Romance Histórico vermelho e verde: de Euricos, Vascos e Gonçalos.
Paula Regina Scoz Domingos Damázio
UFSC
O homem em sua trajetória através dos tempos encontra sempre, em seus passos passados, marcas que revelam a si próprio o caminho por onde veio. O passado encerra a origem de si ressurgindo absoluto sobre o presente, que o remodela e interpreta como a resposta sagrada para tudo que é e para tudo que poderá ser. Em meio às reformulações sociais ocorridas no século XIX, há a criação moderna do renascimento do passado, construído e reconstruído pelos escritores como forma de vivenciar as proezas morais e práticas dos antepassados, da então recente pátria. O romance dito histórico traz para a arte literária a verdade histórica e cria a imagem de si, no momento da congregação dos homens e do surgimento das raças com suas crenças e valores. O ideal imaginário do romance alia-se ao pretenso “contar a verdade tal qual” da recém dotada ciência histórica, e com essa reconstrução do homem e da sociedade dos primórdios da raça pretende-se questionar o homem e a sociedade do presente, visto de forma decadente tanto moral quanto politicamente.
O romance histórico surge num momento histórico conturbado pelas sucessivas revoluções ocorridas na Europa, começando pela Revolução de 1789 e a queda da monarquia francesa. Há nesse momento uma intensa reformulação de bases sociais, políticas e econômicas, que condiziam melhor com o novo modo de governo instaurado pela República. Esses movimentos revolucionários criaram um tipo de relação entre a população e as lutas que até então nunca haviam ocorrido, pois pelo fato de ter sido necessário a criação de um exercito independente os civis participaram pela primeira vez no acontecimento da revolução. A experiência de todas as classes sendo envolvidas num único processo de mudança gerou o chamado aparecimento do “sentido histórico”, ou seja, a partir dessa experiência os indivíduos encararam a história não mais como uma seqüência de eventos alheios a sua vontade, pelo contrário, há quase uma certeza de que a história, o futuro, pode ser modificado a qualquer momento. O sentimento coletivo de libertação histórica aflora em sentimento nacional e busca das origens, que se firma em patrimônio das massas.
A sensibilidade histórica, resultado do “sentido histórico”, busca não só o conhecimento puro e simples da história, mas algo além que se converta em uma experiência vivenciada pelas várias classes que compõem a nova estrutura social. É dessa necessidade de resgate do passado, e com isso o conhecimento das origens das classes e da cultura, que surge na literatura o romance histórico. O novo gênero fruto da nova ordem social surge com as obras de Walter Scott, escocês que aliou as conquistas do romance realista inglês do século XVIII com a criação de personagens medíocres e prosaicos com caracteres nacionais. O romance histórico passa a ser o gênero literário por excelência nas décadas seguintes, sendo as obras de Scott repercutidas como o modelo primeiro para a criação de outras obras não só inglesas, mas de maneira geral por praticamente toda a Europa. Não é diferente em Portugal, que irá ter um processo de desenvolvimento do gênero indo de formas clássicas com os romances históricos de Herculano, passando pela tom irônico de Garrett e terminando com o realismo-histórico de Eça de Queiroz.
O gênero fundado por Scott pressupõe algumas “regras” que mediam a necessidade histórica com a criação literária. No romance histórico, segundo Lukács em seu estudo de análise de todos os processos que levaram ao surgimento do gênero histórico, pode-se perceber um conjunto de características especificas ao gênero. A primeira delas seria a escolha de personagens medianas, sem elevação “natural” que as colocariam diretamente em um nível superior, ou seja, o ethos não possui relevância para o novo gênero. Uma segunda característica tem relação ao tratamento das personagens históricas, que diferentemente das epopeias e tragédias, ocupam lugar secundário na trama, continuando a preservar sua importância porém de modo inovador. As personagens históricas são a peça fundamental para a criação das obras, pois em torno delas que são criadas as crises históricas que se quer pôr em evidencia. E essas crises são tratadas indiretamente, buscando-se ressaltar não o momento em si, mas as consequências e efeitos que essas transformações causaram nos personagens. As crises mudam não só a história, mudam também e de maneira profunda os destinos pessoais, perpassando por relações entre pais e filhos, amantes e amadas, enfim há um entrelaçamento entre o indivíduo e o momento histórico dentro do qual faz parte. Outro ponto de interesse no romance histórico deve-se ao intuito de “ressuscitar poeticamente os seres humanos” para representar uma realidade passada que seja fidedigna, sem jamais modernizá-los.
Com esses pressupostos como modelo, o romance histórico conquistou espaço para além dos centros efervescentes e revolucionários, indo ter ao pequeno Portugal, pouco transformador. Algumas obras como Eurico, o presbítero de Alexandre Herculano, O Arco de Sant'Ana de Almeida Garrett e A ilustre Casa de Ramires de Eça de Queirós marcam claramente o desdobrar do gênero scottiano em território português. O gênero encontrou a receptividade dos então discípulos da estética romântica, e aliou-se ao caráter romântico de exaltação e ardor das origens nativas, como também serviu de meio de combate para a necessidade que imperava de problematizar o presente decaído português, atrasado politicamente e economicamente. Nesse período os escritores deixaram de ser somente o “escritor de pena” e passaram a fazer parte integrante das reivindicações sociais ao lutar pelo país com armas em punho, como ocorreu com Garrett e Herculano, na tentativa de revolucionar Portugal em favor do liberalismo. As obras desses autores podem ser analisadas então num contínuo, desde o momento de maior importância do gênero do romance histórico até as sucessivas mudanças no cenário intelectual europeu, percorrendo com isso um período histórico extremamente singular para a História portuguesa. Analisá-las enquanto as suas proximidades ou distanciamentos em relação ao gênero scottiano, e apontar as apropriações de cunho unicamente português, significam estudar não só a arte literária, mas discutir a própria configuração social-política e cultural de Portugal.
Na época em que Herculano e Garret escreveram as suas obras, ainda persistia em Portugal as idealizações e os suspiros românticos, que passaram a ser envolvidos pelo movimento histórico do novo gênero de busca e resgate do passado, mas um passado que possa ter por fonte documentos verdadeiros, etc. Em meio a um processo de tensão entre as reivindicações por um Portugal liberal, e pelo pedido de uma constituição com restrições aos poderes reais, os escritores buscaram, através de seus romances, transportar o passado glorioso de uma época goda por exemplo, como no caso de Eurico, para contrapor ao estado presente de tão poucas glórias. Em Eurico, personagem símbolo do herói nacional, as idealizações de uma pátria que luta pela defesa de seu território e principalmente por sua religião, alegoricamente traz embutido o contraste do espelho, entre o passado trazido com o episódio histórico, do período heróico de Portugal no entender de Herculano, e o presente de desconcerto, ou seja, o herói que alia todos os dons na defesa das origens em contraste com a desarticulação desse desejo no presente pelo erguimento coletivo da nação portuguesa com tudo aquilo de verdadeiramente português.
Em se tratando da construção do romance histórico em Eurico, o presbítero, pode-se perceber a tentativa de consumar um autêntico romance histórico, apesar de Herculano deixar claro os impedimentos os quais teve de enfrentar para realizar esse nem poema em prosa nem inteiramente um romance “scottiano”. No prólogo do autor lê-se que para Herculano a classificação de romance histórico não consegue ter validade pois o passado do qual se vale, para construir o momento de crise interno e externo, está para além das possibilidades de uma reconstrução, nesse caso a reconstrução do homem do século VIII, isso significa que o seu romance não poderá encarnar as nuanças individuais que seriam um dos pressupostos do gênero, o que gera a criação de personagens com um certo toque romântico nesses intervalos impenetráveis. Há então um afastamento daquilo que Scott propõe e aquilo que o autor português escolhe como alvo para o seu estudo-estético, o que pode ser visto como uma incorporação às necessidades próprias da história portuguesa, ou seja, Herculano adequa o gênero inglês ao modo português. Os outros pressupostos não fogem às “regras”, num sentido abstrato pois a criação literária está e sempre foi um intenso criar e recriar nunca estagnado sob leis imperiosas, ou mesmo republicanas. Os personagens são em maioria de aspecto mediano, tendo por vultos históricos os grandes chefes dos exércitos de um lado, Roderico e de outro Tárique. A crise histórica está intensamente interligada aos dramas individuais, levando-o, no caso de Eurico, a própria morte, por amor e pela pátria. Pode-se porém questionar se o romance de Herculano não estaria de um certa forma modernizando o passado por traçar aos personagens ações “psicológicas” com fundo romântico.
Quanto ao romance de Garrett observa-se um outro tipo de incorporação do gênero, chegando mesmo a ser ainda mais português do que a obra de Herculano. Em O Arco de Sant'Ana, que está num mesmo contexto de criação que o Eurico, percebe-se ainda mais, ou bem mais claramente, a interferência desse contexto externo do momento presente na construção da narrativa. O Arco de Sant'Ana é dividido em dois tomos, o primeiro publicado em 1845, um ano depois que Eurico, e o segundo em 1850. A interferência do presente fazendo parte do próprio romance aparece ao longo da narrativa, conferindo um tom irônico e ao mesmo tempo muito mais intervencionista ou até mesmo mais radical que o romance histórico de Herculano, que se desenrola de forma tradicional com a intenção verdadeiramente histórica, trazendo termos e explicações em intermináveis notas de rodapé. Em Garrett não se encontra essa mesma preocupação com o histórico, sendo mais o próprio mote, o açoitamento de um bispo pelas mãos do rei, muito mais relevante que as informações “verdadeiras” que veicula. O motivo mesmo da retomada de Garrett para terminar o livro deve-se essencialmente a reaproximação entre a monarquia e o clero num momento pós revoluções. Em se tratando dos personagens percebe-se também temas recorrentes do romantismo, mas que são tratados de modo não tão convencionais, como o próprio fim amoroso entre Vasco e Gertrudes. Os vultos históricos aparecem como a figura do Rei Dom Pedro I, que aparece como o desfecho da obra. As crises internas e externas se constituem de modo a produzir diversas peripécias, como também o tratamento psicológico dos personagens parecem se aproximar mais satisfatoriamente, se é que se pode concordar com isso, à época escolhida como fundo histórico, o século XIV.
Por fim, em A Ilustre Casa de Ramires tem-se uma terceira incorporação portuguesa para o gênero histórico. Nesse momento não se trata mais do mesmo contexto nem se confere ao romance histórico a mesma importância dantes. Sendo o último romance de Eça, representante do realismo português, a Ilustre Casa se diferencia tanto dentro do conjunto de obras do autor, quanto no contínuo desdobrar do romance histórico na literatura portuguesa. Trata-se da formulação de um romance histórico como segundo nível narrativo dentro de outra estória, a de Gonçalo Ramires, ultimo descendente da Casa de Ramires, os autênticos portugueses antes mesmo de existir Portugal. Quase 50 anos após as publicações dos romances de Herculano e Garrett, em A Ilustre Casa há a apresentação de outra tensão política como pano de fundo, persistindo a crença na decadência moral e política de Portugal, que se aniquila sob o peso então extremamente opressor das mãos inglesas, que se traduzem no Ultimato de 1890. Essas questões permeiam a obra como tom, ou seja, Eça traz para o meio social uma obra que resgate de igual forma o passado, mas o intercala em tempo real ao presente e aos tipos de relações tidas tanto na política, com os amigamentos, quanto moralmente, com a falta ou o decaimento dos princípios cristãos, que são representados em vários níveis e ocasiões pelo personagem Gonçalo. Há dessa forma um modo totalmente outro de tratar o passado enquanto subproduto narrativo, que não deixa de ser essencial, mas que é posicionado estrategicamente enquanto ponto de partida, mas não meta final. Enfim, apesar de Eça não carregar a obra de todos os matizes irônicos que lhe são natos, até mesmo porque o escritor morre um ano depois não tendo tempo para revisar toda a obra, A Ilustre Casa carrega em si a simbologia do passado, do presente, mas que principalmente deseja além e sonha com um novo Portugal, digno dos novos portugueses que estarão por vir.
O romance histórico, vindo pela tradição fundada por Scott, encontra em Portugal um manancial repleto de possibilidades e vertentes, indo desde a criação romanesca-histórica de Herculano, passando pelo tom irônico e desconcertante de Garrett e chegando ao realista-histórico de Eça com o seu Gonçalo-Portugal que se redime pelas próprias mãos, apontando dessa forma um futuro não mais de decadência, mas que guarda em si a esperança e a crença da elevação ou erguimento dessa pequena terra da Península sobre todos, com sua fé e com a sua espada. O Portugal guardado dentro de Portugal, o leão adormecido, conquistador dos três sóis, universal, que ainda pulsa, sonha e vive em si, é isso que esses jovens escritores buscam despertar. A fúria do amor que passa por cima de tudo, e nesse caso das algemas inglesas, e que vive feito o fogo, intenso num instante... já dizia o poeta: “O amor é fogo que arde sem se ver.” Nada mais justo do que sair esse verso de um dos maiores amantes de Portugal.
REFERÊNCIAS
GARRETT, Almeida. O Arco de Sant'Ana. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1975. 330 p.
HERCULANO, Alexandre. Eurico, o presbítero. São Paulo: Editora Ática, 1991. 112 p.
QUEIRÓS, de Eça. A Ilustre Casa de Ramires. São Paulo: Martin Claret, 2006. 309 p.
ZILBERMAN, Regina. O romance histórico: teoria e prática. In: BORDINI, Maria da Glória; SANSEVERINO, Antônio Marcos. Coleção teoria da literatura v. 1. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 109-139.