A PONTE DO PRECIPÍCIO - romance - parte XI
O clima transcorria cordial e sinceramente amistoso na sala do restaurante destinada à reunião dos amigos da Miriam, transferida para sexta-feira porque alguns deles tinham compromissos assumidos na quarta.. Gilson foi apresentado ao grupo, que festejou a presença de mais um adepto da “causa”. Todos queriam saber quem era e donde vinha. Sua curiosidade era tanta – e, também, a desconfiança – que houve quem lhe perguntou se não era um homem da polícia infiltrado para descobrir se ali não se planejava a destinação da droga trazida para o Rio, vinda dos centros produtores.
– Meus amigos, não precisam ter medo. Não se trata de nada disso. O Gilson é meu namorado e fui eu quem o convidou para fazer parte do nosso grupo. Assim a gente fica mais tempo juntos. Ele não trabalha em escritórios, como nós, mas é boa gente, mesmo que seu serviço seja braçal.
– Se você diz, é porque é verdade. Afinal a gente se conhece há tanto tempo!
– Bem, neste caso só me resta pedir desculpas ao nosso novo amigo Gilson – disse, estendendo a mão para apertar a do rapaz, aquele que levantara a suspeita – Aceita as desculpas?
– Na realidade nada tenho a desculpar. Afinal, nenhum de vocês me conhece e é até natural e positivo que tenham desconfianças.
– Que bom que você não é de briga! Vai se dar muito bem em nosso meio, disse a Miriam, enrodilhando os bracinhos morenos em seu pescoço.
Gilson pediu desculpas por não ter dinheiro naquele dia. Somente ia receber no começo do mês.
– Fica sossegado, querido. Até lá você é meu convidado. Tenho um saldo positivo ainda e a gente se vira do jeito que dá. Seja bem-vindo ao grupo.
A reunião transcorreu num clima de verdadeiros amigos. Comeram, beberam moderadamente, abordaram diversos assuntos, contaram anedotas e falaram abobrinhas durante algumas horas, até que chegou a hora de cada um retirar-se para sua casa. Uns antes, outros depois, todos se retiraram a seu tempo. Mas antes de começarem as retiradas ainda combinaram transferir suas reuniões para os sábados à noite, tendo em vista o novo integrante e suas funções, diferentes das suas. O rapaz teve oportunidade de conhecer, ainda, o seu Manoel que serviu pessoalmente a mesa. Sua simpatia e seu carisma de bom comerciante e garçom atento ao menor desejo do grupo de amigos, rendeu-lhe de Gilson uma empatia à primeira vista.
Enquanto tomava a ducha que o deixou leve como uma pluma, o levou a episódios do encontro com os novos amigos. Confessou, no silêncio da sua mente, que sentiu certo receio antes de conhecê-los. Ia encontrar-se com gente que nunca vira em sua vida e muito menos conhecia seu caráter e seus costumes. Mas tinha que dar um voto de crédito à namorada, que tanto falara da boa companhia e da paz espiritual que lhe proporcionavam esses encontros. E não se arrependeu. Foi simplesmente uma noite maravilhosa. Seu quadro de amigos, que costumeiramente era o formado pelos seus colegas de trabalho, agora se ampliara. Sempre tinha vontade de conhecer gente com mais estudo, onde, sem dúvida, poderia aprender algo mais que o trivial. Por isso, foi um salto na sua autoestima, o conhecê-los. Por outro lado, ainda assim mantinha o receio. Quando essa nova amizade se consolidasse e ele aderisse plenamente e de livre vontade aos costumes usuais dos seus novos amigos, teria que acompanhá-los em tudo. Acompanhar-lhes as extravagâncias, ainda que viciosas e fora dos padrões da sua pacata maneira de viver, custar-lhe-ia, talvez, a mexida em algum dogma que se impôs como filosofia, como usar, em excesso, a bebida de álcool, drogas e outras coisas, tão a gosto dos jovens. Quase todos eles fumavam. Mas isso ele poderia contornar. Nunca fumara, nem mesmo cigarros convencionais até agora. Não era agora, com mais de vinte anos, que iria viciar-se.
Deitou e tentou dormir para acordar muito cedo no dia seguinte. Mas o sono não vinha. Só depois de virar-se e desvirar-se por uma hora, quando já estava impaciente com a insônia, que não era o seu normal, lembrou o que a mãe lhe dissera quando ainda era moleque: “... quando a gente não consegue dormir, é porque esqueceu de fazer a oração da noite”. Concentrou-se e rezou um Pai Nosso... que não chegou a rezar todo. No outro dia cedo, quando se levantou, não lembrou que tinha terminado a oração. O sono fora fulminante.
Os dias foram passando. Era sábado e o sábado foi esperado com ansiedade. Era dia de ir ao restaurante do seu Manoel, encontrar-se com os novos companheiros. Era dia de muito sol e calor e por isso o casal de namorados estava na praia. O mar estava calmo demais para o surfe. A água estava boa para o banho e para brincar com as ondinhas que quebravam na areia. Gilson e Miriam divertiram-se até perto da noite. Quando voltaram para a areia o rapaz olhou para o relógio. Quase gritou:
– Miriam, são quase cinco horas. Temos que ir para casa, se quisermos, às oito, estar lá no bar do seu Manoel.
– A água estava tão gostosa que não vi o tempo passar.
Juntaram suas coisas e saíram quase correndo. Despediram-se com um beijinho rápido e cada um tomou o rumo da sua casa.
Às oito em ponto todos estavam presentes ao redor de mesinhas, ajuntadas e cobertas com uma grande toalha de mesa, num clima de amizade e euforia. Quem os visse, pensaria que todos, sem exceção, tinham motivos de sobra para estarem bem humorados e rindo à toa. E realmente tinham. O evento só acontecia uma vez por semana e, quando juntos, sem a responsabilidade do trabalho, podendo, inclusive, dar vazão a pequenas loucurinhas, se isso lhes aprouvesse, sentiam-se livres e desimpedidos de quaisquer formalidades. Afinal de contas, era justamente a descontração que buscavam. Essa irmandade, se pudermos assim denomina-la, fruto da ocorrência de muitos casos de estresse com raízes na rotina do trabalho, foi o meio que alguns jovens encontraram para se libertarem da mesmice repetitiva de sempre. E, sendo jovens, conheciam todos os macetes necessários para fabricarem sua própria terapia. Exagerada, por vezes, é verdade, mas que funcionava como congraçamento de ideias, de costumes e de corpos, cada qual entendendo esse espaço de conformidade como se moldara seu caráter.
E num clima que dava vivas à juventude, estavam aí reunidos perto de vinte jovens, para, num espaço temporal de quatro ou cinco horas, mandarem para bem longe as preocupações da semana. Discutia-se cultura; rolavam futilidades; e, às vezes, todos sérios e compenetrados, era lembrado este ou aquele episódio desagradável, acontecido na vida real, que chocara o Rio, o Brasil, e, quiçá, o mundo. Algumas pizzas eram devoradas, quando os molestasse a fome; outras tantas cervejas e refrigerantes serviam-lhes de líquidos hidratantes; um ou outro “baseado” consumido “em família” fazia-lhes o clima. E, ninguém sendo santo desses que ali se reuniam, havia dentre eles os que sumiam, por momentos, aos olhos despreocupados dos presentes, porém, quando voltavam, lia-se em suas atitudes a predileção pelo farejo do pó. Mas nada disso era tomado rigorosamente como exagero. Não se tratava de um vício consumado e imperativo. Simplesmente, de vez em quando, acontecia. Era tido por todos como normal e ninguém se incomodava com isso, pois que não era rotineiro. Em suma, eles pintavam em vermelho vivo a morte, para apreenderem da vida seus tons de azul celeste e verde mar, amenos.
Para Gilson, que pela terceira vez participava, tudo parecia novo, e de um novo gostoso. Já se sentia integrado na sociedade. Por tantos anos discriminado, por ser um caiçara matuto, vindo do interior, agora era um deles e agindo como eles. Isso trazia ao rapaz novo alento para a vida. Mas isso só na aparência lhe fez a cabeça, porque continuava sendo pobre como antes. O que o incomodava, na realidade, era essa pobreza. Às vezes pensava na situação financeira da família. Não era mais a pobreza absoluta deprimente de quando era menino. Cada membro da família tinha seu emprego de salário mínimo. Juntando esforços, mantinham-se até com certa dignidade. Mas nada, absolutamente nada, podia ser gasto em coisas desnecessárias ao uso do aqui e agora. A receita de cada um estava restrita ao somatório das despesas do mês. E, aquele que não policiasse severamente seus gastos, ficaria sujeito à dependência dos demais. E isso, mesmo porque eram uma família pobre, criava grande constrangimento. Mas, por isso mesmo, ele levava muito bem calculados os seus gastos pessoais para não extrapolar os limites do seu caixa, pois tinha um grande defeito – era orgulhoso. Por outro lado, difícil era para o Gilson adaptar-se a essa sua condição permanente de vida. A falta de dinheiro inibia-o de dar vazão à sua ambição de querer tudo o de que outros rapazes da sua idade desfrutavam, mesmo porque, pensava que, se existia e lei do progresso, o mesmo progresso deveria ser para todos. Mas o seu, certamente, ainda estava de férias.
Naquele sábado Gilson sentia-se já integrado ao grupo, de corpo e alma. Participou, ativamente, ao lado da namorada, dos folguedos e conversas. Quando quase era hora de todos se retirarem para suas casas, ele comentou com Mirian:
– Você não está sentindo um cheirinho gostoso, adocicado? O que será isso?
– Nunca se familiarizou com o cheiro dessa fumaça? Espera chegar a nossa vez. É um cigarro de maconha que, para despedida da rapaziada, vai passar de mão em mão para cada um tragar duas ou três vezes e passar adiante. É o ritual da despedida.
– É disso que você me falou quando estávamos na praia?
– Sim. Quase sempre a gente pratica esse ritual. Funciona como uma promessa de retornar no sábado seguinte. Já se tornou costume. Faz parte integrante do estilo na nossa irmandade.
– Gostei!
Em alguns minutos o transportador de euforias chegou até eles. Primeiro foi a Mirian a receber o seu quinhão. Gilson era o último da turma, sentado próximo ao fim da mesa, onde, do outro lado, estava o cara que acendeu o baseado e foi, por conseguinte, o primeiro a se servir. Quando a jovem entregou o cigarro para o namorado, do qual todos consumiram a sua parte, restava dele um pouco mais que uma xepa. Todos começaram a bater palmas rítmicas e, alegres, começaram a incentivá-lo: – “termina, termina, termina”. Em atitude de quem aceita a brincadeira, Gilson refestelou-se na cadeira e, com estilo, começou a fumar. Transcorridos vinte segundos depois da última tragada, a paz e a alegria de viver sentidas pelo rapaz, transfiguraram-lhe o semblante. Seu estado de espírito, já moldado pelo feitiço de estar ali, ainda mais leve e livre ficou ao impacto com a erva, que o deixou mais falante, mais animoso e mais... amante.