A PONTE DO PRECIPÍCIO (ROMANCE – parte III)
CAPÍTULO TERCEIRO
De Mal a Pior
Todos os dias era a mesma coisa. Miraldo nunca se queixou de ter que trabalhar. Nunca foi preguiçoso. Era aplicado, corajoso e gostava do trabalho. Por incrível que pareça, era nele que conseguia forças para seguir em frente. Mas, como a lei natural é progredir, ele também se ressentia da mesmice repetitiva de todos os dias: trabalhar para matar a fome e para vestir alguns trapos, muitas vezes, como dizia um dos seus amigos, “vendia o almoço para comprar a janta”. Mais não conseguira em toda a sua vida. Essa monotonia de trabalhar só para ter o que comer é que o deixava desanimado. Nunca pudera dar aos filhos e à mulher algo mais do que a roupa do corpo e o parco alimento. Podia ser muito pior, pensava arrependido de ter aquele pensamento, com aquela pitadinha de revolta. Se por acaso estivesse desempregado, nem casa para morar teria, ele e sua família. Ainda bem que os três filhos agora já eram adultos e empregados.Já podiam muito bem cuidar de si, do seu estudo, da sua roupa e dos seus pequenos gastos. Mas Miraldo tinha medo que, pelo andar da carruagem, não chegariam muito mais longe do que ele próprio havia chegado. Acreditava numa predestinação. Família que era pobre nunca seria visitada pela sorte da fortuna. Ele nem queria ser rico. Deus, em quem acreditava um poder mágico, devia distribuir melhor as riquezas do mundo. Às vezes desconfiava que não era Deus que chefiava esse departamento. E, não sendo Ele que distribuía a fortuna aos homens, era o próprio homem que repartia mal. Queria tudo para si próprio e, por isso, tão pouco sobrara para tantos outros que viviam às turras com esse tal de dinheiro. Poucos eram os que tinham muito dinheiro e todos os outros, ou tinham pouco, ou nada tinham. Muitos desses nem casa nem comida tinham. Moravam na rua – que dó. E, ainda, para a maioria faltava, até, a roupa para cobrir o corpo e a coberta para defendê-lo do frio. Estavam em piores situações que ele e sua família. Pelo menos morava numa casa, ainda que velha e caindo aos pedaços, mas tinha quatro paredes. Lá dentro tinha camas e cobertas.
Assim ruminando ideias, estava no ônibus do centro do Rio e o deixaria perto do edifício que ajudava a construir. Estava cheio naquela madrugada. Por sorte, na parada onde ele sempre embarcava não havia tanta gente ainda, por isso, achou uma poltrona vaga. Agora, perto do seu destino, o corredor estava cheio de gente em pé. Desembarcou no seu ponto, mas, deixou que os pensamentos tristes de pobreza que ele veio remoendo no peito, seguissem viagem com os que iriam mais longe. Precisava agora se concentrar somente no seu trabalho. E, como fazia todos os dias, pediu para o seu anjo protetor que o guardasse de algum acidente de trabalho. Subiu os andares do prédio em construção para encontrar seus colegas de serviço.
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Uma pausa para descanso das pernas no meio da subida para sua casa já se tornara hábito para o Nelson. Trabalhava o dia inteiro e, não fora ele jovem e saudável, talvez não encarasse o seu dia-a-dia com tanto otimismo. Sendo assim, o rapaz não deixava, nem durante a semana, de cultivar suas amizades. Era, para ele, como que uma tomada de fôlego no fim do seu expediente. Estava consciente de que era necessário trabalhar para ajudar sua família a se manter, pelo menos, enquanto não surgisse algum bom anjo distribuindo dinheiro a rodo, o padrão que as condições de pobreza lhe permitiam. Não era um caso extremo de miséria. Tinham dinheiro para pagar o aluguel; dinheiro para o “rancho” mensal e para não andarem nus e descalços. Mais que isso sua família não tinha. Aliás, nunca tivera. Pensado dessa maneira, cultivava amizades que, talvez algum dia, lhe pudessem ser úteis. E, por causa disso, Nelson acostumara-se a chegar ao barzinho desse seu amigo. Por uma meia hora jogava conversa fora, às vezes com outros fregueses, ou com o próprio dono do bar, que filosofava suas verdades sobre a vida.
Dias antes fora abordado por um freguês que falava sobre trabalho. Não lhe oferecera um trabalho melhor, mas, em sua conversa deixara entender, nas entrelinhas, que o homem tem que explorar suas habilidades. Muitos têm aptidões para realizar um trabalho menos penoso e que lhe iria render mais dinheiro, mas não têm a coragem necessária para largar o emprego, ainda que cansativo e sem qualificação, para aventurar-se num mundo desconhecido e cheio de oportunidades.
Naquela noite, ao transpor a porta do bar, viu que ali estavam sentados nas banquetas do balcão alguns fregueses ocasionais bebericando suas bebidas enquanto falavam e riam sonoramente. Na mesinha do canto, ao fundo da sala, estava novamente aquele homem. Ao velo entrando, fez-lhe sinal para que lhe fizesse companhia.
– Senta aqui. Enquanto eu tomo a minha pinga e você sua latinha, podemos conversar.
O rapaz, que não era dado a fanfarronices e gostava de permanecer anônimo, sentou na cadeira vaga, de costas para a parede. Depois de cumprimentar seu companheiro de mesa falou para dizer alguma coisa:
– Meu dia foi duro hoje. Essa coisa de fazer massa para a construção cansa a gente.
– Seu serviço é longe daqui?
– Bastante longe. Fico boa parte do tempo, em que poderia trabalhar, com a bunda em cima de um ônibus.
– Pois é, é bom viver numa cidade como é o Rio de Janeiro, mas, as distâncias torram a paciência de qualquer cristão!
– Mas o que vai se fazer? Ainda assim agradeço a Deus por não estar desempregado. Acho que o trabalho informal é mais arriscado e menos seguro.
– Você nunca tentou explorar seu próprio potencial?
– Como assim? Não tenho estudo suficiente para trabalhar num escritório ou coisa assim.
– Acredito que a vida não se resume a ser bancário, funcionário público ou de escritório de empresa, além do trabalho braçal. Tem muita outra coisa para se fazer. É só ter coragem para achar a coisa certa com que a gente se afine.
Nelson acabou de tomar sua cervejinha e levantou-se para seguir o rumo de casa. Já de pé, disse:
– Enquanto isso não acontece vou continuar no meu trabalho. É pouco o que ganho, mas é seguro.
– Sábado que vem vou a uma festa aqui perto. Não quer vir comigo? Conhecer gente nova e ampliar seu círculo de amizades. Quem sabe? Ah! e tem mulheres bonitas. Gosta delas?
– Quem não gosta! Vou pensar no caso. Se não estiver muito cansado...
– Até qualquer dia... e pense no assunto da nossa conversa.
– Até.
O rapaz foi para casa, tomou um banho, jantou e foi para seu quarto. Já deitado, lembrou-se do novo amigo. Parecia um homem bom, em nada lembrando os malandros que conhecia. E aquela festa? Era normal que ele cultivasse novas amizades. Onde seria? A cidade era tão grande que dela, morando ali desde seus quinze anos, nada ou quase nada conhecia. Talvez fosse uma oportunidade, além de conhecer novas pessoas, de ampliar, também, os horizontes visuais da cidade em que morava. Nada mau – pensou – mas esses últimos pensamentos foram engolidos por uma gorda nuvem de sono.