Ecos da chibata: martírios do tronco moderno

O auge da exploração canavieira, no Brasil colônia, proporcionou lucros significativos à metrópole portuguesa. Na base da produção de cana-de-açúcar, a mão-de-obra, antes indígena, passou a ser a do escravo negro. Com isso, o tráfico de escravos, vindos da África, tornou-se uma atividade bastante lucrativa. Nas grandes fazendas, os negros eram “as mãos e os pés do Senhor de engenho”. Iniciava-se, assim, a triste história de um povo massacrado por causa de sua cor.

A mancha da escravidão maculou o solo brasileiro. Nos engenhos, as senzalas úmidas e frias eram testemunhas da desgraça dos escravos. À mercê da sorte e dos traficantes, os negros escravos sofreram os horrores do tráfico e a privação da liberdade, numa época onde o “branco” era visto como um ser superior. A nau dos desesperados singrava os oceanos, levando em seus porões infectos e lotados a massa escrava oprimida. Era reduzida à condição de "coisa", a qual se mandava marcar com ferro quente, por castigo ou identificação, como o gado. Mesmo com toda essa adversidade imposta, o negro sempre cultivou um espírito de resistência. O Quilombo dos Palmares foi o maior símbolo da luta escrava contra dos julgos dos latifundiários, que teve em Zumbi sua liderança. Formava-se, ali, a consciência de um povo subjugado pelo poder do branco e engajado no ímpeto libertário.

Passados mais de 100 anos do fim do sistema escravocrata, ainda é possível detectar resquícios desse período na condição social do negro brasileiro. A visão perpetuada, ainda hoje na sociedade, é aquela que identifica a pessoa negra como pobre, sem instrução e, por vezes, propensa à criminalidade. Não é de espantar que haja uma minúscula parcela de negros ocupando cargos sociais de prestígio. Um dos grandes desafios enfrentados pelos negros, para efetivar a sua inclusão social, é desmitificar a concepção de avalia a capacidade de uma pessoa em relação à cor da sua pele, sem observar as potencialidades que a mesma possa apresentar.

O brasileiro se julga antirracista e identifica o país como sendo multirracial e unido. Isso é até confirmado quando se consideram as políticas voltadas contra a discriminação racial, com leis mais duras e punitivas, em casos de prática de racismo. O Código Penal deixa claro que a discriminação, seja ela racial, de cor, credo ou nacionalidade, contra qualquer indivíduo, será punida com prisão e pagamento de multa. A lei repreende os atos explícitos de discriminação, mas não consegue inibir as “ações camufladas” de preconceito que, não raro, aparecem. É assim no sistema de cotas nas universidades brasileiras, o “tronco” do dias atuais. A reserva de vagas mostra que o negro não dispõe dos mesmos requisitos para competir, igualmente, com os candidatos “brancos”. É uma “discriminação inclusiva”, visto que proporciona a integração do negro ao convívio social e acadêmico. Contudo, não deixa de ser um modo mascarado de separá-lo do meio “ariano”, beirando a margem da invisibilidade humana.

São poucos os negros que atingiram o status social de prestígio, teoricamente destinado aos brancos: presidente Barack Obama, piloto de Fórmula Lewis Hamilton, top model Naomi Campbell, apresentadora de tv Oprah Winfrey, ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, atriz Taís Araújo. Eles são os exemplos da tentativa tímida, porém efetiva, de pessoas negras em ingressar nos espaços sociais de prestígio.

Compreender as diversidades culturais e biológicas é indispensável para a construção de relações humanas sadias e igualitárias. O ser humano deve reconhecer-se como produto do meio em que está inserido e, portanto, sujeito aos mais variados tipos de seleção, independente de aspecto físico. E é necessário mais que um dia para que ele tome consciência disso. Se a lei garante direitos e deveres universais, que os mesmos sejam cumpridos. O eco das chibatas só cessará quando a sociedade entender que o que nos torna seres humanos é a capacidade de reflexão sobre o mundo e nele agir com um propósito. Assim, o negro se libertará dos troncos sociais, não por causa de uma lei imperial, mas por trazer no rosto a saga de um povo guerreiro e digno, como cantou Castro Alves em seus versos.

Saulo Sozza
Enviado por Saulo Sozza em 08/11/2010
Reeditado em 28/11/2010
Código do texto: T2603292
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