A PONTE DO PRECIPÍCIO - romance - partre X
Nelson esqueceu o episódio do sábado. Pensava que quem não quer se molhar não vá para a chuva ou se proteja dela. Nem deu mais bola para o acontecido. A providência que tomou para que nunca mais lhe acontecesse tal aperto, foi a resolução de não aceitar mais convite de quem não conhecia os costumes. Trabalhou normalmente, mas evitou chegar, nas primeiras semanas após o acontecido, ao costumeiro bar para tomar sua cervejinha. Durante vários dias passou direto, até que pensou todos terem esquecido aquilo. A vida retomou seu rumo normal. Sua convivência com os colegas de trabalho e em família, cada vez mais aumentava sua alegria de viver. Enquanto seu irmão Gilson era como que movido a turbina e, por isso, gostava de festas e de praia, ele, pelo contrário, era adepto do sossego e de boas conversas em suas horas de folga. Quando estava em sua casa e não tivesse a companhia dos irmãos, pegava uma cadeira e sentava-se perto da mãe para ajudá-la a fazer alguma coisa no serviço doméstico. Enquanto isso, conversando, viravam do avesso a vida pregressa, de quando moravam na colônia. A mãe lembrava coisas da infância deles; as travessuras dos três, correndo pelos matos armando arapucas, e faziam planos para o futuro.
Tudo parecia normal. Não vira mais o Jorge desde aquela fatídica festa. Como não chegara mais ao bar onde o conhecera, tinha para si que, certamente, morava nas redondezas e que seu itinerário era outro que o dele. Era bom isso, mesmo porque evitaria de encontrar-se com ele. Mas isso não o preocupava. Sabia que tudo o que tinha que acontecer, aconteceria, independente da sua coragem ou do seu medo. Ouvira sempre dizer que nada, absolutamente nada, acontecia por acaso; que cada tropeço ensinava uma lição de vida. O que tinha que cuidar, dali para frente, era de não mais cair nas rasteiras que lhe armavam. Para o futuro estaria mais prevenido e ficaria mais atento, não aceitando qualquer convite sem antes saber os costumes praticados nos locais para onde o convidavam. Afinal de contas, ele ainda se considerava um rapaz ingênuo, apesar dos seus vinte e três anos, dos quais, quase dez perambulando pelas ruas desta grande cidade.
Passados vários dias, de passagem frente ao bar do seu amigo, no outro lado da rua viu a figura do Jorge. Mesmo estando a certa distância, na calçada oposta, a passos largos morro abaixo, Nelson poderia jurar que se tratava do mesmo homem que o levara à festa uns sábados atrás. Bem, certamente não o tinha visto. Assaltou-o a ideia de que ele não queria ser reconhecido. Mas ele tinha a consciência tranquila de que nada lhe fizera para tanto. Certamente não olhara para o outro lado da rua porque estava com pressa. Entrou no estabelecimento, cumprimentou o dono do bar e pediu uma cerveja. Ficaram conversando enquanto o jovem tomava sua latinha.
– Quanto tempo! Pensei até que estivesse adoentado.
– Não. Estou bem de saúde. Aconteceram-me certas coisas desagradáveis e preferi ficar alguns dias afastado dos meus costumes rotineiros.
– Que coisas, posso saber?
– Não tem porque não! Até hoje nada falei com ninguém sobre o episódio. Mas creio que não importa que você saiba. É mais uma dessas histórias que os donos de bar ouvem como se fosse num confessionário. Pois não vê que duas semanas atrás fui convidado para uma festa. Nada mau, pensei. Até que enfim alguém me convida! Acontece que, no auge da festa, tendo o Jorge – seu freguês – como companheiro de mesa, propôs-me irmos cumprimentar seus amigos da outra mesa. E, conversa vem, conversa vai, aquele que me foi apresentado como sendo o patrão do Jorge, me ofereceu um dos seus cigarros. Era um cigarro de palha igual aos palheiros que o pai fumava, quando morávamos no interior. Fumei e, sem mais nem menos, fiquei tão alegrão, que nem me lembrei que devia estar em casa mais cedo naquela noite. Resultado: chegue em casa às duas da madrugada.
– Se bem tenho conhecimento dessas coisas pela minha vivência neste bar, você fumou um “baseado”.
– Um, o quê?
– Um cigarro feito de maconha.
– Cruz credo, será?
– Só pode ser! Não te deu fome, muita fome?
– Sim, muita fome e sede.
– Então é isso mesmo! São sintomas típicos da maconha: fome, sede e muita euforia.
– Será que eles lidam com isso?
– Eu já estava desconfiado há tempo que esse cara não é flor que se cheire. Nunca falei nada porque, enquanto o Jorge está aqui dentro, sempre se comportou bem. E, para mim, meus fregueses são bons enquanto não provam o contrário.
– Agora compreendo! Então é isso! Eles estavam começando a me preparar para fazer de mim um novo freguês deles. Safados!
– Parabéns, rapaz! Nem todos têm essa consciência e as antenas ligadas como você.
– A gente já conversou mais do que devia, talvez, mas valeu a pena. Agora vou recolher-me ao meu lar, doce lar – honesto, ainda que pobre. Obrigado pelas valiosas dicas que me deu.
Dizendo isso, Nelson despediu-se e voltou para casa.
* *
*
Tetê estava sublimada. Seu estado de espírito colhia os frutos da boa convivência em família e dos benéficos tratos e ensinamentos que recebia no seu trabalho. Quando ia para a cama, à noite, agradecia a Deus a boa família que a acolhera para dar-lhe trabalho, e pedia sua bênção para eles. Era maravilhoso ser tratada com respeito e carinho por todos da casa, onde ela era somente uma empregada doméstica. Desde o início que para ali fora para trabalhar, nunca sentira tratamento diferente daquele que o casal de patrões dispensava aos próprios filhos, e estes, a tratavam como se irmã fosse. Na realidade, sentia-se a caçulinha da casa; a filha e a irmã que eles não tiveram. Isso a fazia entender a diferença que existia, no trato para com todas as demais pessoas, numa família em que todos estavam imbuídos do sentimento espírita. Por tradição e para os rituais litúrgicos, a família professava a religião católica. No entanto sua filosofia de vida seguia os preceitos do espiritismo. Por outra – eram verdadeiros cristãos – como o são, também, muitos dos que seguem, conscientes, a sua religião, seja ela qual for, sem, ainda, ter conhecimento da doutrina científica e filosófica espírita.
A jovem limitava-se a fazer bem feitas as tarefas que lhe cabiam, a estudar e, nas horas vagas, quando as tinha, lia. Lia muito, porque sentia que, através da leitura, seu crescimento cultural expandia-se a cada novo título que devorava. E isso, no seu entender, só poderia trazer-lhe benefícios no futuro, embora hoje, fosse apenas uma obscura empregada doméstica entre a multidão. Conformava-se com seu salário, e até tinha orgulho em servir, porquanto, executando as funções de doméstica, ganhava o suficiente para pagar seu material escolar e seus pequenos caprichos e vaidades. Ainda sobrava para ajudar seus pais a manter a casa. Nunca desejara mais do que o necessário. Era mais fácil a vida assim, pensava ela. Não queria estar na pele de uma ricaça fútil, sem ter o que fazer. Deduzia que a inatividade levava a pessoa a viciar-se em picuinhas que, por fim, lhe eram motivo de irritação e até a deixavam depressiva. Assim ela vivia feliz e despreocupada com o que viria mais tarde. Queria viver o “hoje”, senão intensamente, mas de acordo com a sua consciência. A razão lhe dizia estar no rumo certo. Assim, também, agia quando estava no meio em que vivia, as pessoas extra-familiares do seu relacionamento, embora sempre com a guarda fechada para defender-se contra eventuais golpes que a sua trajetória por esse meio lhe desferisse. Entendia que a vida não é sempre um mar de rosas. Igualmente sabia que nem todos os de suas relações, que a rodeavam e se diziam amigos, o eram incondicionais. Era alegre, expansiva, de boa conversa e inteligente. Mas para curtir momentos de lazer, pouco, ou quase nenhum tempo lhe sobrava. Havia a necessidade de estudar para alcançar o seu objetivo – a Universidade. E aproveitava suas folgas para adiantar seus conhecimentos e, para isso, o gosto que tinha pela literatura a mantinha mais e mais informada.
Quando estava no seu trabalho, muitas vezes, sua patroa puxava uma cadeira e sentava-se perto dela para conversar. Tetê gostava mito quando ela fazia isso, pois, cada vez aprendia coisas novas sobre o espiritismo. A mulher do patrão era uma pessoa muito culta e sabia (ou sentia) que a jovem doméstica não queria ficar para sempre nesse serviço; que ela estava subindo a escada do progresso intelectual, com dignidade e moral. E tudo o que ela passasse para ela dos seus conhecimentos sobre a filosofia que professava, ser-lhe-ia muito útil em toda sua vida terrena e, mais ainda, na vida futura, dizia a boa senhora. A moça começou a ficar desejosa de aprender mais sobre o espiritismo, que sempre ouvira falar ser coisa do demônio.
– Dona Margarida, onde a senhora aprendeu tudo isso, perguntou Tetê, certo dia.
– No começo era tudo novidade, coisa muito louca mesmo, que assustava. E quanto mais eu me inteirava do assunto, mais a minha razão admitia tudo por verdadeiro. O meu marido já era espírita quando nós casamos. Ele sempre frequentava a Casa Espírita e, depois de casados, eu ia, e ainda vou, junto com ele, já há muitos anos. Foi assistindo às reuniões doutrinárias dos palestrantes que aprendi muito do que sei. Mas, principalmente, para esclarecer-me sobre pontos polêmicos da doutrina, eu aprendi lendo as obras de Allan Kardek.
– E como a gente faz para ir lá?
– Isso é fácil. Tem uma aqui pertinho de casa. Se você quiser, pode vir nas sextas-feiras de noite aqui em casa e vai junto conosco.
– E o colégio, como fica?
– Ah! Você tem aula nos dias de semana! Mas tem palestra no sábado também. Se você quer, vem pra cá no sábado antes da quinze horas e eu vou com você. Pode ser?
– Assim fica mais fácil para mim. Tenho grande vontade de aprender... e também curiosidade.
– Essa curiosidade é comum nos que iniciam a se interessar. É muito bom! Não deixa de ser um dos motivos para a gente se interessar. Um início.
– E o que devo fazer ou levar para esse... não sei como definir, “encontro com os espíritos”?
– Olha só! – riu dona Margarida. Sem querer, você deu uma nova versão para as palestras na Casa Espírita. Não deixa de ser um encontro com os espíritos.
– A gente vê eles?
– Não!!! – disse ela séria. As pessoas comuns não vêem os espíritos, porque eles são imateriais. Mais tarde você vai aprender que algumas pessoas, que são videntes sensitivas, tem o poder de enxergá-los. Tem muita coisa que você agora ainda não entende. Espere e estude. Depois de algum tempo sua mente vai se abrir e você vai achar tudo tão natural, como hoje acha que existem céu e inferno.
De noite, quando a jovem já estava recolhida ao leito, veio-lhe à mente aquela conversa que tivera, à tarde, com sua patroa. Porque a ideia era nova, parecia-lhe tudo tão amedrontável que se sentia tremelica, só de pensar em espíritos e tudo o que envolve o ser humano depois da morte do corpo. Acendeu a luz do seu quarto para não ser surpreendida por algum espírito brincalhão. Se eles existiam e tinham vida como a gente, nada impedia que estivessem perto dela e, até, a quisessem assustar – pensava ela. Mas, como era estudiosa do assunto, a idéia como um todo lhe agradava. Era uma matéria nova que não ensinavam nas escolas. E mais, se o espiritismo era, como lhe falara dona Margarida certo dia, a salvação do Planeta Terra; que iria expurgar a maldade e o orgulho do planeta, nada mais justo que fizesse parte do currículo escolar. Tinha para si que, neste caso, todos os alunos já estariam informados sobre essa doutrina e, por sua vez, poderiam levar às suas casas a Boa Nova. Como essa filosofia científica não é religião, poderia ser tranquilamente levada a todos, indistintamente do credo religioso.
Mas, por enquanto, isso só eram vagas conjeturas de uma jovem, mal saída da adolescência que, até o momento, nada sabia da política que envolve o tema na sociedade humana, principalmente no seio das religiões, porquanto cada uma presume-se dona da verdade absoluta. Dizia dona Margarida que esse privilégio só a Deus pertence. Para muitas pessoas, que se dizem cristãs, e o são na mentalidade de cada seita religiosa, havendo por parte do fiel honesta sinceridade, ainda não chegou a sua vez, mas a semente já está plantada. Ela germinará no seu tempo certo.
Tetê há algum tempo começara sua caminhada para desvendar aquilo que sua mente lhe dizia nenhum sentido fazer com o ensino religioso que lhe fora passado. Apesar de muito nova e ingênua, a razão alertava-a de que havia algo errado em torno da sua crença. Por isso, empenhava-se em encontrar algo verossímil sobre as qualidades de Deus e o destino da alma, que fosse inteligível até para os leigos. Via agora abrir-se-lhe um leque de oportunidades para sua busca; talvez, a elucidação dos pontos polêmicos sobre as doutrinas cristãs professadas. Mesmo assim, estando ainda no início da caminhada que a levaria à verdade desejada, compreendia tratar-se de uma doutrina séria e que, maldosamente, era taxada de ser “coisa do demônio”. Ela mesma já estivera presente quando se comentava que fulano está doente porque fizeram mal para ele. A coisa mais comentada em certas rodas de amigos era o tal de saravá. Ela mesma conhecia um homem que se dizia “pai de santo”, e, pai de santo era uma espécie de bruxo. Seus amigos todos sabiam que era pessoa não muito confiável. Por dinheiro era capaz de chamar seus espíritos para maltratar alguém. Enquanto não soubesse a verdade, pensava, era obrigada a acreditar em tudo o que ouvia, pois diziam que esse era o espiritismo e, por isso, “coisa do demônio”. Mas, de antemão acreditava que, fosse lenda ou realidade, nenhuma identidade poderia ter com o verdadeiro espiritismo, porquanto, a ser verdadeira, aquela era uma ciência destinada ao mal e, esta, falava da excelência dos dons de Deus, portanto, era do bem. Ela era jovem ainda e tinha muito tempo para amadurecer esse conhecimento. Continuaria lendo os livros que dona Margarida lhe fornecia e a acompanhá-la em suas idas à casa espírita para assistir às palestras doutrinárias e para pedir a Deus que lhe desse a graça de compreender o que era ensinado pelos palestrantes, para depois repassar, se possível, esses conhecimentos à família. X