Releitura de um copo d'água
Tentava dormir.Lembrava de seu amigo da faculdade, que evitava fazer isso com café, um violão e Piratas do Caribe.Costumava não entendê-lo muito bem,alheio ao mundo durante as manhãs.
Mas sabia que, para dormir, é preciso olhar para dentro do dia. Recapitulou a mesa de café apressado, duas irmãs e um homem correndo para o fim do ano. Kelsen insistia em classificar as normas de maneira inversa aos outros doutrinadores, Nietzsche escorrendo da boca dos que não decidiram pensar,cinco balizas esbarrando nos cones, a Fundação Sarney ainda em vigor.Fugiu para o mundo da gramática, a fim de se esvair por completo numa ficção verossímil.Mas “ser” –engraçado- é um dos verbos que mais sofre alterações no que deveria ter entendido como radical.Defectivo.
O ser não é algo expressamente radical. Pensava na faculdade recém-escolhida, nos amigos pouco vistos, no amigo tão longe. Será que ainda são ou entraram nos pretéritos-perfeitos-e-companhia , tão enganadores?O radical deveria se manter, como essência.Para ser, não se muda completamente, seja nos indicativos ou não.Queria ser por completo, quase que existir mesmo.
Só viu passado imperfeito. O porre homérico da semana passada, o pé-na-bunda precedente ao mesmo, oito em vinte na prova de teoria geral de alguma coisa, a democracia envenenada próxima ao impossivelmente modificável, os retratos de obsessão por pessoas desconhecidas. As horas perdidas em vão. Sentia-se bebendo água em um copo constantemente quebrado, baseada num passado invólucro que sequer se importava com ela, mas não a deixava dormir.
Foi-se em eras.
Entendia totalmente o colega de sala; muito mais fácil não se submeter a essa vulnerabilidade intangível que é sonhar. Sonhos correm o risco de nos contar a realidade embutida no inconsciente, reviu. E aí todo aquele "ser" incompleto, defeituoso e inerte seria humilhado pelo ideal tão custosamente ignorado. Poderia, assim, perceber o que não deveria, o que não lhe cabe, mas sem a alternativa de encontrar um modo de se emancipar e mudar.Não agora, pelo menos.
Veio-lhe na cabeça a menina de cabelos negros que intelectualmente perseguira, há tantos anos. Admirava furiosamente seu turbilhão de escrita, e sentiu, finalmente, que a mudança para o pretérito mais-que-perfeito se consolidara. A angústia dilacerante da época se transformara, sem resquícios, em uma parte de si ainda mais forte que o ser, sustentável por si só e de radical definido, indefectível. Natural que isso acontecesse com os pretéritos imperfeitos recentes, só restava a coragem chegar.
A esperança tem uma brisa engraçada, sorriu.
E,como que de frente a um forte remédio contra insônia e inteiro copo d'água, desceu de sua cama envolvida em lençóis, rasgou papel perante a luminária acesa e começou,aliviada:
“Tentava dormir. Lembrava de seu amigo da faculdade....”