antes disso tem-se a retirada do prazer carnal como foco e a idealização do sentimento e da mulher como capazes de preencher a própria vida e de a legitimar. O amor é apresentado como maior e mais poderoso que as convenções sociais ao passar por cima das regras e encontrar na mulher inacessível a perfeição e a elevação do espírito àquele que acalenta a sentimento do amor. As aspirações que encontram espaço no amor cortês, sejam elas verídicas ou ficcionais, trazem de qualquer forma a necessidade de transformação do mundo vivido em detrimento das relações até então frias e promíscuas e a favor de uma nova espiritualização, elevada e direcionada pelos sentimentos verdadeiros. Tem-se com a revolução do amor cortês a gênese do amor como entendido ainda atualmente: verdadeiro, elevado, eterno e imortal.

A lenda de Tristão e Isolda na prosa mostra claramente o amor levado às últimas consequências e simbolicamente eternizado. Essa lenda tem origem celta tornando-se literária apenas no século XII e sendo incorporada ao Ciclo Arturiano. O romance cortês deve-se a união entre o novo, representado pela poesia provençal e o arcaico, representado pelas lendas pagãs, nesse caso celtas. O elemento que comanda a trama é a tragédia interior e há a tematização do dilema do cavaleiro em servir tanto ao seu rei quanto a sua Dama simultaneamente. As sagas cavaleirescas perdem espaço para essa nova produção pelo momento de decadência da classe dos cavaleiros, mas são incorporadas e revitalizadas dentro dos romances corteses. Temos em Tristão e Isolda uma das mais conhecidas representações do amor como até hoje conhecemos, cruzando elementos pagãos e elementos corteses.

A nascente dessa lenda eternizada no mundo ocidental se compõe de um verdadeiro mosaico de textos em constante mudança entre acrescimos e recortes. As principais tradições do romance em francês tem por matrizes Béroul e Thomas. O primeiro é chamado de versão comum e o segundo de versão cortesã. A versão de Thomas apresenta um estilo marcadamente pagão, que não corresponde com a moral cristã dos períodos posteriores e por isso deixa de ser recontada. A opera de Wagner Tristan und Isolde baseia-se na versão de Gottfried o qual baseou-se na versão mais antiga de Thomas. Porém tem-se na opera uma adaptação à moral cristã ocidental deixando de lado a tradição erótica do paganismo. Essas diversas visões sobrepostas criam e dão forma aos fantásticos caminhos da lenda e nos remetem sempre a sua história de amor e morte.

O caráter mítico da lenda revela traços essencialmente pagãos e remete a uma tradição bem mais antiga do que o próprio amor cortês, a tradição pagã do amor. Nessa perspectiva percebemos a estrutura dos personagens para além de sua representação primária, por exemplo da tríade formada por Tristão, Isolda e Marcos – amante, dama e marido- e encontramos em sua raíz primitiva uma simbologia impregnada de significados. A lenda constitui um sincretismo entre o primitivismo pagão e as próprias regras encontradas no amor cortês, que se vinculam às leis feudais e cristãs. É com base nesses elementos distintos que surge a lenda de maior representação da nova sensibilidade surgida no ocidente cristão.

A análise simbólica dos nomes desses três personagens nos revela uma patente aproximação com o universo primitivo. Isolda, ao ser alcunhada a Loura, traduz seu carater solar e simboliza a emanação da divindida tanto na tradição cristã quanto na pagã. Para um lado podemos assemelhar a figura da Virgem e para outro a figura da Mulher-Sol. Marcos (nome que significa cavalo) seria o condutor do carro solar, ou seja, está proximo a Isolda. Vale lembra a cena em que o segredo de Marcos, de possuir orelhas de cavalo, é revelado pelos delatores do amor de tristão e isolda. Tristão (Drustanos em sua origem bretã) pode ter a simbologia de guardião da luz solar, aquele que adora Isolda e a quer arrebatar do carro guiado por Marcos. Temos com essas simbologias Isolda como centro da ação e operante das transformações pelas quais Tristão se submete, como a de transgredir as regras sociais que o impediriam de se relacionar com a mulher do tio e rei.

As similaridades entre a lenda e o amor cortês devem-se em princípio pelas versões literárias terem surgido durante o século XII, dessa forma podemos encontrar a influência do amor provençal.O amor entre Tristão e Isolda se justifica por meio da magia, do filtro, e com isso o amor torna-se lícito perante seus olhos. Mas há traços em comum com o amor cortês no posicionamento de Tristão como vassalo de Isolda, no amor e na morte vivida pelos dois e no amor perpetuado além da vida. O amor experimentado é desejo, embriaguez, aniquilamento, sofrimento de ambos, sendo ao mesmo tempo a salvação e a perdição. Tristão passa da categoria de herói cavaleiresco a de um verdadeiro homem, capaz de se elevar aos céus pelo amor a sua mulher, Isolda.

Há várias peripécias na lenda nas muitas tentativas feitas pelos delatores que tentam convencer o rei Marcos da infidelidade tanto de Isolda quanto de seu sobrinho Tristão. Porém as forças do amor conspiram a favor do casal ilícito. A impossibilidade do amor torna-se demasiado forte para os dois e a distância é fatal. Porém, depois da morte, a roseira e a vinha, a taça da vida e a árvore da vida, se unem e se entrelaçam para não mais separarem-se de novo. O amor não conhece barreiras nem chega ao fim, essa é a mensagem do mito e o poder que exerce não deixou de se fazer sentir nem mesmo 900 anos depois. Em cada época que ecoa se renova, se remodela e se atrela na permanência subterrânea de nossas mentes.

A representação do amor modifica-se com o tempo e com as mudanças sócios-políticas que ocorrem. No século XVI com Camões em Os Lusíadas temos um outro tipo dessa representação que se relaciona mais propriamente ao contexto político da época. No canto IX, o amor se manifesta de forma diferenciada das vistas no amor cortês e com Tristão e Isolda e suas incorporações primitivas celtas. O período do Renascimento diferencia-se pela profunda transformação nas artes, na ciência e nos pensamentos filosóficos da época. O Classicismo, como escola literária, surge dentro desse período de transformações retomando a cultura e o pensamento clássico (greco-romano). Com essa revalorização da cultura greco-romana retoma-se também a cultura paganista, o culto da perfeição, o racionalismo universal, o hedonismo e principalmente aquilo que se diferencia do período medieval tratado mais acima, o antropocentrismo. É nesse contexto que surge o representação do amor como recompensa, do amor à glória no canto IX da Ilha dos Amores.

O poema épico de Camões retrata o heroísmo de um povo, o povo português. O pioneirismo das navegações lusas motivam o crescente orgulho em relação a essa pátria que segue na frente de outros povos. O passado glorioso é retomado e edifica-se a saga da descoberta das Índias e as peripécias ocorridas ao longo do trajeto. As transformações ficcionais feitas por Camões nos mostram o Cabo das Tormentas metamorfoseado em Gigante Adamastor. A epopéia além de eternizar os feitos portugueses do passado pretende contribuiur com uma retomada no presente da reconstrução de Portugual decaído. Essa mesma nação celebrada em Os Lusíadas seria a mesma que oito anos depois (1580) perderia a sua independência e passaria a pertencer ao domínio espanhol.

O episódio da Ilha dos Amores dá-se quando os navegantes estão retornando a Portugal e se deparam com uma ilha. Essa ilha difere-se de todas quanto pode haver pois se move ao gosto de Vênus. Esta que durante o poema se apresenta como protetora dos nautas pretende, com a ilha cheia de belas ninfas, recompensar os portugueses pelos seus feitos até então. A presença de elementos da mitologia faz uma ligação com a estética do Classicismo e a própria forma usada para o poema demonstra uma ligação com os poemas clássicos de Homero e Virgílio em que temos a mitologia como matéria inseparável da narrativa. Camões busca no plano literário fazer uma elevação espiritual dos portugueses na ligação carnal com as divindades pagãs principalmente por terem a característica de serem imortais. A ilha paradisíaca de Camões é erótica e elevada espiritualmente ao mesmo tempo. A ascensão dos lusos dá-se em contraposição a descida dos seres divinos à condição humana. Assim os lusos se divinizam enquanto os deuses se humanizam.

Nesse contexto temos o amor como forma de união entre os dois planos, o divino e o terreno, e a harmonia concretiza a unificação trazendo assim uma nova significação para o amor. Nada resiste à força do amor e na ilha o pecado não existe sendo livre o instinto sem consciência entre bem e mal. Os homens estão em estado puro, como se houvesse um novo começo, que difere da lenda bíblica pois ali a mulher libera o homem não para a morte, mas para a imortalidade. O amor é concreto, mas não deixa de ser erótico, sendo a própria natureza retratada com erotismo. O amor e o desejo são libertos de qualquer convenção adquirindo um poder supremo de elevação para aqueles que conquistaram a glória dos grandes feitos.

Podemos ainda perceber uma conotação estritamente relacionada com o contexto sócio-político de Camões ao fim do canto. Na sua insistente exortação aos barões para que busquem a fama pegando nas "armas rutilantes" para agirem. Percebe-se a preocupante condição de comodismo que vive Portugal com a perda considerável de seu poder marítimo e de sua hegemonia. O amor se apresenta como conquistável para aquele que luta pela sua pátria e busca encontrar a glória por seu próprio mérito, como um cavaleiro na busca por aventuras que o tornem lendário e imortal. Assim, parece, surgiu mais uma significação para a controversa resposta do que é o amor e de como poderiam ser as suas diversas manifestações.

Para o que é o amor não existe nenhuma resposta suficiente que possa expressar a complexidade desse sentimento humano. Não somente por não poder ser metrificado, mas por ser tão diverso como um prisma posto contra o sol. O amor é a relação estabelecida entre os seres que por alguma razão sem razão encontram-se frente um ao outro em sua mais nua concepção, como se surgisse nesse momento um novo nascimento do corpo e da alma que se entregam a mais completa absorção. Essa raíz é funda de mais para que desprezemos os ensinamentos vindos da idade média e não nos façam sentir tão profundamente perturbados com essa "verdade" pois seremos levados tempo após tempo a acreditar nesse absoluto sem resposta, nesse ideário mágico em que o amor vence. O amor será sempre o vencedor, é a glória individual, é a ascensão ao desconhecido, ao paraíso prometido, à nossa própria eternidade.

Paula Scoz Damázio
Enviado por Paula Scoz Damázio em 20/11/2010
Reeditado em 20/11/2010
Código do texto: T2626778
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