Identidade e Literatura: a formação de si através do espelho

Paula Regina Scoz Domingos Damázio

UFSC

O processo de formação das identidades nacionais são constituídas não de modo hermético, mas ao contrário disso esconde um desdobrar de jogos polissêmicos, choques temporais que concretizam uma configuração hermenêutica que é modificada de época em época. Para além da concepção iluminista de identidade sólida, passando pelo surgimento da concepção sociológica interacionista da troca entre o “eu” e o fora do “eu”, e indo chegar nas ideias pós-modernas da mutabilidade das identidades, tem-se um fio condutor ligando as diversas transformações ocorridas no pensamento humano na qualidade de ser sociável e pertencente a um complexo sistema representativo de suas manifestações culturais. A literatura como arca das mais diversas criações imagéticas dos seres humanos é prova dessas mudanças sofridas ao longo dos tempos em que o pensar sobre si e sobre o outro torna-se o grande ponto de chegada ou de partida.

Com o intuito de discutir a construção da identidade portuguesa propõe-se a seguir uma análise de tal construção com base nas representações manifestadas ao longo dos séculos na literatura e também como essa representação pode ser problematizada sob diversos pontos de vista na recente história das ciências sociais em Portugal. A identidade portuguesa em sua representação ao longo do tempo mostra-se carregada de sinuosos caminhos entrecruzados em que futuro presente e passado se enlaçam formando o nó simbólico dessa identidade imaginária. Pensar-se enquanto “eu” e dentro do “eu” buscar-se enquanto mítico e imutável é desejar a criação de uma única imagem de si. Observa-se que na há na sociedade portuguesa a suspensão dessa questão sobre o que de fato a constitui como “eu”. As mais diversas manifestações das ciências sociais pretendem esclarecer de alguma maneira o caráter português paradigmaticamente marcado pela mitificação, pelo isolamento em si e ainda por se representar como ponte entre o “atraso” e o “futuro”.

Ao propor uma análise sobre identidade deve-se ter em conta um dos grandes promovedores desse palco de discussões, de modo geral, que é o tema da viagem. Percorrendo a história da literatura vê-se essas manifestações de si associadas às viagens que promovem o contato com o desconhecido, ou seja, com o outro. No processo de construção das afirmações da cultura grega e de seu papel de criação de toda uma civilidade temos a Odisseia como representação e como modo de ratificação de uma identidade. O contato com o outro (bárbaros para os gregos) somente reforça o caráter positivo do “eu”, e em Ulisses tem-se o símbolo dessa construção coletiva que se posiciona em favor do próprio em detrimento do outro, tendo em vista a superação e a negação daquilo que vem de fora.

Há nos Romances de Cavalaria uma outra construção do “eu” que se conforma com o signo da religião cristã e traz um sentido mais de provação do “eu” do que de relação opositiva com o outro. Nesses tipos de romances o que diferencia é a imutabilidade do “eu”, daquele que busca ser digno do Santo Graal, num processo de ascese espiritual e de purificação. O sentido dessa representação é o de o próprio permanecer o mesmo do começo ao fim e de que a viagem constitui um processo místico de provação. A afirmação de si se dá em relação a si próprio, assim nesse modo de representação das identidades que se pode ter através da literatura tem-se essa identidade consolidada, ou seja, ela representa um caráter sólido e ascético, voltado para o “eu”.

Outro ponto da história literária em que se pode ter a representatividade do “eu” no processo de construção da identidade de determinado grupo é no momento de permanecia dos pressupostos do Romantismo. Esse período corresponde ao sentimento de dúvida que nasce em plena era industrial na Europa do século XIX. As ratificações são nesse momento desconstruídas e reprojetadas sob um ponto de vista do outro em detrimento do mesmo. Há a valorização intencional daquilo que parece exótico e distante para contrapor a constituição do “eu”, o qual se mostra como deteriorado, impuro, perdido por não ser possível voltar às origens da pureza nas quais os povos não civilizados, alheios a crescente industrialização, permanecem. Nesse processo identitário o “eu” se projeta como inferior ao outro de forma a ser posta em dúvida a sua própria constituição, sendo o outro indispensável para esse processo de identidade. O outro é o exemplo para o mesmo que busca se consolidar num período marcado pela re-estruturação da sociedade frente a uma mudança nos paramentos sociais e econômicos.

Porém no processo específico da criação/mutação da identidade portuguesa tem-se outros fatores que não estritamente os citados acima. Em se tratando de Portugal se estará apontando para outra construção que inclui outros modelos de identidade. Seguindo os passos da construção de Portugal como nação/império encontra-se a figura crucial para a concretização de uma identidade épica portuguesa que ainda sobrevive e que é nada menos que Camões. Como citado por Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade a cultura nacional é um discurso que produz sentidos que são formas coletivas de identificação e de construção de identidades, e que esse discurso se perpetua nas estórias sobre a nação, em seu reviver constante das memórias que conectam o presente com o passado. Isso reforça a importância de Os Lusíadas no caso de Portugal que tem como seu maior marco literário a epopeia de si mesma. Dessa forma a obra literária está ligada diretamente a representação da identidade de uma nação descobridora de um novo mundo, que sobrepujou o mar bravio com seus barcos e velas e com sua cruz como lume.

A obra de Camões resume em si o que verdadeiramente constitui a representação da identidade portuguesa, é na sua constante retomada ao longo dos séculos que há a sublimação do caráter épico que ficou marcado no povo português. Ao criar uma epopéia sobre a nação, Camões cria também a imagem daquilo que seria permanentemente visto como o grande momento da história não só de Portugal, por ter sido o protagonista das descobertas ultramarinas, mas também de todo o restante do mundo. Na obra encontra-se toda a grandeza desse povo que subjugou o mar com coragem e que sob o símbolo da religião levou a verdade para as terras desconhecidas, sendo por um pequeno espaço de tempo o topo mais alto do mundo até então conhecido. A imagem desse momento de elevação de Portugal é contrastada com a própria época em que Camões escreve os Lusíadas, se fazendo notar por ser o começo do declínio de toda a grandeza alcançada na conquista do mar e do caráter de povo messiânico escolhido para ser o semeador da verdade entre os povos, que criou a imagem de um Portugal digno de se tornar um Quinto Império. Esse momento maior da história de Portugal é um ponto chave para a análise da sua identidade e como ela é pensada hoje pelos sociólogos portugueses.

O contraste entre um passado glorioso e um presente decaído se faz perceptível ao longo da história literária portuguesa. Na peça O Auto da Índia do grande dramaturgo português Gil Vicente pode-se perceber o intuito irônicamente arquitetado de alertar Portugal para a ruína em que se deixava cair com as enormes perdas de dinheiro para manter as constantes viagens às colônias e das perdas dos homens portugueses seja pela morte que encontravam nas viagens, seja por abandonarem a terra em busca de fortunas além mar. Esse jogo entre uma realidade decaída e um passado próspero opera na peça uma crítica que pretende apontar para a necessidade de pensar Portugal enquanto nação e não enquanto império, assim a viagem não é tida como promovedora de uma elevação, mas antes disso é sinônimo da decadência da identidade portuguesa épica, na qual a viagem era símbolo da coragem e da fé. No próprio Os Lusíadas tem-se a ideia de viagem como ruína nas palavras do velho do Restelo no canto IV, o que revela ser esse um ponto controverso e fortemente marcado para a época de Camões e Gil Vicente.

Outro momento revelante em que se tem a retomada da discussão em torno do modo como a identidade portuguesa pode ser representada é no período romântico português com o conto Aquela Casa Triste de Camilo Castelo Branco. O pulo de quase três séculos após a criação de Os Lusíadas e das reivindicações de Gil Vicente revela um outro momento do “eu” português sendo pensado enquanto diferente do “outro” europeu. No conto há certa “ética” romântica que propõe um ponto de vista em que a viagem se mostra como algo puramente de caráter negativo já que se tem nesse período, assim como apontado por Gil Vicente séculos antes, o objetivo de se valer da viagem apenas como forma de enriquecimento e acumulação, como também há a crítica ao tráfico negreiro que é próprio dos pressupostos românticos, que tem em Portugal o seu maior representante em Camilo Castelo Branco. Novamente o passado surge como algo mais nobre do que o presente que é representado como vazio de valor, empobrecido pelo decaimento de Portugal à periferia da Europa e que tenta de algum modo se igualar ao modelo europeu dominante, seja na arquitetura, seja no próprio modo de vida. Esse aspecto que surge com o conto de Camilo revela mais uma forma de referenciação na caraterização do “eu” português, e se refere a duplicidade de Portugal sendo ao mesmo tempo centro e periferia.

Trata-se, pois, de mais um ponto importante na constituição da identidade portuguesa atual, a qual ainda por questões econômicas não deixou de ter o mesmo caráter de duplicidade que no conto de Camilo é revelado. Portugal é destituído da condição de centro, somente vivido na época das descobertas, e retoma a condição de colônia européia, mas ao mesmo tempo torna-se metrópole das novas terras, criando-se uma descentralização em que Portugal se vê entre essas duas forças, e onde perde definitivamente o caráter épico e universal que durante um curto período desfrutou. Essa descentralização é ainda importante para se tentar entender as teorias sociológicas em que parece ser esse o dilema maior da explicação da identidade portuguesa. Há duas correntes diversas em que por um lado Portugal é vista como uma ilha-saudade, sendo Eduardo Lourenço um dos nomes mais relevantes dessa corrente marcadamente saudosista. Nesse autor, a imagem da identidade portuguesa se constitui através da relação perpétua entre o passado épico e um presente irrelevante no plano mundial, e é esse distanciamento temporal que torna Portugal uma ilha na qual vive-se sob o abrigo da grandeza cantada nos versos de Camões, num tempo paralelo que revive constantemente o passado e que forma uma imagem do povo português como o povo da Saudade. O português se vê, segundo propõe o ensaio de Lourenço sobre a Mitologia da Saudade, como maior quando se volta para o passado e como menor quando se defronta com o presente, e desse jogo de tempos, já citado por Hall, a identidade portuguesa é transformada em construção mítica, misteriosa em que o céu e a cruz formam a melhor imagem na qual se pode representar essa identidade.

Outra corrente sociológica que tenta dar conta da representação portuguesa enquanto nação/império no seu aspecto de centro/periferia é a que propõe a desmitificação de Portugal. Em autores como Boaventura de Souza Santos torna-se clara a necessidade de conhecer-se a si e dessa forma transformar o exotismo, que carateriza a visão defendida por Lourenço, em conhecimento. Segundo Boaventura, no seu texto Pela a mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade, o excesso mítico que envolve a “alma portuguesa” serve como pano para esconder um longo histórico de desinteresse científico das elites culturais portuguesas. O papel do miticismo é justamente de suprir essa falta de discursos explicativos e representar uma identidade firmada em si mesma numa suposta originalidade, justamente o contrário daquilo que propõe Boaventura que é a da diferença necessária que há entre uma identidade e outra, ressaltando que Portugal faz parte de um sistema mundial e que não vive solitariamente numa ilha-saudade como sugere Lourenço. A proposta de Boaventura é a de trazer outra representação identitária que se pretende mais livre de implicações com o passado, e que tenta dar conta do presente pelo qual Portugal - recentemente integrada à União Européia atravessa, além de abrir espaço para a discussão daquilo que é preciso fazer para tornar Portugal uma nação voltada para o futuro e libertada do passado ilusório.

Na literatura mais recente de Portugal, tem-se com escritores como Saramago mais uma tentativa de pensar a identidade portuguesa. No Conto da Ilha Desconhecida, Saramago revela um Portugal que se descobre enquanto “eu” fora de si, a busca do que é essa identidade portuguesa se dá por um processo de deslocamento do mesmo para fora do mesmo. A proposta parece ser a de mostrar que o português para se constituir precisa primeiramente se auto-conhecer, o que se confunde com a própria literatura no seu processo de assimilação de novos “eus” tão diversos quanto possíveis, que é o sair de si e ir ao encontro do outro, assimilar-se a ele e a partir dele como num jogo de espelhos ter a imagem de si reconstituída. A literatura como palco das mutações humanas nada mais é que o exercício de o ser se desdobrar em vários “eus” e de um nunca chegar a se completar. Em Camões, há um espelho que se confunde com tantos outros, e não só no caso dos portugueses, mas de forma geral, a integração e a identificação que ocorre com um espelho reflete a necessidade humana de sua visibilidade enquanto um todo, de se imaginar inteiro, o desconhecido é difícil de ser entendido, o perigo de se ver perdido, sem espelhos, assusta todo e qualquer humano. É disso que trata a identidade e a literatura, ambas caminham juntas e seria indiscutível dizer que muito dificilmente um dia poderá surgir alguém que se conheça sem antes ter conhecido alguém.

REFERÊNCIAS:

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: Dp&a Editora, 2005. 102 p.

LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia Das Letras, 1999.

MOISÉS, Massaud. O conto português. São Paulo: Editora Cultrix, 1975.

SANTOS, Boaventura De Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. 2. ed. São Paulo: Companhia Das Letras, 1998.

VICENTE, Gil. Sátiras sociais. Introdução e Notas de Mª de Lourdes Saraiva. Mira Sintra: Europa-América, 1975.