A PONTE DO PRECIPÍCIO (romance – parte IV)

Quando a Tetê foi trabalhar na segunda-feira, levou o livro que dona Margarida lhe emprestara. Lera-o todo. Levou, também, o bloquinho onde tomara nota de algumas coisas que lhe chamaram a atenção, para questionar os conhecimentos que sua patroa tinha a respeito do tema. Na verdade, ela pouco ou nada havia ntendido. Mas deu para entender que se tratava de uma pessoa que morrera e voltara diversas vezes à vida, sempre com um outro nome e sempre fazendo uma coisa diferente. Mas como isso seria possível? Era isso que ela não entendia.

Andou o dia todo pela casa fazendo seu serviço, que era muito. Mas não se queixava. Como dizia seu pai: “Nós temos que agradecer a Deus o serviço que fazemos. Muitas famílias andam o dia inteiro procurando trabalho e não encontram”. No fim da tarde dona Margarida sentou-se no sofá perto dela, e, entabulando conversa, perguntou se tinha lido o livro.

– Sim, li ele todinho!

– ... e, entendeu tudo? – perguntou a patroa, reticente.

– Tá louca! Tem tanta coisa que não entendi!

– Por exemplo?

– Essa coisa de morrer e ressuscitar; morrer e ressuscitar!

– Não é bem ressuscitar. Reencarnar é um pouco diferente. Só a alma vem morar mais uma vez aqui na terra para uma nova etapa de provas, mas num outro corpo. Os erros cometidos no uso da vontade própria – o tal de livre arbítrio – que se comete até entender por que estamos aqui no mundo dentro de um corpo de carne e osso, tem que ser pagos.

– De que jeito pagar? Minha mãe diz que quem morre em pecado vai pro inferno. Ali, então, ele passa a eternidade toda pagando?

– As seitas cristãs todas dizem que a gente, numa só existência, decide a sorte ou o azar. Quer dizer: vai para o céu ou para o inferno.

– Mas não é assim como eles dizem?

– Você acha que Deus seria justo se condenasse uma criatura sua para sofrer as penas eternas do inferno?

– Bem, justo eu não acho, mas todos dizem a mesma coisa e a gente acaba pensando que é assim.

– Não sei te explicar agora por que, mas a coisa é um pouco diferente. Não sei bem donde eles tiraram essa ideia, mas, o certo é que acho que a Bíblia foi mal interpretada.

E acrescentou:

– A gente se perdeu na conversa e nem notou que está na sua hora de ir para casa. Leve este livro “O que é o Espírito”. Pode lê-lo com calma, nem que dure um mês inteiro a leitura, mas procura entender. Notei que você se interessa pelo assunto, e não é de hoje.

Quando Tetê voltou da escola dedicou uma hora ainda para se familiarizar com o livro. Achou-o muito interessante. Ela sabia o que era a alma. Nele, porém, explicava que o verdadeiro ser vivo e inteligente era exatamente o espírito ou alma. Que o corpo era uma simples máquina, dito assim para ela entender. Só servia de veículo para hospedar a alma enquanto ela aprendia, aperfeiçoando-se, isto é, tomava conhecimento das leis de Deus e da natureza, cumprindo-as.

Os dias foram passando e a jovem, ávida por entender tudo o que lia, não deixou nenhum item para trás que lhe deixasse alguma dúvida. Lia-o novamente e treslia, até que ficasse claro em seu entendimento o sentido ali declarado.

Passara quinze dias debruçada sobre essa leitura. Já havia lido o livro duas vezes e sempre lhe parecia novidade o que ele dizia. Mas, muitas da suas dúvidas foram esclarecidas. Agora já não entrava em pânico ao falar em eternidade, mesmo porque, essa tal de eternidade parecia–lhe mais distante agora. Se lhe perguntassem, não saberia explicar por que.

Enquanto voltavam do colégio, ela conversava com o irmão Gilson.

– Acabei de ler um livro muito interessante. Fala sobre a Doutrina Científica e Filosófica Espírita. Você quer lê-lo? Tenho quinze dias de prazo ainda para entregá-lo à minha patroa. Já ouviu falar em espiritismo?

– Sim, tenho um colega que vive falando nisso. Acho que ainda não estou preparado para pensar nessas coisas. Fica para uma outra ocasião. Tá, mana?

– Você quem sabe! É apenas um livro que explica o que é a alma e como ela deve comportar-se aqui na terra.

– Assim mesmo não vou querer ler agora. Tenho que me concentrar mais nos trabalhos de aula. Não sobra quase tempo.

– Tá bem. Quando estiver com vontade, me fale.

Tetê notou no irmão que ele não estava animado para interessar-se com o universo religioso. Aliás, nunca fora de preocupar-se muito com religião. Ia ao culto que era ministrado pelo ministro da eucaristia do bairro, mas, era mais para fazer os pais pensar que ele se esforçava para ser um bom filho, do que pela religião em si. Mesmo porque eles nunca tiveram em família um ensinamento rigoroso naquilo que dizia respeito ao cristianismo; só o trivial para se dizerem católicos. Desde quando se lembrava das rezas em família, elas eram praticadas mais por obrigação que por devoção. A preocupação maior do pai, seguido pela mãe e pelos filhos, que lhe seguiam o exemplo, era com a parte material: trabalhar para não morrerem de fome, já que o ganho era tão pouco que mal dava para o sustento.

Mas alguma coisa secreta dizia para a jovem que a religião não era somente uma função social. A ser verdade o que aprendera durante o seu aprendizado de catequese para fazer a primeira comunhão; se a alma foi criada por Deus e ele a quer perfeita e pura para lhe fazer companhia no céu, pensava que todos deveriam ser mais preocupados com a religião que professavam e, mais do que isso, conhecer a lei desse Deus. Não deviam de ver na religião o simples fato de ser chamado “fiel”, ao frequentarem tal ou qual igreja. Achava que Deus, só pelo simples fato de ser o Criador de todas as coisas, tinha uma relação muito estreita com a humanidade. Já que ele era bondoso, justo e bom, devia, por isso mesmo, amar as pessoas, fossem elas como fossem. Mas, conforme ela via todos os dias nas ruas e nos noticiários, nem todos eram tão bons assim. Havia muita gente que aparentava uma coisa e, na realidade, o mundo estava cheio de pessoas que nada eram daquilo que mostravam ser. Talvez por causa disso é que Deus castigava tanta gente, como ela ouvia o seu pai dizer sempre. Quem sabe, era essa a causa de tanta pobreza e doença no mundo. Deus achara esse meio para aplicar um corretivo justo à humanidade. Enquanto uns poucos eram muito ricos, o restante das famílias vivia na extrema pobreza. Mas, pensando mais profundamente no assunto “castigo”, eram castigadas por qual o mal praticado as criancinhas que nasciam pobres e, por isso, morriam de fome ou das doenças que a pobreza favorece, antes de completarem um ano. Que mal fizeram elas, se não tiveram tempo nem de serem boas ou ruins? Em sua opinião, ou Deus não era tão justo assim, ou havia uma outra explicação para essas duras diferenças sociais. Desde quando ainda era menina lá na roça, ouvia seu pai dizer que “devia de ter jogado pedras na cruz” para ser merecedor de tanta miséria. E ele, de certa forma, tinha razão. Não precisando nem olhar para longe para se notar as desigualdades chocantes. Enquanto o patrão do seu pai, lá no interior, ficava cada ano mais rico, em vez de pagar mais aos empregados, já que o clima favorecia boas colheitas, pagava, anos a fio, a mesma mereca de sempre. Miraldo, seu pai, era um dos mais antigos empregados e nunca passou de um salário mínimo. Certo que eles tinham um cantinho (a beirada de roça que não era alcançada para trabalhar com as máquinas) que ela e os irmãos plantavam. Mas era muito pouco para fazer a diferença entre um salário justo e o que o patrão lhes pagava. E, para maior desespero dele, quando um ano o clima não ajudou e, naquela safra o patrão não encheu carretas e mais carretas de grãos para exportar, despediu uma porção de empregados... e seu pai estava entre os que perderam o emprego. Como já nada tinha, com menos ainda ficou, e migrou para a cidade, engrossando o êxodo rural.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 17/10/2009
Reeditado em 22/09/2012
Código do texto: T1871086
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