A PONTE DO PRECIPÍCIO - ROMANCE - PARTE IX

CAPÍTULO TERCEIRO

Fé frustrada

Já no dia seguinte, Miraldo fez sua fezinha na lotérica frente ao ponto de táxi. Escolheu bem os números. Pensou que, sendo que toda a família seria beneficiada com o bolo que iria ganhar, nada mais apropriado que, para ir de encontro à sorte, usar o dia de nascimento de cada membro da família. Marcou, então, na cartela, o seu próprio aniversário – 05 – cinco de fevereiro; o de sua mulher – 18 – dezoito de maio; o dia do aniversário do filho mais velho, Nelson – 03 – três de abril. Neste ponto lembrou-se de que o aniversário do Gilson também era num dia 3, embora fosse do mês de julho. Ah! Mas isso era fácil de resolver. Marcaria, em vez do número 3 para o Nelson, marcaria – 34 – 3 para o dia e 4 para o mês de abril, e, para o Gilson, marcaria – 37 – também 3 para o dia e 7 para o mês de julho. A Tatiane tinha nascido num dia lindo. Mesmo não tivessem lhe dado o nome de Maria, ela nascera no dia da coroação de Nossa Senhora, dia 3l de maio. Marcando o número – 31 – viu que faltava um número para completar os seis da série. Bem, como era ele que ia começar a jogar – e à revelia da mulher e dos filhos – porque queria fazer uma grande e agradável surpresa para a família, pensou um pouco e lembro que alguém lhe dissera que seu número de sorte era o nove. Leu os números que estavam sobre a cartela e disse de si para consigo: – “esse cartão vai ser premiado”. 05, 09, 18, 31, 34 e 37, uma bela escolha! Fez mais duas apostas com os números que lhe vinham à mente na hora, cujas três cartelas jogaria até ser contemplado com o prêmio maior. Pôs a caneta de lado; esfregou as palmas das mãos uma na outra de satisfação e entregou suas apostas e o dinheiro para a moça da janelinha. Quando ela lhe entregou o troco e as apostas, desejou-lhe boa sorte. Miraldo, entre malicioso e satisfeito, sorriu ao responder que ele iria ter.

Mal podia esperar o dia do sorteio. Sem descuidar-se do seu trabalho, o homem não fazia outra coisa senão pensar na imensidade de luxo que compraria quando fosse rico. Alguns correm logo para comprar uma casa, pensou. Ele não pensava assim. Se uma vez estivesse de posse de muito dinheiro, poderia alugar o melhor e maior apartamento do Rio de Janeiro. Quando enjoasse daquele, alugaria um outro, ainda maior e mais luxuoso. Contrataria uma empresa especializada para colocar nele a mobília mais cara e mais compatível à moda em evidência no momento, e que essa empresa iria escolher. Se não tivesse aqui no Brasil, não fazia mal! Ele mandaria comprar em qualquer lugar do mundo, onde a encontrasse. Para os três filhos, para quem nunca pudera dar nada, nem sequer lhes pagar o estudo, repartiria a metade da sua fortuna. Com um considerável dinheiro, cada um poderia viver a vida que sempre sonhou. Finalmente seria o fim da miséria! Achava que ele merecia isso, depois de tantos anos na pindaíba. Aliás, desde criança ele só via pobreza em volta. Lembrou que seus avós morreram quase de fome; seus pais (e eles, os filhos, junto), quando comiam coisa boa, era aipim, abóbora, batata doce e feijão que comiam. Carne? Só quando matavam algum bicho do mato, que ali quase não tinha mais, ou uma ou outra galinha velha que não botava mais ovos. E essa penúria o acompanhou ao longo dos anos em que constituiu a sua própria família. “Chega de miséria”, disse em voz alta, e olhou em torno para ver se fora ouvido por alguém das proximidades. Mas não. Ninguém se coçou nem se acusou. Nem sequer os vira-latas de rua olharam para ele, e o desabafo morreu nele e com ele mesmo.

Em meio a esse febril conceito do dinheiro, o taxista voltou à realidade – chegara um freguês que queria ser transportado. Abriu-lhe a porta do táxi e rumou para o endereço anunciado pelo passageiro.

* *

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Como não tinha intimidade com os resultados dos sorteios da loteria, na segunda-feira, bem cedo, mal chegara ao seu ponto, atravessou a rua e foi verificar o resultado. Seu coração bateu forte quando olhou para os números escritos no papel colado na parede da lotérica. O 5 e o 9 estavam lá. Desviou os olhos, esfregou-os, foi até a porta para respirar fundo o ar da rua e acalmar-se. Voltou ao papel e, o apartamento com vistas para o mar, os filhos ricos e tudo o mais que sonhara, desabou nos quatro números seguintes, que não acertara. Era como se estivesse atravessando o deserto, sob um sol causticante e com sede de camelo. Evaporou-se a água que vira brotar à sombra, junto com o frondoso verde da árvore que a projetava, pela ação traiçoeira de uma miragem. Os primeiros momentos foram de revolta; depois veio uma tristeza infinita e com gosto de mergulho no tonel da miséria; num terceiro momento, a esperança e a conformação fizeram que Miraldo refletisse. Isso que ele estava tentando era um jogo e, no jogo, a gente está sujeito a ganhar e a perder. A esperança cochichava-lhe baixinho no ouvido que haveria outros sorteios. Enquanto atravessava a rua rumo ao seu carro, já conformado com a primeira derrota, reforçou o propósito de jogar, nem que fossem necessárias mil apostas, até que a grande fada da sorte lhe permitisse realizar seu sonho. É muito provável que o protagonista de tantas misérias somadas, nada sabia de azar ou de sorte; que as julgava pelos valores que, erroneamente, lhes são atribuídos. Nem imaginava ele que as diferenças sociais eram fruto de pagamento de erros cometidos em outras vidas; que a pobreza, bem como a abastança, faziam parte das provas a que era submetido o espírito encarnado; que significavam uma espécie de teste e, suportada com paciência a pobreza, ou usada corretamente a riqueza, revertida aos menos favorecidos em forma de trabalho remunerado, valiam pontos para a vida futura; e que, na realidade, o dinheiro ganho com o trabalho ou por obra da “sorte”, se mal aplicado, renderia mais dores de cabeça ao ser humano, quando se despedisse dessa roupagem terrena, do que a própria miséria lhe dá em vida. Mas é próprio da lei do progresso os homens almejarem sempre a melhora e o bem estar dele e da família. Por isso é válido e, até, necessário, que ele envide esforços para alcançar este objetivo.

Naquele dia parece que a “sorte” quis recompensá-lo pela derrota sofrida logo no início. No fim do seu expediente estava cansado de tantas corridas realizadas... e de contar o dinheiro conseguido com seu trabalho. Enquanto voltava para casa, pensava: Deus tranca uma porta, mas abre uma janela. E foi exatamente isso que lhe acontecera naquele dia – a grande e oportuna porta da fortuna lhe fora trancada no momento, mas, em compensação, abrira-se-lhe uma janela por onde entrara o lucro do seu trabalho. Apesar de cansado, estava feliz. Pelo menos já entrara no esquema das loterias, em cujas malhas envolvido, candidatara-se a ganhar uma fatia (gorda, de preferência), para livrar-se, de vez, da miséria de uma vida inteira. Era só esperar e ter fé, que mais dia, menos dia, iriam – ele e sua família – tornarem-se os novos ricos do seu Estado.

Os dias foram escoando pelo ralo do tempo. A quietude do anonimato em que vivia a família Tabajara assemelhava a uma concentração de formigas em seus carreiros, na populosa cidade que habitavam. Se, ao contrário do corre-corre da vida de uma grande cidade qual seja a Cidade Maravilhosa, em que só as celebridades se destacam; se suas silenciosas idas e vindas ao trabalho não eram notadas, como as de tantas outras pessoas humildes que fazem do trabalho braçal seu ganha-pão, isso não quer dizer que não sonham, ansiando por uma vida melhor. Miraldo sentia que não estava longe o dia em que diria adeus à pobreza. Alguma voz secreta o alertava disso. Mas, se antes esperava com alegria essa reviravolta do destino, agora lhe dava calafrios. O seu medo era de não saber lidar com tanto dinheiro quanto imaginava ganhar. E tinha outro perigo – o da cobiça dos malandros que infestavam a cidade. Gente que vivia do dinheiro alheio. Teria que arquitetar um plano para mosquear sua nova situação dessa gente. Fugir aos sequestros, aos assaltos e a tantas outras formas de extorquir o dinheiro dos incautos e dos ingênuos, já desde logo precisaria ser planejado. E era isso que o preocupava no momento. Não sabia como fazê-lo, mas, como queria ficar anônimo até que a grande coisa acontecesse, caberia a ele e a mais ninguém essa tarefa.

Por outro lado, pensava que não fazia sentido ele preocupar-se e à sua família com uma coisa que ainda não fazia pressão sobre seu atual modo de vida. Segundo suas observações, o comportamento dos três filhos estava de acordo com o de uma família que se podia orgulhar de impor o respeito aos demais com suas atitudes. Pelas conversas que mantinha, aqui e ali, com os rapazes, podia deduzir que eles se mantinham longe dos vícios. Ouvia os outros taxistas contarem horrores do quanto as drogas são difundidas. Segundo eles, as favelas dos morros já não pertenciam mais aos moradores. Eram os traficantes que mandavam em tudo e em todos – até na polícia. A Tetê era uma menina exemplar. Era muito benquista pelos patrões e, o que era mais notável, respeitada pelos rapazes, todos homens feitos, filhos do casal onde ela trabalhava como doméstica. Era estudiosa e, até, pensava em fazer uma faculdade no ano seguinte, quando tivesse terminado o estudo fundamental. Não precisava, pois, se preocupar com ela. Resolveu, então, seguir sua vidinha de sempre até que a “sorte” lhe viesse de encontro. E Miraldo tinha tanta fé que isso aconteceria, que via como favas contadas o fim dos dias de miséria da sua família.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 23/10/2009
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T1882242
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