A PONTE DO PRECIPÍCIO – romance – parte VII
Nelson estava de costas para os homens que ocupavam a mesa grande. A fala baixa deles e o barulho intenso que reinava no barracão não lhe permitiram entender o que eles conversavam entre si. Teve a impressão, algumas vezes, que o Jorge, que estava de frente, comunicava-se através do olhar com eles. Não o poderia afirmar, mas, teve a quase certeza que interceptara alguns olhares comprometedores. Porém, não ia fazer um escândalo por, talvez, um olhar inocente. E, depois, ele era novo ali e sabia que, em tambor alheio o galo é frango, tem que tomar o máximo cuidado para não ser surpreendido, por mais valente que seja. Mas essa dúvida não deixou de causar-lhe algum desconforto. Necessitava redobrar a guarda. Não conhecendo os hábitos do pessoal que frequentava a casa, nem conhecendo essa gente com quem teria contato mais tarde, não teria como afirmar que era dele que essa comunicação falava ou, talvez, de outra pessoa qualquer. Deixou as coisas correrem sem que se apercebessem do seu estado de alerta. Fazia já uma hora que ali se encontrava. Era a segundo cerveja que estava sendo aberta e não estava nos planos dele embriagar-se. No dia seguinte era o grande domingo em que fariam a festinha para sua mãe, em comemoração ao seu aniversário. Tomaram mais essa garrafa, falando de coisas banais, em que não faltou a apologia às mulheres, quando o rapaz insinuou que estava na hora de retirar-se, dando como desculpa a distância e a precariedade de conduções convergentes para o seu bairro. A conversa estendeu-se por mais alguns minutos, que ao Nelson pareceram horas, quando Jorge convidou-o para irem até a outra mesa, pois queria apresentar-lhe seu patrão.
– Não tenha medo. É um sujeito bonachão e gosta de fazer amigos. Você vai gostar dele.
– Medo é uma coisa que não trago comigo. Vamos. Depois tenho que ir mesmo para casa. Tenho compromissos amanhã.
O Jorge chamou o rapaz que atendia as mesas e lhe pagou a bebida, mesmo sob os protestos do visitante. Levantaram-se e foram para a mesa grande, onde estavam os quatro homens. Jorge pediu licença ao que parecia ser o chefe e apresentou-lhe o amigo.
– Este é o Nelson, de quem lhe falei outro dia, lembra?
– Muito prazer – disse, estendendo-lhe a mão. Parece um rapaz saudável, dono do seu nariz e que tem vontade de ver progresso naquilo quer faz.
– Fico lisonjeado em conhecê-lo, senhor...
– Pode chamar-me pelo apelido de “chefe”. É como todos aqui me conhecem. Mas puxem suas cadeiras e nos façam companhia. Ainda nem são dez horas, muito cedo para ir para casa.
– Mas só o tempo de conversarmos um pouco e nos conhecer. Tenho compromissos domésticos amanhã e tenho que dormir um pouco para não fazer feio, riu o rapaz.
– Sentem-se. Sentem-se. Então você é o menino que veio da roça tentar a sorte na cidade grande.
– Não é bem assim! A família veio para cá porque o pai foi mandado embora do emprego na agricultura. Ele era tratorista de um latifundiário, que não precisou mais dele.
– Interessante isso. Os grandes empresários dispõe dos braços fortes que os enriquecem como se fossem meros objetos. É por causa disso que eu defendo que, quem puder, seja dono do seu próprio nariz.
Nelson pegou a carteira de cigarros do bolso e ofereceu um ao seu novo amigo.
– Eu fumo só palheiro. Prejudica menos, segundo os médicos. Mas, para não lhe fazer desfeita, vamos fazer o seguinte: você fuma um dos meus cigarros de palha, enquanto eu queimo um dos seus cigarros. Pode ser?
– Mas eu não sei fechar o cigarro. Só fumo esporadicamente em ocasiões como esta.
– Nem precisa. Temos aqui na favela um fabricante que faz os cigarros e já vende prontos para fumar, ensacados num cartucho de papel. Se gostar, leva alguns pacotinhos para casa. Ele ganha a vida com isso. Você viu que tem muita coisa para se trabalhar sem estar sob o comando de alguém que só quer explorar o sujeito?
– Interessante! – disse o rapaz, observando o cigarro bem acabado e, mostrando na ponta a ser acesa, que era feito de fumo nobre “amarelinho”. Sempre ouvira falar que o fumo de cor amarela era um fumo especial para esse tipo de cigarro, porque era mais fraco e de ótimo gosto para o fumante.
Depois de feita a troca dos cigarros, cada qual fumou vagarosamente o seu, enquanto a conversa continuava. Enquanto isso, os demais homens da mesa, sem se darem por achados, quase imperceptivelmente, ficavam observando seu novo companheiro.
Depois de quatro ou cinco tragadas, o inocente filho do interior carioca – fumante de ocasião, não de vício – começou a sentir-se um carioca nato. Envolvido por uma forte nuvem de euforia, parece que esquecera sua natural timidez, passando a tomar parte ativa na conversação corrente. Estava bem humorado e, ao longo desse novo momento, surgiram conversas interessantes; contou-se piadas; falou-se de política, de comércio e de religião. À toa, as gargalhadas sucediam-se às piadas e por qualquer palavra saída da boca do visitante convidado. O tempo e a pressa não faziam mais parte da sua agenda. Esqueceu que no dia seguinte havia aquele compromisso.
Deu-se conta de que o tempo passara quando uma fome canina deu início a devorar-lhe as vísceras abdominais. Essa fome o despertou para a realidade da vida. Não ingerira bebida alcoólica em demasia. Depois das duas cervejas que ele e o amigo Jorge tomaram nenhum copo a mais aceitara. Porque então estava aí conversando alto e se divertindo até àquela hora? Que havia alguma coisa errada, ah! isso havia. Ele só não sabia o que o transformara assim. Nunca antes sentira esta leveza, ao ponto de esquecer, até, dos compromissos. Fez um grande esforço para não dar bandeira. Os “amigos” não poderiam desconfiar que estava doidamente hipnotizado por aquele estado de espírito; que estava sendo conduzido àquele... àquela... – não sabia ao certo explicar o que na realidade lhe acontecera. Era um estado de alma em que uma euforia maluca o transformara por completo. Mas teria que achar uma desculpa para se retirar. Inventou qualquer retirada estratégica para sair. Talvez caminhar um pouco ao sereno lhe fizesse bem. Foi isso que alegou e foi isso que fez. Mas não voltou à mesa!
Jorge, depois de alguns minutos, levantou-se, por sua vez, preocupado com o rapaz. Disse que iria ver o que tinha acontecido com o companheiro. O chefe, porém, freou-lhe os cuidados e ordenou que se sentasse novamente.
– Ele já é bastante grandinho para saber o que deve fazer agora.
– Será que ele desconfiou de alguma coisa?
– Se desconfiou, não sei, mas ele volta outro dia.
– ... e se não voltar! É capaz de complicar para o nosso lado.
– Se não voltar, você tem que falar com ele. Faça com que venha mais vezes pra cá... por bem ou por mal. Você conhece bem os meus métodos, não conhece? – Com a anuência que o Jorge fez, movendo a cabeça, o chefe continuou: Então!
Nelson chegou em casa já eram três horas da manhã. Tirou o sapato, destramelou a porta e, pé ante pé, foi para o seu quarto. Todos estavam dormindo e ninguém se apercebeu da sua chegada tardia.
No domingo levantou cedinho, tomou banho e se vestiu. Não dormira aquela noite. Ficara o tempo todo querendo achar uma explicação plausível para o que lhe acontecera naquela noite. Não estivera embriagado, pois, todas as tardes, ou quase todas, ele tomava a sua latinha. Portanto já estava acostumado com a quantidade. E não exagerara, tinha toda a certeza disso. Mas o que, então, lhe havia acontecido? Era um quebra-cabeça que não encaixava de jeito nenhum. Quanto mais pensava, mais as ideias se lhe embaralhavam, e a nenhum resultado positivo chegava. Só ficou com uma certeza: naquele lugar não mais voltaria. Devia ser um galpão em que a mandinga corria solta. E estava certo de que isso não combinava com ele, sempre tão certinho e regrado em suas ações. E mais, ele não se lembrava de ter, algum dia, falado tanto, porque era calado por natureza. Gostava de amigos, e lá os encontrara. Mas poderia encontrar os mesmos homens, ou outros amigos, em outra parte, em que sua vontade ficaria preservada para seu uso particular; onde não perdesse a noção do tempo e nem ficasse refém de bruxarias, explicação única que encontrou em seu ingênuo modo de pensar. Fez um esforço para pensar nutra coisa. Teria que deixar esse episódio de lado e, na hora azada que se apresentasse, falaria com alguém para trocar ideias sobre o assunto. Mas com quem? Ah! deixa isso pra lá, pensou. Foi à cozinha e lá já encontrou todos em alegre conversação.
– Finalmente meu menino acordou, disse dona Bina.
– Já estou acordado há algum tempo, disse dirigindo-se para o lado da mãe para lhe dar um forte abraço. – Parabéns pelo aniversário. Certamente os irmãos e pai já lhe falaram que a senhora hoje vai ser nossa convidada. Não queremos ver a dona Bina hoje fazendo almoço, lavando pratos ou mexendo em qualquer outra coisa que seja trabalho. Né, meus manos? Ao menos no aniversário dela ela tem o direito de se sentir aposentada. Nós vamos fazer tudo. Entre outras carnes, comprei aquela carninha de porco que a senhora tanto aprecia. Vai ter até “aquela maionese”. Tá bom assim?
Todos bateram palmas e abraçaram novamente a mãe. Uma lágrima de felicidade apontou no canto do olho de dona Felisbina. E ela disse:
– Descobri que, mesmo a gente sendo pobre, pode-se ser feliz. Obrigado, meu Pai, por vocês serem a minha família!
O dia correu na maior felicidade. Todos, inclusive o seu Miraldo, esforçaram-se por completar essa felicidade a que se referira a mãe.