A PONTE DO PRECIPÍCIO - romance - parte XV

A casa estava que era só desalento. Tetê avisou a patroa dos motivos que a levaram a não comparecer ao trabalho naquele sábado. As duas mulheres quedaram-se sentadas na cozinha, ao lado do celular da moça. Como na voz do povo sempre se ouve dizer que, se a notícia é ruim a gente fica sabendo logo, esperavam, ainda que com os nervos em frangalhos e temerosas, somente uma boa notícia. Os minutos escoavam-se tão lentos que pareciam horas, mas somente naquela casa. Lá fora a vida continuava com os matizes da normalidade de sempre. As crianças brincavam na rua sem asfalto e sem maiores cuidados, em sonora algazarra; os cães vagabundos visitavam as latas de lixo no afã de encontrar algo comestível; o sol quente do verão carioca fritava as já morenas epidermes, valorizando a cor mulata dos filhos dos morros.

Mas, lá dentro daquela casa, no redil da ovelha perdida, por ser ela muito amada, reinava o silêncio absoluto que, por ser abominado e odiado por ser ele o próprio silêncio – a negação de notícias daquele ente querido – aumentava, instante a instante, a contrição dos corações amantes da mãe e da irmã do desaparecido. Os ponteiros do reloginho barato que estava em cima da mesa diziam às duas que já ficara para trás o meio dia, o costumeiro horário do almoço. Nas, nenhuma delas sentia fome, mesmo porque, na ansiedade da espera, nada haviam preparado para essa refeição. Dir-se-ia que até o estômago ficara em compasso de espera. Mudos, os órgãos do corpo não reagiam e nem interagiam. Somente a audição estava voltada para o pequeno aparelho de comunicação posto pela dona em cima da mesa. A qualquer momento deveria anunciar, com estardalhaço, o surgimento de vestígios da pista ou das pegadas daquele por quem choravam os corações da família. Mas, por ora, todos os espiritozinhos impuros, travessos e brincalhões, que se compraziam em divertir-se com o desespero alheio, induziam esses condoídos corações a pensar em notícias fantasiosas e de péssimo humor. E, esses pensamentos desconsoladores, não fora a fé que as duas mulheres tinham em Deus, instalaria, fatalmente, o desespero nelas e somente Ele sabe o que seriam capazes de fazer para obter as respostas que tão ansiosamente esperavam.

E o movimento giratório de transação do globo continuava em sua marcha inexorável, não dando tréguas ao tempo, que ficou parado. Há muitas horas as duas ficaram nessa espera e nada acontecia. Há de se compreender o luto involuntário que lhes ia na alma. Mas as duas não desesperaram da sorte. Mantiveram a agoniada esperança que o Nelson retornaria à casa, são e salvo. Porém o inesperado queria pregar-lhes mais uma peça.

Enquanto Tetê permanecia tensa e quase sem respirar, atenta ao momento tão esperado da chamada do seu celular, que não acontecia, dona Bina levantou-se da cadeira para tomar mais um copo de água. Ela acreditava que a ingestão do líquido tinha o poder de equilibrar o sistema nervoso. Ao voltar do seu breve passeio até o balde, trazia um copo também para a filha. Quando já estendia o braço para alcançá-lo a ela, as duas tiveram a nítida impressão que estourara uma bomba dentro de casa, tal o impacto do tilintar estardalhante do telefone. A mulher levou tamanho susto que, saltando-lhe da mão, o copo espalhou cacos por todo o recinto. Quando a moça finalmente tomou o equilíbrio emocional, estendeu a mão para agarrar rapidamente o aparelho, que colocou junto ao ouvido para obter, finalmente, notícias do irmão.

Do outro lado da linha estava a voz do Gilson que, para não perder ele próprio a capacidade de pronunciar as palavras por erupção do senso emocional que lhe comprimia a alma e, para não tatuar a irmã com maiores tristezas ainda além das que já ela e a mãe deveriam estar sentindo, deu o mais mecanicamente que pode, a notícia:

– É o Gilson. Acho que encontramos pistas do Nelson.

A moça foi logo gritando:

– Fala logo, não vê que a gente está quase morta de ansiedade?

– Não precisa gritar, minha irmã.

– Não vê que eu a mãe estamos desde cedo esperando sem notícia alguma?

– Até posso compreender vocês, mas eu e o pai rodamos a manhã inteira procurando de hospital em hospital e nada de encontrar o Nelson. Agora vamos indo para o IML para ver se o morto que levaram para lá não é ele. Não acredito que seja, porque...

– Deus nos livre disso. A mãe morre se for ele – gritou a Tetê, agoniada.

– Então deixa eu concluir. De tarde voltamos a falar com a turma do resgate e tivemos a sorte de encontrar o motorista que estava de plantão na noite. Ele nos disse pouca coisa, mas o suficiente para a gente se orientar. Acho que o que foi assassinado na subida do morro não é nosso irmão, porque o motorista disse que o morto que foi levado para o IML é um senhor branco de uns 40 anos.

– Ah! Graças a Deus!

– De qualquer jeito ele sugeriu que fossemos até lá para tirar as dúvidas. Até porque podia ser que o conhecêssemos, pois nenhum dos dois trazia documentos consigo. Depois vamos ao hospital que ele nos indicou. Desligo. De tardezinha a gente se fala. Tá bom, maninha? Cuide bem da mãe.

Dizendo isso o Gilson colocou o telefone no gancho do orelhão, deixando um pouco mais sossegadas, ou, melhor dito, conformadas e esperançosas a mãe e a irmã.

* *

*

Entraram no carro que Miraldo dirigia. Seu patrão o emprestara para que pudessem locomover-se com o gasto somente do combustível e, de quebra, deslocar-se pela grande cidade, onde fosse preciso ir, com a rapidez que o engasgado trânsito lhes permitia. Assim não perderiam tempo esperando os ônibus que fossem necessários para vasculhar em todos os hospitais do Rio.

Tinham o coração na mão. Estavam chegando num dos serviços mais abomináveis e, ao mesmo tempo, mais temidos pelos seres humanos – o IML. Ainda que pela nova e preciosa informação recebida do motorista que estivera de plantão na noite anterior, era pouco provável que o Nelson estivesse numa daquelas gavetas, congelado. Ainda assim, sentiram um desconforto que lhes inspirava medo só em pensar que, se a informação não fosse correta, as coisas poderiam ser invertidas. E se o motorista, com pena do desespero visto nos olhos dos dois homens, tivesse preferido uma piedosa mentira à verdade nua e crua? Todos esses pensamentos passavam pela mente contristada do pai e do irmão do homem procurado. Ambos não saberiam como reagir numa situação que lhes fosse adversa. Teriam que estar preparados e, principalmente, ter uma fé inabalável em Deus, que não iria permitir tamanha desgraça. Principalmente o Miraldo pensava assim. Bastava que, durante toda a sua vida, fora um homem extremamente pobre e, agora, um pobre homem em busca da vida ou da morte do filho. Exatamente aquele filho que reputava por justo e fiel à vida que ele, o pai, pudera dar-lhe. Nunca se revoltara com a situação de pobreza que assolava sua família e trabalhava para ajudar a reverter essa situação. Por outro lado pensava, porém, que é nessas horas que se deve viver na prática a fé em Deus. E foi nessa fé que conseguiu a coragem necessária para enfrentar mais essa etapa ruim da sua vida. E fez mais. Vendo o filho Gilson tão abatido quanto ele, ou talvez mais, transmitiu-lhe essa coragem e essa fé de que fora tomado, dizendo-lhe da sua esperança, quase certeza, de que iriam encontrar o Nelson com vida, enfiado naquele hospital que o policial lhes indicara; que, indo ao IML só iriam cumprir, talvez, uma boa ação, com a qual ajudariam uma outra família, que poderia enterrar seu esposo ou pai, que eles, com certeza, iriam reconhecer, uma vez que era morador do mesmo bairro, segundo foram informados. E ambos, mais calmos, foram ao encontro do cumprimento dessa tarefa.

O funcionário levou-os para a galeria das gavetas em que o suposto Nelson estava. Após perguntar, com muito profissionalismo, se estavam calmos e preparados para reconhecer a pessoa que fora trazida àquele instituto, abriu a gaveta indicada no papel que trazia na mão e, após retirar a cobertura, mostrou o corpo para os visitantes. Meio a medo, aproximaram-se. Gilson, que fechara os olhos com receio de ver o que não queria ver, quando os abriu, um profundo e gostoso suspiro de alivio encheu sua alma de um prazer indizível, mau grado de constatar que o corpo do homem que devia reconhecer era de um morador do bairro, cuja casa situava-se a uma quadra de distância da sua e vivia em companhia de um irmão, também solteiro. Ali mesmo informaram ao funcionário do Instituto, que a pessoa era conhecida pelo nome de Esaú; que morava em companhia do irmão chamado Jacó e deram-lhe o endereço da casa onde ambos moravam.

Com essa espinhosa missão cumprida, ambos estavam aliviados. Sabiam, e com grande alegria, que o Nelson sobrevivera ao assalto, ou a que lhe tivesse acontecido, e que estava no hospital indicado pelos policiais. Antes de embarcarem, o Gilson procurou um orelhão e comunicou o fato às duas mulheres que haviam ficado em casa.

Na recepção do hospital travou-se outra batalha: a de descobrir em que enfermaria estava o moço, já que fora entregue àquela casa de saúde sem os documentos, levados pelos assaltantes. Depois de muitas explicações dadas à recepcionista, foram encaminhados, finalmente, para uma ala onde estariam os indigentes. Ali chegados, viram que o número de pessoas que deram entrada nas últimas 24 horas sem documentos era enorme. Com paciência e o máximo respeito e silêncio, recomendados pelos funcionários que cuidavam daquele setor, foram de fileira em fileira até que, com vontade de chorar de felicidade, ambos encontraram o rapaz. Ressonava levemente, mas respirava com facilidade, sem a ajuda de aparelhos. O rosto estava tranquilo; os olhos mantinha-os fechados. Dormia um sono profundo e reparador. Mesmo a custo de algum esforço, não o acordaram, pois sua vontade era de jogar-se sobre ele, abraçá-lo, beijá-lo; ouvir sua voz. Voltaram à recepção para falar com alguém que lhes desse orientações quanto ao estado de saúde do paciente. Outros longos minutos de espera, que lhes pareceram semanas. Finalmente chegou sua vez. Falaram com a moça, informando-a de terem encontrado quem procuravam. Queriam falar com o médico de plantão, mas, com o movimento que havia, chegando a todo instante novos feridos e doentes ao Pronto Socorro, sua nova espera virou uma grande bola de neve. Procuraram assento num banco encostado na parede na sala de espera. Seus olhos iam e vinham da porta do corredor que conduzia ao interior do hospital para o balcão da recepcionista. Nenhuma oportunidade de conversar com alguém que lhes pudesse dar as informações desejadas poderia ser desprezada. Já estava quase noite e sentiam-se famintos e cansados. Para chegarem àquele estágio, agora já sem a incerteza de encontrarem vivo o Nelson, houve necessidade de uma verdadeira maratona percorrendo as ruas da cidade. Haviam procurado em, no mínimo, oito hospitais e, em cada um deles, percorreram as alas destinadas aos indigentes, já que pelo nome, não o encontravam. Desde aquela manhã, em suas idas e vindas a hospitais e outros órgãos de saúde que lhes pudessem dar alguma luz sobre o desaparecimento, pelo menos para eles, ainda inexplicável, as energias gastas foram comparáveis a uma semana de trabalho na construção civil.

Já fazia seguramente uma longa hora que esperavam esse alguém. Quando seus nervos estavam a ponto de explodir, com os pulmões a gritar impropérios silenciosos e de deixar-se levar ao sabor da revolta que lhes ia na alma, abriu-se a porta de comunicação que ligava o restante do hospital com a sala de espera onde estavam aguardando. Um homem vestido de branco e com um estetoscópio dependurado no pescoço, apareceu no limiar. Devia ser o médico com alguma informação.

– Doutor – aproximaram-se os afobados homens, daquele que parecia ser o informante, falando ao mesmo tempo – achamos na enfermaria o rapaz que procuramos até no IML.

– Calma, senhores. Se o acharam vivo, então o pior já passou! Está na enfermaria?

– Sim – disse o Miraldo, já aparentando calma – Não pudemos falar com ele porque está dormindo.

– Queiram acompanhar-me até lá.

E os dois seguiram o médico até o leito do Nelson.

– O meu filho é aquele que está na última cama do canto.

Foram até lá e o médico, muito simpático, informou que os que vêm nessas condições, são internados sem a devida identificação.

– O que o senhor quer dizer com “nessas condições”?

– Quero dizer os que o resgate traz à noite com ferimentos não muito graves.

– Como está o estado dele?

– Além de alguns vergões nas costas, que parecem feitos com chicote ou vara e o rosto todo machucado, nenhum mal maior, aparente, ele sofreu. Foi uma surra e tanto! Ah! Ele está dormindo para se recuperar. É comum a gente fazer eles dormir quando não têm necessidade de radiografia ou coisas assim.

– Graças a Deus! Ele já pode receber alta? – perguntou o Gilson.

– O rapaz vai dormir por mais algumas horas e, quando acordar, vou dar alta para ele. Agora vão falar com a recepcionista e ela vai encaminhar vocês para fazer a ficha de internamento, porque ele não tinha documentos consigo e está internado como indigente. Entreguem este papel – e deu ao pai a prescrição médica, com a alta já autorizada, para levar.

Por sorte sua, desta vez foram prontamente atendidos. O Gilson aproveitou o tempo de espera até que o irmão acordasse para ligar à irmã e sossegar as duas mulheres, que ficaram aflitas em casa, dando conta da boa nova. As duas horas seguintes passaram muito ligeiras. Quando se deram conta, foram chamados para a enfermaria. A alegria foi indescritível. Abraços, beijos, choros (desta vez de felicidade) e carinhos.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 29/10/2009
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T1893399
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