Memorial de Viagem - Vazantes - Ceará

MEMORIAL DA VIAGEM

VAZANTES - CE

04 a 16/01/2006, em Vazantes – CE, pelo Grupo da Missão Asa Branca

Rosália Cristina

Estudante do 3º período de Letras da UNICAP (2006)

Membro do Grupo da Missão de Férias

Membro do Grupo do Caminho

APRESENTAÇÃO

A Missão de Férias, intitulada Asa Branca, tem como objetivo desenvolver atividades ligadas à dimensão sócio-cultural-lúdica, proporcionando uma aproximação e um conhecimento desse contexto entre os universitários e a comunidade visitada. Além de implementar novos projetos no local e desenvolver os já existentes com a comunidade.

Vazantes, distrito de Aracoiaba, Ceará, conta com a ação de dois projetos comunitários: Vazantes Vive e Fé y Alegria. Projetos com os quais o grupo buscou inicial suporte para que fossem desenvolvidas as atividades e que o grupo conta para que seja dada continuidade aos trabalhos por ele iniciados.

As oficinas realizadas, a relação do grupo com a comunidade, a aceitação das propostas e o desenrolar das atividades, no âmbito das tomadas de ação e participação/interesse coletivo são os principais aspectos elencados neste relatório.

IMPRESSÕES PESSOAIS

Ainda na festa de encerramento da caminhada ao Vale do Catimbau, Buíque, recebi uma missão em minhas mãos: ir para Vazantes, interior do Ceará, desenvolver uma atividade dentro de minha área acadêmica. Ainda sem entender a relevância da proposta, mas, sobretudo, feliz por ter sido uma das poucas pessoas escolhidas, sem mais delongas, aceitei. Nos dias 14 e 28 de dezembro fiquei conhecendo o grupo que seguiria comigo, a proposta missionária e os interesses acadêmicos que norteariam a missão.

O Padre Mota, um grupo de jesuítas e vocacionados, um funcionário da UNICAP e alguns alunos, totalizando 13 (treze) pessoas, fizeram parte do grupo. Fomos cheios de expectativas, ansiosos para saber como poderíamos aplicar nossas habilidades específicas, curiosos em saber como era a cidade e as pessoas que nela moram. Metade do grupo já seguira viagem, no dia 03, de ônibus. Os demais dormiram na residência dos padres, na universidade, para saírem juntos às 5 h da manhã.

Fora uma viagem longa. As estradas, em momentos, pareciam não ter fim: tocavam o horizonte e não nos deixavam chegar até ele. As paradas foram breves, mas reconfortantes por saber que estávamos cada vez mais perto de Vazantes. O calor e a sequidão da estrada não nos deixaram desanimar. A ansiedade emanava de nossos poros, de nossa fala e de nossos olhares.

Chegamos lá às 15h40min e fomos recepcionados por uma orquestra de flautistas, formada por crianças e pré-adolescentes. Cartazes, na casa em que iríamos ficar hospedados, nos recepcionavam com palavras de afeto e esperança.

Sentimos então, o quanto representávamos para aquela comunidade. Conhecemos a Igreja de São João Evangelista, que fica no centro da cidade, onde nos dias seguintes, fizemos nossas orações e onde eram celebradas as missas. Além disso, era através do som do sino da igreja que toda a cidade ficava sabendo da programação diária de nossas atividades.

Após dois dias de reunião com coordenadores e líderes das escolas, dos Movimentos Fé y Alegria e Vazantes Vive1, decidimos a grade de programação. Elaboramos Oficinas de Jogos como Futebol, Vôlei e Xadrez, Oficinas Recreativas com crianças e adolescentes, Orientação Sexuais para Adolescentes, Oficina de Leitura para crianças e educadores, de Liderança, de Teatro, de Dança (frevo), de Capoeira, de Implantação dos Conselhos Escolares, de Autoestima (educadores), de Resgate Histórico da Cidade, com os idosos, além de apresentações culturais desenvolvidas por pessoas da comunidade. Foi, sem dúvida, uma semana de atividade intensa.

Mesmo assim, com tantas atividades sendo desenvolvidas, encontrávamos tempo para viver a cidade. Conhecer as pessoas, as ruas, as casas, os costumes, os rios e açudes, as famílias, fazendas e tantas outras coisas. Encontrávamos tempo sempre para a graça do bom dia, para o olhar de afeto de pessoas que nem conhecíamos, para os temperos da culinária local. Encontrávamos tempo para brincar com as crianças, ouvir a histórias dos adultos, sorrir com os adolescentes. Os dias sempre transcorreram prósperos e agitados. Percorríamos as ruas com a precisão dos marinheiros de última viagem, que não requerem bússolas, com a justa imprecisão do tempo que nos favorecia, com a pressa de quem queria ajudar e a vagarosidade de quem já foi ajudado. E nem sempre conseguíamos nos desviar das pedras dos calçamentos, dos animais soltos que nos olhavam, dos vizinhos a nos fazerem questionamentos sobre nossas atividades, das crianças a quererem nos seguir, independente de nossos caminhos. E, em tudo isso, víamos a vitória em nossas ações.

Vazantes, que nos pareceu silenciosa e pacata, dia-a-dia despertava-se com a nossa presença. A comunidade recolhia-se às 20h e só às 6h da manhã é que ia retomando conta das ruas. O grupo da missão, por sua vez, adormecia por volta da 1h da madrugada, contando os acontecimentos mais marcantes do dia, trocando as experiências e preparando os novos contextos para o dia que estava por raiar. Acordávamos entre 6 e 7 horas da manhã. A maioria, e muitas vezes todos do grupo, ia para a oração matinal diária que, como já foi citado, era feita na igreja. Embora, algumas vezes, a fazíamos ao ar livre, caminhando pela rua principal ou à margem do rio, próximo à residência que nos abrigava. Eram momentos de entrega espiritual, momentos em que o abraço fraterno era de suma importância na nossa missão. Revigoravam-nos a alma e nos preparavam para o dia que se abria.

Além da alegria das crianças e das expectativas dos jovens, nosso grupo ganhou a simpatia dos idosos, através da Oficina Memória Sociocultural e Histórica de Vazantes, que nos presentearam com o seguinte relato:

No inicio, Vazantes era como uma ilha, cercada pelos rios Aracoiaba e Choró. Havia algumas casas espalhadas, mas a maioria do território era só mata. Já por volta de 1941, os transportes eram o jumento e a canoa. Depois de alguns anos surgiu o mista (carro de três boleias). A casa mais antiga é a do finado Cap. Antônio Joaquim de Oliveira. Na primeira avenida, que é a São João, havia duas ou três casinhas que, com a continuação, surgiu a rua, transformando-se mais tarde na avenida. As primeiras famílias foram os Maias, os Gomes e os Oliveiras.

As casas do Centro foram feitas numa época em que os materiais de construção eram mais baratos. Havia fábrica de algodão, engenho, plantações de hortaliças, de sementes (milho, feijão, arroz) e raízes, como a mandioca. Fazia-se a colheita da palha da carnaúba para fazer bagana (estrumo) e cera, que era vendida para fora. Da palha era feito chapéu, bolsa, vassoura e disco de vinil.

A igreja, por sua vez, que já está com seus 96 anos 3, foi construída lentamente, com recursos próprios, “graças ao mutirão de várias gerações de fieis, com apoio de vários padres” 2, entre eles Padre Demétrio, que foi um sacerdote muito trabalhador e bom. A estrada que segue até a Pastoral do Idoso tem o nome dele, pois foi ele quem ajudou a fazê-la: passava de cavalo e descia para limpar o caminho. E ele nem era padre daqui! Era padre de Ideal, cidadezinha próxima, mas gostava muito de Vazantes. Ele trazia roupas, leite, arroz, massa de milho e calçados para a comunidade. Um dia ele sentiu-se mal, no meio da missa, foi socorrido, mas morreu em Aracoiaba, com 80 anos de idade e 52 anos de ordenado, sendo 46 anos por Vazantes.

A energia utilizada era a motor, com as primeiras instalações na Fazenda Olivândia e, mais tarde, onde hoje é o Correio (área da delegacia), e finalmente na Escola Estadual João Alves Moreira. O motor funcionava das 18 às 22h e poucas casas possuíam TV e rádio (a casa do Tobias Elias de Oliveira e a do Joviniano Brasil). Esse motor surgiu através de uma cooperativa, e financiado pela família Oliveira.

Quanto à educação, havia uma escola pequena, particular, que nem oferecia certificado de conclusão de curso. As aulas eram ministradas no salão paroquial e o que era oferecido mesmo era a palmatória. A atual escola estadual existe devido o pedido de Dona Isaura ao Sr. Antônio Maia Freire e Sr. Almir Pinto que, por sua vez, recorreram ao Secretário de Educação, Sr. Figueiredo Correia. Pedido aceito, o terreno da escola, onde antes havia uma casinha de taipa com um alpendizinho e mato, foi cedido pelo Sr. João Alves Moreira, e a pedra fundamental da escola foi colocada em 1961, construindo-se a escola que hoje tem o nome do antigo dono do terreno.

A princípio, não havia posto de saúde. Cuidava-se das doenças através dos curadores e os casos mais graves eram mandados para Aracoiaba, quando lá foi fundado o hospital. O posto daqui surgiu apenas quando o prefeito de Aracoiaba era o Dr. Ary. Hoje, no posto, tem serviço de Enfermaria, Clínica Médica, Dentista e Pediatria. A população de Vazantes recebe remédio gratuitamente do posto, principalmente os de controle de pressão arterial e anticonceptivos.

O cemitério localizava-se onde hoje é a igreja, bem ao centro da cidade, com poucos túmulos, sinalizados apenas por uma cruz no local onde fora enterrado o corpo.

Os elementos que representam a cultura de Vazantes são o Reisado, a Quadrilha, a Dança e o Teatro, tudo através dos mais jovens. Já o Artesanato é mantido na cidade a partir da tradição do bordado, da produção de tapete e da cunhagem da madeira.

Onde hoje é a Pastoral, havia uma fábrica de tecido próprio para redes, onde elas eram feitas por completo e vendidas às cidades vizinhas. Essa fábrica partiu de um projeto elaborado pela própria comunidade e enviado a prefeitura de Aracoiaba. A fábrica funcionou por cerca de 5 anos, parando de funcionar por conta de questões políticas em Aracoiaba.

A culinária diversificada também é um dos pontos fortes de Vazantes: estrogonofe, grude, baião de dois, mungunzá, farofa, doces caseiros, pão-de-milho, pamonha, pé-de-moleque, bolo de fubá, canjica, galinha caipira, sucos (manga, graviola, acerola, maracujá e goiaba) são exemplos de comidas locais, tradicionalmente usadas pela população.

“Vazantes hoje está um céu!!! Embora não se durma mais de portas abertas!”

As drogas estão vindo de fora e de vez em quando acontece uma morte. E, infelizmente, apesar de tudo isso, não há policiamento.

As pessoas aqui são prestativas. O difícil é trabalho. A maioria dos jovens vive ou de agricultura ou da aposentadoria dos pais e avós. As mulheres ou são professoras ou são donas de casa. O que mais desejamos para nossos filhos é oportunidade de trabalho e melhoria na educação. Poderiam, por exemplo, reabrir a fábrica de tecidos, pois ainda há muitas costureiras em vazantes.

Apesar de tudo, nossa cidade evoluiu muito. Hoje temos dois colégios, uma igreja muito bem zelada, com cantores e instrumentos. Tem a Vazantes Vive, que teve muita influência do Padre Pedro Rubens, sendo um setor muito importante para o crescimento educacional dos jovens. Temos ainda um grupo de crianças que toca flautas, cujo responsável é o músico Jairo, além das apresentações de teatro e dança como já foram citadas.

Não podemos deixar de ressaltar que temos também o nosso grupo de idosos, que faz parte da Pastoral da Igreja. O responsável é o Padre Pedro Rubens e tem como coordenadores Terezinha e “Tonton”, além dos animadores “Bastião” e José Ferreira.

Podemos dizer que moramos numa cidade. Temos água encanada e calçamento em muitas ruas. Temos um belo açude feito pela SOIDRA, EITÊ e SRH. Lá existe um criatório de peixes, que exporta para cidades vizinhas e garante o emprego de muitas pessoas. É um açude bem estruturado.

Tudo isso é muito importante para o crescimento e desenvolvimento de nossa comunidade e para o futuro de nossos jovens e crianças. Com a ajuda de muita gente boa e importante Vazantes evoluiu muito. Muito diferente do tempo de nossa adolescência.

Nas duas noites que ocorreram a oficina com os idosos, na qual desenvolveram esse relato histórico da cidade, eles fizeram questão de nos presentear com um forró pé-de-serra, ao vivo, onde todos – missionários e idosos – pudemos através da dança desfrutar de um momento de interação e lazer.

Os cuidados que a comunidade tinha para conosco, no referente à alimentação, saúde, estadia, informação e disponibilidade sensibilizavam-nos cada vez mais, criando laços afetivos interacionais de suma importância para todo trabalho que estava sendo realizado.

No término do forró, na 2ª noite de oficina com os idosos, já transcorridos sete dias de nossa presença no distrito, fomos à casa de Regina (responsável pela Biblioteca do Fé y Alegria), a convite da própria, para participar de um “comes e bebes”. Enquanto todos bebiam, comiam, sorriam e falavam, pus-me a observar cada um, suas metas, suas conquistas, suas faces... E nesse ínterim produzi a seguinte poesia que retrata o momento e as pessoas:

Ébria noite

Faces róseas ou morenas

Risos desbancados sob a face da noite

Corpos salientes, outrora prudentes,

olhares que se deleitam no açoite

do perfume dos cálices.

Falas amigas que se cruzam em vida.

Sustentáveis criações em cárceres

de uma disritmia tênue e serena,

em muros de espumas fraternas

que contornam os missionários:

milionários de avidez

nas quietudes da consciência,

inquietos por suas essências.

Trépidos formigamentos d’alma

em segredos ecoados pelo vento

nas faces delineadas por risos.

Alegria momentaneamente duradoura

nessa incoerência de dizeres.

Faces róseas ou morenas

Risos silenciados sob a face da noite

Prudentes corpos salientes

açoitados por cálices.

Falas sustentáveis nos próprios cárceres

ritmicamente fraternos

numa essência de ideias inconstantes

Prudentes dizeres sob a face da noite

nesses inesquecíveis e

passageiros instantes.

Recitei a poesia e fui para a casa dormir, pois o amanhã chegaria breve e rico. E assim o fora. Os amigos missionários gostaram da poesia e eu me senti bem (ainda mais) no final daquele dia.

No dia seguinte, alguns missionários foram a duas cidades próximas: Lagoa de São João e Lagoa Grande. Como permaneci em Vazantes, devido a Oficina Caminhos que a Leitura Leva, não tenho detalhes de como foram as visitas, mas de certo os amigos que lá estiveram explicitaram a acolhida em seus relatos.

Para o sábado, dia 14 de janeiro, preparamos uma culminância no clube local, onde a comunidade pôde apresentar boa parte do que aprendeu conosco. Houve apresentações teatrais, danças, capoeira, musical, entrega de troféu e medalhas aos meninos do futebol, além da amostra de trabalhos feitos nas Oficinas Caminhos que a Leitura Leva e Informática. Houve também homenagem do grupo de professores que participaram das oficinas às suas facilitadoras, palavras de agradecimentos e, claro, forró.

A noite que antecedeu a despedida foi galgada pela insônia. Foi ela nosso porto seguro e nosso desejo de ali permanecer. Foram dias intensos e breves. O domingo de nossa partida chegou abrindo a porta às nossas expectativas e, consideravelmente, nostálgico. Tomou-nos, subitamente pela ansiedade de saber o resultado de nosso trabalho; e se tornou nostálgico, por termos que nos distanciar (ainda que só fisicamente) de tantas pessoas que nos tornaram queridas.

NOTAS:

1. Vazantes Vive, segundo o Padre Pedro Rubens, “é uma abreviação de uma frase de Dona Isaura, professora das mais antigas e devota que praticamente "criou a tradição" de todas as novenas que o povo reza ainda hoje. A frase teria sido pronunciada por um filho de Aracoiaba, Dom Raimundo de Castro: "Vazantes não pode morrer, Vazantes tem vida própria, Vazantes tem que viver". Para abreviar, criei o movimento "Vazantes Vive", convocando as pessoas a despertarem para assumir algumas causas da comunidade: a autonomia da Escola Joao Alves Moreira que estava prestes a fechar por falta de alunos (hoje é uma escola emancipada e de anexo passou a ser sede); lutar pela água tratada, mobilizando associações e forças políticas (hoje a água corre nas torneiras); de toda sorte, dessa mobilização, acabou nascendo também o Fé y Alegria... bom mais haveriam outras histórias, mas também precisariam de outras missões.”

2. Citação complementar do Padre Pedro Rubens

3. Nesses idos de 2010, a Igreja completou 100 anos.

Rosália Cristina
Enviado por Rosália Cristina em 19/07/2010
Código do texto: T2388056
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