A PONTE DO PRECIPÍCIO – romance – parte XIV
Gilson chegou em casa mais tarde que de costume. Tentou disfarçar, e disfarçou bem, a sua vontade maluca de contar para a irmã – em quem podia confiar sem reservas – sua primeira aventura pelo mundo maluco das drogas. Nada disse para ela, porém, nem da reunião de que participara naquele sábado, temendo o sermão, que, por inusitado em coisas corriqueiras, neste caso, deveria ser longo e forte. Não que ele a considerasse antiquada pelo seu modo de ser. Mas sabia que ela amava os irmãos e esse amor fraterno lhe dava o direito de arrogar-se o dever de protetora, mesmo sendo ela a mais nova. Ela sempre fora assim, talvez tivesse herdado da mãe esse protecionismo. Às vezes pensava que ela exagerava na dose, preocupando-se pelo fato de alguém ficar fora de casa além do horário normal ou se um da família ficasse doente. Mas, por outro lado, achava tão gostoso ter quem se preocupasse realmente com o bem estar dele. Era gratificante saber que podia contar com esse alguém a toda hora e para todas as dificuldades que necessitassem de opinião externa para serem resolvidas. Isso era muito legal! Mas, neste caso, achava que iria procurar sermão desnecessário. Foi somente uma aventura, pensava ele, uma curiosidade, pois nunca tivera ocasião de experimentar como era sentir-se, fumando esse tipo de droga. Já havia dito alguém que, na escola da vida, deve-se conhecer tudo para ter argumentos para opinar. Escorou-se nessa versão da sabedoria universal para justificar sua atitude para si mesmo. Entendia sua atitude normal, mesmo porque nada sentira; passadas algumas horas nenhuma reação adversa no seu organismo fazia-lhe lembrar o fato, depois de passada a euforia do momento. Diziam que essa droga é a porta de entrada para viciar-se em drogas mais pesadas. Mas, pelo visto e pelo sentido, ele estava imune ao vício. Poderia, em outras ocasiões, repetir a dose que certamente não lhe faria mal.
Com esses pensamentos tranquilizantes, adormeceu placidamente. Acordou com a bulha na casa, promovida pelo grupo familiar. Mal pôs a cabeça fora do quarto, já notou que havia alguma coisa anormal. As caminhadas nervosas da mãe como a procurar alguma coisa fora do lugar; as conversas vindas da cozinha. Dirigiu-se ao banheiro, tomou sua ducha, escovou os dentes, vestiu a roupa e foi reunir-se com a família. Notou a presença de todos, menos do Nelson. Sentou-se à mesa junto com os demais para tomar café. Todos ficaram em silêncio. Mastigavam seu pão de cabeça baixa. Ele também nada falou. A cautela dizia-lhe que algo grave e inusitado acontecera. Será que eles ficaram sabendo da sua viagem pelo fumo, pensou consigo? Como? E por quem? Não, não podia ser! Os do seu grupo garantiram que nada daquilo que era falado ou realizado naquele recinto transpiraria dali. Era uma das regras que orientava o grupo. Assim não seria possível ser verdadeira essa hipótese. Mas o que seria então? Pelo visto ninguém estava doente.
Quando o pai terminou sua refeição matutina levantou a cabeça e o encarou com uma ruga a mais na testa. Gilson gelou dos pés à cabeça. Pela expressão do pai havia alguma coisa grave no ar. Depois de alguns momentos, que para ele pareciam intermináveis, ouviu-se a voz grave do Miraldo:
– Viu o seu irmão ontem de noite?
– Não. Não encontrei com ele ontem. Por quê?
– Ele não veio para casa. A gente está preocupado por demais porque ele nunca ficou fora sem comunicar. Tem alguma ideia do que possa ter acontecido?
– Para mim ele nada disse. Mas nada de grave deve ter acontecido ao Nelson. Ele é bastante responsável para fazer uma bobagem qualquer. Talvez alguma namorada? Quem sabe, ficou dormindo na casa dela e daqui a pouco vai aparecer.
– Que eu saiba o Nelson não tem namorada fixa – falou a Tetê. E mesmo que tivesse, ele avisaria.
– Ontem de manhã ele foi trabalhar como sempre. Estava até alegre e conversador, mais do que de costume – ponderou dona Bina, quase apavorada.
– O que o senhor acha que devemos fazer para sossegar todo mundo? – perguntou a Tetê ao pai.
– Eu também não sei o que a gente deveria fazer. Vamos esperar um pouco, talvez ele apareça.
Quando pai e filho se dirigiram ao pátio da casa, o rapaz disse pensativo:
– Lembrei de uma coisa, pai. Trata-se do costume que ele tem de passar todos os dias no bar do seu Mauro. Talvez ele saiba de alguma coisa que nós não sabemos. O senhor vai trabalhar hoje? – perguntou o jovem.
– Não sei se devo ir trabalhar ou esclarecer o caso do Nelson primeiro. Você falou do bar do seu Mauro. Sabe onde é?
– Sim. Estive uma ou outra vez lá com o mano Nelson. Se o senhor quiser, posso ir junto lá.
– Já são dez horas. Se ele tivesse que vir, já estaria aqui. Vamos ao tal bar ver se o homem sabe de alguma coisa. Avise sua mãe.
Gilson tornou a entrar em casa avisar que ele e o pai iriam procurar informações. Seguiram a pé, descendo o morro, rumo ao bar. Não havia muita gente. Os poucos que, ávidos, tomavam alguns martelos àquela hora da manhã, eram bebedores contumazes que vieram buscar o remédio para a tremedeira. Quando o dono do bar se dispôs a saber o que eles queriam, Miraldo deu-se a conhecer, dizendo que era pai do Nelson Tabajara, e perguntou:
– O senhor viu ontem meu filho?
Mauro pensou um pouco e logo disse:
– Ah, sim. O Nelson passou por aqui no horário de sempre. Conversamos um pouco e depois ele disse que iria para casa.
– Como ele estava? – perguntou o Gilson.
– Como? Acho que não entendi! Ah! sim. Você quer saber se ele estava sóbrio. O Gilson nunca bebe além da conta. Ou melhor, só toma uma latinha de cerveja para ter com que justificar nossas conversas.
– Mas ele nada disse se iria passar antes em algum outro lugar?
– Não. Nada me disse. Por quê? Aconteceu alguma coisa de ruim para meu amigo?
O pai ficou lívido. Parecia que adivinhava alguma desgraça. Se ele esteve no bar e não veio para casa, como sempre fazia, é que alguma coisa o desviou do seu caminho, ficou matutando o pobre homem. Tentando recuperar sua calma habitual pediu ao dono um copo de água. Tomou uns golinhos e depois, ainda suando frio, ponderou, como que falando consigo mesmo:
– Se ele não apareceu até agora é porque lhe aconteceu alguma coisa grave – e dirigindo-se ao Mauro – por favor, poderia me dizer se ele estava só quando passou aqui ou tinha alguém mais com ele?
– Ele veio sozinho. Mas aqui ele conversou com um outro freguês. O que eles falaram, não sei, mas parece que o Jorge não gostou muito do que ouviu dele. Vi que ele saiu apressado e com cara de poucos amigos. Seu filho ficou mais um pouco e depois foi embora.
– Quem é esse tal Jorge? Onde mora?
– Onde mora não sei, mas ele é um cara que sempre vem aqui, senta naquela mesa aí do canto e toma uma ou duas pingas e vai embora. Eles já conversaram diversas vezes, em outras ocasiões. Não parece boa coisa.
– Ficamos no mesmo.
– Eu não duvido que o Jorge seja capaz de fazer uma coisa ruim para outra pessoa. Ele não me parece desses que saiba perder.
– Fazer o que, por exemplo? ...de matar?
– Matar? Acho que não. Não havia nada de tão grave entre eles. Aliás, foi a primeira vez que eles discutiram.
– Tive uma idéia, pai – intrometeu-se o Gilson na conversa. A gente podia ligar para o resgate e ver se eles socorreram alguém, aqui no Bairro, nas últimas 24 horas.
– Boa idéia, filho! Se positivo, ficamos sabendo onde ele está, não é mesmo?
Animado com essa perspectiva, o Miraldo já ia saindo quando o Mauro ofereceu seu telefone para que ligassem dali mesmo. Ato contínuo discou para o resgate e, quando atenderam, passou o telefone para o pai do rapaz.
– Alô. Sabe me dizer se foi feito algum socorro no Bairro Tabajara na noite passada?
– Quem fala, por favor?
– É Miraldo Tabajara, pai de um rapaz que sumiu ontem à noite.
– Deixa eu ver aqui nos registros. Alô, aqui está. Foram feitos dois socorros. Um homicídio e outro homem que estava machucado. O morto foi entregue no IML e o ferido foi levado para a emergência do Hospital.
– Posso passar aí para obter maiores informações?
– Positivo. Pode vir.
Miraldo agradeceu e repôs o telefone no gancho. Seguiram-se informações para onde deveriam dirigir-se, e os dois homens saíram.