A PONTE DO PRECIPÍCIO - ROMANCE - PARTE VIII

Naquela noite o Miraldo foi deitar-se cedo, como, aliás, acontecia todas as noites depois que ele começou a trabalhar definitivamente com o táxi do seu amigo. O novo emprego, ainda que não lhe rendesse muito mais em termos financeiros, proporcionava-lhe o descanso que nunca tivera na vida. Assim mesmo, o pouco que recebia a mais com a pequena comissão sobre as corridas que realizava, melhoraram, e muito, a qualidade de vida da sua família. O simples fato de não chegar mais em casa altas horas da noite, tendo o compromisso de levantar novamente de madrugada para esfolar o banco do ônibus de novo, lhe era um reforço na saúde do corpo e das pernas. Já não era garoto para aguentar essas maratonas. Dormir só cinco horas numa noite e na outra também, estava terminando com suas forças. Deitara de costas olhando para o teto roto e cheio de frestas da casa que alugara, lá já iam vários anos. Nunca sobrava no orçamento familiar o suficiente para alugar outra mais espaçosa e melhor. Perguntava-se até quando teria que se conformar com essa pobreza. Se há uma coisa com que a gente nunca se conforma é com a falta dos recursos mínimos, necessários para se levar uma vida digna, pensava. Se fosse recente esse estado de coisas, certamente que haveria esperança de melhorar. Mas, não! Essa carência já o acompanhava desde sua infância. Depois cresceu, começou a trabalhar nas roças da redondeza; aprendeu esse ofício de agricultor em todos os seus sentidos... e a falta de perspectivas estava aí! Começou, então, a trabalhar para esse patrão como tratorista. O que mudou foi somente que, àquela altura, tinha um patrão fixo. Financeiramente nada mudou. Casou com a Felisbina, um namoro antigo, mas que, dentro das perspectivas, estava fadado ao só namoro em festas e bailes de arrasta-pé. Dentro do prisma a que tinha alcance, era a moça mais bonita daqueles ermos, ainda que pobre e deserdada da sorte como ele próprio. Constituiu sua própria família com a miséria sempre os acompanhando, lado a lado. Quando as coisas começavam a melhorar; quando os filhos já estavam grandinhos e cultivavam alguns canteiros para colher o produto que auxiliava no orçamento doméstico; quando começou a não faltar, pelo menos, comida em casa... o patrão o mandou embora. Foi aí que veio para a cidade e arrumou serviço de servente de pedreiro. Os filhos, dos quais dois ainda eram adolescentes, também arrumaram serviço. Mas, sem estudo profissionalizante, tiveram que aceitar, também, o primeiro trabalho que lhes apareceu. Tinham que ajudar a ganhar alguns trocados para as despesas, que eram grandes aqui na cidade, tendo em vista terem que comprar todos os artigos que consumiam.

Já muitas noites, no silêncio do seu pensamento, o homem matutava numa fórmula mágica para melhorar a situação da sua família. Devia de haver algum trunfo escondido no universo que o rodeava, não sabia ao certo donde tirá-lo, que fosse forte o suficiente para virar essa situação no jogo da sua vida. Pensou, pensou, e repensou, e nada se lhe oferecia na planilha dos seus conhecimentos limitados para resolver o problema. Porém, naquela noite, talvez inspirado pela feliz ideia dos filhos com na homenagem prestada, tinha a esperança de encontrar uma solução – a química que produziria uma revolução favorável em suas existências. Não conseguia conciliar o sono que lhe apagaria essas utopias do cérebro, mas, também, não lhe vinha uma luz suficientemente clara para ser aproveitada, ou, pelo menos, estudada. Estava quase desistindo de pensar nalguma coisa que fosse boa e viável, quando, de repente, lhe veio a intuição de que, a única solução para seu grande problema era ganhar uma loteria. Mas, para ganhar, era necessário jogar. Ele nunca na sua vida jogara, nem na loteria e, muito menos, cartas ou outro jogo qualquer. Sempre tinha que haver uma primeira vez, pensou. Mas isso tinha que ser um segredo dele para com ele mesmo. Sua mulher e seus filhos não deveriam nem suspeitar disso. Era um dinheiro gasto, do pouco que conseguia durante o mês, que, por fim, lhe faria falta na manutenção da casa. Tinha um colega seu no ponto de táxi que não falhava uma só extração. Duas vezes por semana gastava cinco reais para tentar, segundo ele, ter seu próprio carro e sair dessa miséria de dirigir carro dos outros e receber migalhas. Poderia fazer o mesmo. Não seria um gasto muito grande e era por uma boa causa, pensava. Fez as contas e, se jogasse uma vez por semana, gastaria vinte reais por mês. Afinal de contas, não fumava e não bebia, nem nunca fora dado a gastos supérfluos. Lá que uma vez ou outra, tomava uma pinga. Mas não passava de um martelinho. Era uma extravagância, segundo ele, muito útil. Fazia com que, em época de crise, fazia com que não pensasse nela o tempo todo. Apesar de não ser dado a beatices, ele era um refém constante da sua consciência – primeiro o dever e depois o lazer. E esse dever impunha-lhe medidas drásticas quando o assunto era fazer gastos que, talvez, não pudesse pagar. Fora assim desde que se conhecia por gente. Mas, mesmo sendo assim comedido, nunca lhe sobrara um centavo que fosse. Quem sabe que, se jogasse na loteria, o destino não ia dar um empurrãozinho nas finanças dele. Seu amigo já lhe dissera, e ele mesmo ouvira falar, que tinha pessoas que jogavam desde adolescentes, e estavam já quase velhos, e nada ganharam até hoje na loteria. Mas, não jogando, seria impossível ganhar. Quem sabe se para ele as coisas seriam diferentes. Deu um último retoque nesse plano que elaborara, virou-se para o lado e dormiu.

– Homem, já é dia. Com essa preguiça vai perder os fregueses do táxi.

– Já estou levantando! Dormi mal esta noite. Estou com o corpo todo doído.

– O café está pronto. Eu vou para a feira comprar umas verduras. Já volto.

Miraldo levantou-se de um salto; tomou uma ducha rápida; engoliu um pedaço de pão ajudado por uma xícara de café preto e se mandou para o trabalho. Quando chegou ao ponto, nem foi preciso esperar na fila. Um freguês já o esperava. Queria pegar o voo para Madrid, e tinha pressa. Miraldo pensou, esfregando as mãos: com mais uma corrida dessas hoje, já tenho o suficiente para fazer a primeira “fezinha”.

– Então vamos logo, senhor. Se o trânsito nos ajudar um pouquinho, estaremos no aeroporto do Galeão em trinta e cinco minutos.

Fez o sinal da cruz e acionou o carro.

* *

*

Gilson não era um mau rapaz. Era um jovem igualzinho aos outros deste século que mal saíra da adolescência. Tinha a seu favor ter nascido em família pobre e, por isso, necessitava estudar para ter mais sorte no formar sua carreira. Era ambicioso e, por isso, queria conhecer tudo o que não conhecia. E buscava esse conhecimento em todos os campos que estavam ao seu alcance. Tudo era lição de vida, que precisava ser aprendida. Basta dizer que passava longas horas, em companhia da namorada, observando o pessoal que deslizava sobre as ondas de um mar revolto, equilibrando-se sobre uma prancha. E não eram poucos os que praticavam esse esporte! Todos os sábados, quando a Miriam e ele entretinham-se em admirar a destreza dos surfistas, era comum alguns deles sentarem-se junto com o casal de jovens para conversar. Sabendo que ele admirava sua arte, por diversas vezes o havia convidado para brincar com eles na água. Mas Gilson achava muito perigoso. Mal sabia nadar e, ficar somente apoiado numa taboa no meio das grandes ondas, parecia-lhe coisa só para quem não prezava a vida.

Quando ficaram a sós na areia, o rapaz comentou com a Miriam o fato de ter um cheiro bom, adocicado, na praia.

– Parece perfume de flores, mas aqui nem tem floricultura por perto, disse ele, aspirando a maresia.

– Meu inocente Gilson, isso não é perfume de flores. Os meninos que estiveram aqui conversando conosco fumaram maconha.

– Mas, maconha não é uma droga?

– É e não é. É quase como fumar um cigarro normal, com a diferença de que deixa a gente alegre e conversador pra caramba.

– Você já fumou?

– O que, maconha? Normalmente não fumo, nem cigarro comum. Mas lá, quando estamos reunidos na lancharia do seu Manoel, de vez em quando fumamos um baseado pra se divertir mais.

– Mas a maconha vicia!

– Vicia, como tudo o que se adquire o hábito de usar. Mas a minha turma não faz da maconha a sua festa. Ela é só um complemento que rola de vez em quando.

– Tudo? Tudo o que?

– Ora, Gilson. Tudo o que você gosta e seguidamente consome, vicia. Como, por exemplo, a bebida alcoólica, o tabaco, a boa comida, as mulheres, os homens... – disse ela, piscando marota e deliciosamente para o namorado.

Levantaram-se, ambos brancos de areia. O moço tomou a namorada nos braços e beijou-a, meiga e longamente. Quando, finalmente, separaram relutantes seus jovens corpos, convidou-o ela, mais uma vez, para irem juntos na reunião do seu grupo. Mesmo receando do que poderia encontrar ou sentir entre estranhos ao seu meio na lanchonete do seu Manoel, Gilson aceitou o convite. Afinal de contas, foram tantos os convites que, a seu ver, ficaria feio ele não aceitar, mesmo porque, não tinha, naquele dia, uma desculpa plausível que justificasse sua recusa. E, segundo entendia, não era uma confraria do mal. Pelo contrário, eram amigos comuns que fugiam da rotina para evitar que o estresse da mesmice repetitiva do trabalho os molestasse. E isso era, até, louvável, segundo sua interpretação. Era uma terapia em grupo, evitando se deprimissem, doença, aliás, muito comum neste século do corre-corre. E ele, que nunca teve problemas com a depressão, estaria prevenindo que tal acontecesse.

Para alegria da Mirian, com um largo sorriso, onde se lia a aceitação prazerosa da proposição da jovem, disse:

– Com todo o prazer, minha querida! A que hora vocês vão?

– Pelas oito horas. Sabe onde fica a lanchonete?

– Sei. Já estive lá algumas vezes de passagem.

– Combinado, então?

– Combinadíssimo.

– Agora tenho que ir. Prometi para minha mãe que voltaria cedo. A gente se encontra depois, então.

Com um roçar de lábios, despediram-se, já na calçada, perto da casa da moça. Gilson também tomou um ônibus e foi para casa. Precisava apressar-se porque já eram cinco horas.

Depois de um banho, uma boa música no seu radinho de cabeceira inspirou-lhe confiança e ânimo para a festa. A essa altura já a lembrança da Mirian era como um veneno em seu sangue. Nada fazia sem que visse, em pensamento, seu lindo rosto e nele estampado seu mais doce sorrido que a fazia meiga e pura aos olhos do rapaz.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 22/10/2009
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T1880483
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