A PONTE DO PRECIPÍCIO (romance – parte V)

Houve uma noite em que o Miraldo, ao chegar quase meia noite em casa, vindo do seu trabalho, ostentava a boca cheia de sorrisos. Estava alegre demais para a carranca de conformação que sempre exibia, mal conversando com os familiares. Naquela noite não cabia em si de contentamento. Foi tomar seu banho para chacoalhar a poeira de cima do lombo e sentou-se à mesa para comer seu prato que a mulher lhe havia guardado.

Dona Bina ficou curiosa. O que teria acontecido com o marido para que ele se mostrasse diferente de outras vezes que voltava do trabalho? Só em vê-lo, quando entrou pela porta, mesmo com a roupa toda suja, com mau cheiro e a cara suarenta, ele estava feliz. Naquele dia não reconheceu o homem carrancudo que fizera dele a luta pela vida, sem nada conseguir acrescentar a ela em termos de conforto ou, pelo menos, um pouco de melhoria.

Como fazia todas as noites, sentou-se à sua frente. E ele, devorando com satisfação a magra refeição do seu prato como se fora um banquete, perguntou à dona Bina:

– Não pergunta por que estou feliz? Sei que está curiosa por demais.

– Se estou! Afinal, o que lhe aconteceu, homem? Encontrou com algum passarinho verde agora de noite?

– Nenhum passarinho verde, mulher. Eu arranjei um “bico” pra fazer.

– Você quer trabalhar mais ainda do que já estava? Onde vai arranjar tempo para isso?

– Tenho um amigo que é taxista. Ele mora aqui no bairro e já me havia falado do assunto. Ele quer que eu faça o horário dele nos domingos de manhã, das seis ao meio dia. Como a gente não trabalha no sábado à tarde, está aí uma boa oportunidade de ganhar mais uns trocados.

– Você já anda tão pra baixo, coitado! Não carece trabalhar mais ainda.

– Quando a ocasião aparece não se deve refugar serviço. Pode ficar sossegada que esse trabalho é moleza para mim. Lembra que sou bom motorista!

– Eu sei que você não é preguiçoso, mas, meio dia de trabalho a mais não vai fazer tanta diferença no bolso.

– Por que não? Tem meses que pode até dobrar o salário. Vou ganhar 60% do valor das corridas que eu faço.

– E você conhece a cidade o suficiente para não levar os clientes para o lugar errado?

– Não conheço tudo, mas o necessário para o serviço. Afinal, faz tanto tempo que a gente mora no Rio de Janeiro!

– Pensando bem, é uma boa chance de livrar um pouco da despesa da casa. Começa quando?

– Já no próximo domingo. Descanso a noite toda e, no domingo, estou novinho em folha pra trabalhar com o táxi.

Falaram mais um pouco e, depois foram, felizes da vida, para a cama descansar.

* *

*

Mais algumas semanas passaram. Nelson por diversas vezes se encontrara com seu amigo de bar. Estabelecera-se um diálogo agradável entre eles. Ficara sabendo que trabalhava para alguém, ao qual chamava de “chefe”. Nunca lhe mencionara o nome. Mas isso, no entender do rapaz, não lhe fazia diferença nenhuma saber ou não o nome do patrão do seu amigo. Ficara sabendo, também, que ele não queria declarar o ramo de negócios do seu chefe. Teve a impressão, em sua ingenuidade, tratar-se de um desses trabalhos informais em que tantos brasileiros ganhavam o feijão de cada dia. Achou que era por isso que seu amigo Jorge, nome pelo qual o conhecia, dissera-lhe certo dia que eles tinham ter muito cuidado com a polícia. Então, se eles eram perseguidos pela polícia, alguma coisa faziam que não era certo. Quem sabe, vendiam coisas vindas do Paraguai, da China ou de outro país que comerciava piratarias. É, devia ser isso! Para vender não pagavam impostos e, daí, a perseguição da força pública. Era a falta de trabalho formal, com carteira assinada e tudo, que fazia muitos procurarem esse tipo de serviço. Mas, ele, o seu amigo Jorge, o convidara para trabalhar com seu chefe. Isso lhe parecia estranho. Ele trabalhava com carteira assinada e com as garantias que esta lhe favorecia. Por que havia de abandonar um emprego garantido para aventurar-se no trabalho informal? Mas, havia, também, a compensação financeira. Seu amigo Jorge lhe dissera que, se se aplicasse, poderia ganhar muitos salários mínimos, não um só, como estava ganhando no atual emprego. E tinha mais, o trabalho que ia realizar não era de cansar os braços e o corpo todo como o de servente de pedreiro. O trabalho que lhe oferecia o amigo era mais da inteligência; de saber onde e quando poderia oferecer o seu novo produto. Ele, o Nelson, considerava-se um homem esperto. Pelo menos mais ativo do que aquele caipirinha que viera da roça há menos de sete anos, ainda adolescente. Por isso mesmo ficava com uma pulga atrás da orelha cada vez que se propunha analisar a proposta do amigo Jorge. E se fosse uma armadilha? Ele tinha tudo para parecer com um desses “malandros do Rio”. Os espertinhos que foram assim cognominados porque são bem falantes e usam desse estratagema para ludibriar a boa fé dos ingênuos, para proveito financeiro próprio. Por isso, sem se deixar levar pela ansiedade, teria que analisar todos os pontos das conversas havidas entre os dois. Talvez fosse bom falar do novo emprego com o pai, ou mesmo com o Gilson. Por outro lado reconhecia que eles prefeririam conservar o que já havia sido conquistado em matéria de emprego. O pai sempre dizia, nesses casos, que mais valia uma pomba na panela do que duas voando. Na conjuntura atual, de certa forma ele tinha razão. Acontece que, – pensava ele – nesses casos, ser ambicioso é uma virtude e não um defeito. Progredir é uma lei divina, enquanto que, o contrário, é preguiça. E, preguiçoso, nunca fora.

Na noite de sexta feira não conseguiu dormir. Debateu-se nesses pensamentos até altas horas da madrugada. A tal festinha a que fora convidado seria neste sábado, à noite. Mas, afinal de contas, se não fosse a esse encontro, nunca saberia de que se tratava. E se fosse uma coisa boa? Se desconfiasse de qualquer armadilha, ficaria na sua e diria que, no momento, não se interessava. Recusar um convite era feio, mas, recusar uma troca de emprego, pensava, era diferente. O amigo teria que compreender. Amizade é uma coisa e largar uma pomba presa e correr atrás de muitas que estão voando – como dizia seu pai – é outra bem diferente. Resolveu ir ao tal encontro. Ficou nessas conjeturas até que o bichinho do sono imobilizou-o placidamente.

* *

*

O Gilson, com os hormônios à flor da pele, começou a namorar uma garota que conhecera na praia, tomando sol. Nos fins de semana encontravam-se numa praia solitária, bem longe de praias nobres e usualmente frequentadas, escondida entre pedras e casinhas de pescadores. Em meio a esses altos penhascos um pequeno terreno coberto de areia branquinha era o seu paraíso. Passavam longas horas ali descansando e conversando, comendo os lanches trazidos de casa, e algumas loucuras a mais. Coisas de jovens apaixonados!

Conversavam muito. A moça, Miriam chamava-se ela, tagarelava o tempo todo. Gilson, mais comedido e menos vivido nas coisas da grande cidade, escutava. De vez em quando ele a interrompia com ideias próprias; vezes outras, perguntando. Falavam sobre as amizades comuns. Também vinham à baila os amigos de cada um em particular e de seus colegas de serviço. Era assunto inesgotável. Agora a conversa tomou o rumo dos hábitos dos amigos da Miriam e suas pequenas loucuras.

– Além de trabalhar durante a semana, o que vocês fazem mais?

– Nós, os que moramos no mesmo bairro, perto uns dos outros, formamos uma espécie de confraria.

– O que é isso, Miriam?

– Confraria? No nosso caso, é um grupo de amigos que se reúne em dias marcados para fazer uma festinha. A gente se encontra na lanchonete do seu Manoel, onde nos reunimos todas as quartas- feiras para espairecer um pouco. É uma maneira de fugir do peso excessivo que exerce sobre a gente o trabalho entre quatro paredes, quase escravos do computador. A seriedade que o trabalho exige tira da gente o tempo para respirar seu próprio ar durante o dia todo. Por exemplo: eu trabalho na parte de informações de um plano de saúde. A gente fica o dia inteiro explicando os direitos que são do usuário; para que tipo de doenças ele precisa de carência e para quais ele não precisa. Essas coisas. É de ficar louca.

– E vocês têm dinheiro para fazer tanta festa?

– A gente faz assim: quando recebe o pagamento no fim do mês, cada um deixa numa caixinha, sob a guarda do seu Manoel, quarenta ou cinquenta reais. Esse valor tem que dar para todo o mês. Nós já sabemos quanto cada um pode gastar nas quatro vezes que nos encontramos por mês. Nada de extravagâncias porque é só isso que gastamos em festas.

– É muito bonito isso! Realmente é acessível para qualquer jovem. Aproveitam para descontrair jogando conversa fora, brincam e riem e, assim, esquecem por alguns momentos, o trabalho; a rotina, enfim, do dia-a-dia.

– Isso é saudável. Mas o ser humano está sempre à procura de emoções e, é claro que, nestes tempos modernos, às vezes rola alguma coisa mais pesada.

– De que coisas você fala, drogas?

– Drogas, não, só maconha! Ora, não é sempre, mas, de vez em quando aparece algum “baseado”. Todos aceitam isso como mais uma brincadeira e, por algum tempo, ficam mais eufóricos. Mas só acontece quando alguns, ou todos, estão meio “jururus”. É para voltar a alegria que, nestas festinhas, inovamos sempre alguma coisa. A intenção é de que elas tragam de volta a alegria plena de viver.

– Ms vocês acham isso legal? Quero dizer, certo?

– Eu acho que não é contra a lei. Até hoje a polícia ainda não falou nada. Também a gente não faz baderna. Isso fica só entre nós. Lá nos reunimos em sala fechada. Nada fizemos no meio dos outros clientes da lanchonete.

– Eu sempre ouvi falar que a maconha é o primeiro passo para se viciar em drogas mais fortes. Quer dizer, ela vicia e, de repente, ela não é mais suficiente pra sustentar o vício e o viciado passa aos comprimidos ou para o crack e, sucessivamente, todas as drogas da pesada se lhe tornam familiares.

Miriam olhou para o rapaz e riu.

– De que você achou graça, posso saber?

– Não achei graça daquilo que você falou. Acho, aliás, que tem razão. Mas acho, também, que nós não fumamos o suficiente para que fiquemos dependentes da droga. É só uma brincadeirinha!

– Por que você riu então?

– Eu ri porque, para um caipira da roça, como sempre faz questão de se intitular, você fala muito bem o português e mantém, ainda melhor, uma conversa de alto nível no que concerne aos costumes da sociedade moderna.

– O caipira da roça não tinha estudo e era um piá, ainda. Estudando e convivendo a gente aprende, sabia?

E a conversa terminou em risadas.

Os dois jovens ficaram de pé na areia e beijaram-se longa e gostosamente. Ao juntarem suas coisas para voltarem para casa, a moça perguntou, como quem tem medo de uma recusa:

– Não quer fazer parte do nosso grupo? Eu faria muito gosto!

– Como? Que grupo?

– (...) às quartas-feiras, no bar do seu Manoel, bobinho...

– Ah! Desculpe. Estava desligado. Podemos pensar nisso!

E os dois foram para suas respectivas casas.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 18/10/2009
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T1872958
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