O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO-II-COMENTÁRIOS E CONSIDERAÇÕES
"O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO"
Considerações e Comentários
A história do Leandro Gomes de Barros – O Cavalo que Defecava Dinheiro – desvela tal sincretismo que vai dos limites do conto fantástico ao contingente maravilhoso, deslizando pelo conto popular que protocola sua imprecisa entrada na embaixada arturiana. As aventuras construídas pelo autor, que com maestria compreende o imaginário popular vão de encontro ao seu público e possibilita a sonhada revanche do oprimido em realizar sua vingança contra o opressor, rico e dono de muitas terras, através de artimanhas muito espertas, cujo logro decanta o cômico, o engraçado, o deboche, explorando ironicamente os vícios humanos. No confronto entre as produções arturiana e carolíngia, verifica-se que esta busca o concreto da cena e não o atributo fantasioso, permitindo, contudo, o exagero cavaleiresco. A oralidade que narra os episódios incríveis é marcada expressivamente pela... mnemônica maneira versificada de exprimir e atingir a mais imediata e acessível persuasão, com auxilio de ritmo e rima de memória para a memória. Com tal eufonia, os sentimentos dos ouvintes são postos para fora numa conflagração popular em que todos se vêem vingados, diante da caricatura exposta. Externam satisfação naquele cotidiano circunscrito viver. E, quem conta um conto, aumenta um ponto, as estórias vão ganhando novos matizes na sua difusão. Observe-se como o poeta conduz de forma prática e objetiva o seu intento, usando formulações imaginosas e simples que correspondem aos anseios do povo. O encadeamento versificado produz sentido dentro de uma lógica interna, alternando estados de recepção com o devir das ocorrências. A ironia é o fio condutor e a fantasia imaginativa veste as situações embaraçosas com troça, satirizando o prepotente em suas frustradas investidas. O adágio popular sintetiza a situação dizendo: vendeu gato por lebre.
Manuel Maria Barbosa du Bocage (1766-1805) a respeito de inveja concerta: ...Não goza de repouso um só momento, / Os cuidados que a roem não sofrem sono: / Mirra-se de pesar, ao ver nos homens / Qualquer bem; rala, e rala-se a maligna / É verdugo de si, ódio de todos.
A correspondência significativa comparece em: ...mas quando viu a rabeca / quase morre de ambição; ...porém a sua rabeca / só serve bem para mim; ...a rabeca já é minha / eu preciso a possuir / ela para mim foi dada, / você não soube pedir.
Contemplando epístolas, sátiras, glosas, alegorias e metamorfoses de Bocage, encontramos em Leandro Gomes de Barros os mesmos ingredientes sardônicos que temperam alguns de seus narremas.
A titulo de ilustração, segue abaixo, um pequeno soneto de Bocage que exemplifica o engenho com que os dois poetas tramam e improvisam suas composições.
“Discutiu-se em certa reunião a parecença que havia entre uma bela menina e o seu progenitor, muito iguais em fisionomia e em gênio.
- Não é verdade, senhor poeta? – perguntou uma senhora a Bocage.
- V. Exa. o diz – respondeu Elmano.
E improvisou:
A igualdade entre ele e ela
É que tem o pai, de tolo
Quanto tem a filha bela
Desarranjo no miolo
.
Mas quem saiba não se pilha
Qual do dois ao outro sai:
Se é o pai que sai à filha
Ou se a filha sai ao pai”.
A construção léxica do poeta sertanejo observa uma linguagem regionalizante, própria, estruturada em sextilhas conforme manda a tradição dos cantadores. O contraponto argumenta e dá ação envolvendo o leitor ou o presenciador numa atmosfera de galope, em querer saber quais expedientes os protagonistas vão propor ou reagir. Tal sensação não cabe embaixo de uma latada.
A descrição, pano de pouca metragem, serve para visualizarmos os personagens e as coisas que trafegam pelo cenário. Este por sua vez se desenha numa área rural, onde a presença medieval de um duque se impõe aos seus colonos.
Por outro lado, a narrativa dialógica flui sem respirar, capacitando o enredo de transmitir admiração nas peripécias concebidas.
- Compadre, a sua riqueza
diga que foi eu quem dei
pra você recompensar-me
tudo quanto lhe arranjei
é preciso que me bote
no lugar que lhe botei
Disse-lhe o pobre: pois não
estou pronto pra lhe mostrar
eu junto com os capangas
nós mesmo vamos levar
e o surrão da serra abaixo
sou eu quem quero empurrar
O discurso afinado com a estória evolui em uma seqüência coerente numa contigüidade com outros textos precedentes.
A concepção dos versos sedimenta um conhecimento prévio de poetar ou como predica Zumthor a tradição situa-se muita vez nas profundidades invisíveis do espaço poético. Acrescente-se ainda, ...a criação revelando uma nova presença, com sua herança e discurso oral, com o seu próprio construir.
Diante de tamanha diversidade de tramas, a mimese, embora dissimulada parece não incomodar os autores, visto que tantas adaptações e variantes são homologadas que se torna muito difícil identificar a origem e o que é original no emaranhado folhetinesco. Editores viram proprietários e no seu interesse procedem adulterações.
Decamerão, de Boccaccio (Giovanni – 1313-1375), em suas novelas me faz intuir que um certo humus de seu trabalho corre no material cavaleiresco, recortando a maneira de se narrar uma historia, não na sua forma, mas como a percebe, ensejando argumentos ou sugestões que manipulados à luz do ideário medieval traduzido, reflete unidade e desembaraço nas soluções imaginativas e de encantamento. Para tanto, reproduzo breves sínteses de alguns enredos.
Da terceira Jornada – NEÍFILE – oitava novela: Depois de ter comido certo pó, Ferondo é enterrado como se estivera morto. O abade, que goza prazeres de amor em companhia da esposa dele, retira-o do sepulcro e coloca-o na prisão, dando-lhe a entender que se acha no purgatório. Em seguida, ressuscitado, aceita como sendo seu um filho que nascera dos amores do abade com sua esposa.
Décima novela: Alibeque faz-se eremita, e o Monge Rústico ensina-lhe como se faz para reenviar o diabo ao inferno; em seguida ela, já liberta, torna-se esposa de Neerbal.
Da sexta Jornada – ELISA – quinta novela: O Senhor Forese da Rabata e Mestre Giotto, o pintor, vindo de Mugello, mordem-se reciprocamente, zombando cada um deles do aspecto acabado do outro.
Da sétima Jornada – DIONÉIO – oitava novela: Faz-se um homem ciumento de sua esposa; ela, amarrando um barbante a um dedo, no curso da noite, é avisada da chegada de seu amante. O marido percebe a artimanha. Enquanto o marido persegue o amante da esposa, esta põe, na cama, outra mulher, à qual o marido dá uma surra e corta as tranças; em seguida, vai o marido à procura dos irmãos da mulher, e conta-lhes a traição conjugal; percebem os irmãos que a acusação peca pela base; e dizem impropérios ao marido.
Da nona Jornada – EMÍLIA – primeira novela: A Senhora Francisca, que é amada a um só tempo por um florentino de nome Rinuccio e por outro que se chama Alexandre, porém não tendo amor a nenhum dos dois, ordena que um deles entre, fingindo-se morto, numa sepultura, e que o outro vá retirá-lo de lá, como se estivesse retirando um defunto. Como não puderam eles atingir o fim determinado, ela, com muita cautela, se livra deles.
Décima novela: Por instância do compadre Pedro, Donno Gianni realiza o feitiço destinado a transmudar sua esposa em égua; quando está a ponto de aplicar a cauda, o compadre Pedro, afirmando que não deseja a cauda, arruína o efeito todo do feitiço.
Da décima Jornada – PÂNFILO – quarta novela: Vindo de Módena, o Senhor Gentil dei Carisendi retira, da sepultura, uma mulher casada, que ele amou, que fora enterrada como morta. A mulher, recuperando os próprios sentidos, dá à luz um filho; e o Senhor Gentil devolve a mulher e o filho a Niccoluccio Caccianimico, marido dela.
Com efeito, se tal produção foi conhecida ou perambulou pelo cordel ibérico aqui foi replicado, pois temos uma pluralidade de exemplos no romanceiro nordestino. A universalidade das proposições que permeia é comum a todos os seres humanos, guardadas as peculiaridades etnográficas e de cultura.
A abordagem setentrional feita pelos nossos poetas-cantadores denuncia o regionalismo do qual é portador, eivada de características pertinentes ao lugar, suas crenças e tradições. A oralidade, primaz da comunicação, dá conhecimento até por grafados de causos acontecidos, que na transmissão de um para outro ganha novas cores, novos episódios, ajustados às condições de um determinado objetivo.
Os caminhos se cruzam na intertextualidade dos cordéis e a tópica se apresenta titular nas composições. É fundamental a presença dos topoi para que haja reconhecimento por parte do povo.
Animam o lúdico o comparecimento de animais e aves que reunidos aos homens dialogam as circunstâncias da vida, aproximando-os. São também testemunhas do esforço de bem-viver e de morrer, seja a que propósito for.
Permeia nas histórias populares o sopro de uma voz escondida que conduz o desenrolar dos acontecimentos, a exemplo do ponto no teatro.
No presente caso de folheto encantatório, regido por uma práxis definida por Propp como uma cadeia de invariantes de uma mesma estrutura básica, que se repete sem limites; Jerusa nos propõe ...há um outro mundo possível, o que, nebuloso tem as suas próprias normas e seu cânone, onde a imaginação sem apoio historicizante direto... tem muito maior abertura sobre os abismos ou os infinitos criativos, podendo a imaginação correr a bandeiras soltas, apesar da apontada modelagem prévia.
Porquanto tenhamos constitutivos permanentes no ciclo carolíngio devido ao texto-matriz, algumas incursões pelo sobrenatural o aproximam do fantasioso.
Carlos Magno tem residência conhecida, enquanto Artur, itinerante, misterioso, se lança nos caminhos do fascínio arrebatador.
De qualquer forma, a gota historicizante freqüenta a culinária do prodígio, apesar da inexistência de um texto matricial definido.
O mimetismo cultural é revestido pelo repertório de hábitos, costumes e crenças de uma dada sociedade ou região, inclusive a sua retórica. Relatos de outras bandas recebem o contumaz chapéu-de-couro.
O coloquialismo se faz presente: Disse o velho: meu compadre/ você não pode tratá-lo,/ se for trabalhar com ele/ é com certeza matá-lo/ o melhor que você faz/ é vender-me o cavalo.
No contexto nordestino, a paródia, o tom jocoso, a situação engraçada classifica o revés: O velho ia pensando/ de encontrar muito dinheiro/ porem sucedeu com ele/ do jeito do boiadeiro/ que quando chegou em baixo/ não tinha um só osso inteiro.
Concluindo, “O Cavalo que defecava Dinheiro” num trote treinado, trilha com Joseph Campbell a Jornada do Herói, que do mundo comum é chamado à aventura e do enfrentamento com seus inimigos entra no mundo especial, passa por provações até conseguir sua recompensa. Retornando com o tesouro, ressuscita e é transformado pela experiência.
Afinal,
“Existem apenas duas ou três histórias humanas,
e elas vão se repetindo sem parar, teimosas,
como se nunca tivessem acontecido antes.”
Willa Cather, em O Pioneers!
Paulo Costa
dezembro/2009
FONTES CONSULTADAS
BIBLIOGRAFIA
Fábulas de Esopo, Aventinum, Praga, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1ª ed., 1997, págs. 4 e 41.
Leandro Gomes de Barros, O Cavalo que defecava dinheiro, Fundação Joaquim Nabuco, págs. 9, 10, 15, 4 disponível em: www.fundaj.gov.br , em 18/novº/2009.
Jerusa Pires Ferreira, Cavalaria em Cordel – O Passo das Águas Mortas, Hucitec, S.Paulo, 1979, págs. 29, 36, 39, 49, 50, 53.
Obras de Bocage, Metamorfoses, IV A Gruta da Inveja, Lello & Irmão-Editores, Porto, 1968, pág. 1485.
Bocage, Sua vida histórica e anedótica, Guimarães Editores, Lisboa, 1971, pág. 104.
Giovanni Boccaccio, Decamerão, Abril S.A. Cultural e Industrial, 1979, tradução de Torrieri Guimarães, págs. 184, 198, 328, 375, 466, 500 e 517.
Márcia Abreu, Histórias de Cordéis e Folhetos, Mercado de Letras, Campinas-SP, 2008, 3ª reimpressão.
Christopher Vogler, A Jornada do Escritor, Editora Nova Fronteira, 2006, 2ª ed., tradução de Ana Maria Machado.