A PONTE DO PRECIPÍCIO (romance – parte II)
CAPÍTULO SEGUNDO
Tentação
Nelson era um rapagão alto e forte, de corpo atlético. Apesar do trabalho duro, não precisava de muito alimento para se manter. As três refeições bastavam para ele sentir-se bem alimentado. Nunca fazia lanche fora de hora. A firma para a qual trabalhava fornecia o almoço para seus operários, evitando com isso que eles voltassem para casa ao meio-dia, para não haver desperdício de tempo. Quando ao alojamento, onde seria servida a refeição, ele lavava as mãos e sentava-se no seu cantinho preferido da grande mesa de taboa bruta, que ocupava mais da metade do espaço ali existente. Não era expansivo como muitos dos outros que, aproveitando aquele horário, promoviam sua algazarra. Nelson era amigo de todos e, da mesma forma, todos gostavam de tê-lo por companheiro. Porém seu jeito de ser era quieto, não que isso demonstrasse nele algum mau humor. Quando era interpelado, falava com qualquer um, mas, durante a refeição, preferia permanecer em silêncio. Essa sua mania já lhe rendera um apelido típico: “o come-quieto”. Não obstante isso, era comunicativo e agradável companhia quando fora do serviço.
Quase todas as noites na volta para casa passava na lanchonete, já na subida do morro. O dono desse estabelecimento granjeara sua amizade. Enquanto tomava uma latinha de antártica, conversavam sobre os mais variados assuntos. Por vezes, o futebol era o escolhido para comentar ou dar seus palpites sobre o campeonato que estivesse em andamento. Vezes outras, a crise de empregos tomava seu tempo. O dono da birosca defendia a tese de que, quem quisesse trabalhar, facilmente encontraria trabalho, com o que Nelson não podia concordar, tendo em vista a falta de um trabalho formal para todos os que estavam na informalidade.
– Se fosse tão fácil como diz você, eu já teria deixado de ser servente de pedreiro e não haveria tantos camelôs sendo perseguidos pelos fiscais todos os dias.
– Ah!, isso lá é verdade. Mas tem que ver, também, o outro lado. Você não se qualificou; não fez nenhum curso específico para merecer um trabalho mais a seu gosto, numa profissão mais rendosa.
– Acontece que, desde menino, nunca gostei de estudar. Agora, depois de velho, então...
– Aí fica difícil! As grandes empresas hoje já estão selecionando trabalhadores especializados. Eles, que mantém os grandes capitais, não querem perder tempo ensinando o serviço para principiantes. Querem ver a máquina produzindo a todo vapor, e já.
– Isso é verdade. Todos só pensam em dinheiro. Não se importam nenhuma vírgula com a fome dos que não têm emprego. Por isso não vou casar nunca. Seria só para botar mais gente no mundo para passar fome. Está muito bom assim!
Uma noite, enquanto o dono do bar e seu clienteamigo trocavam ideias, um homem estava sentado frente uma mesa perto dos dois, a um canto do estabelecimento. Ninguém lhe prestara atenção, mas ele, o homem sentado à mesa do conto, que aparentemente tomando uma pinga, afinara os ouvidos para não perder nenhuma palavra do que estava sendo falado à sua frente, no canto do balcão. Estava aí um descontente com o trabalho pesado e que poderia facilmente ser aliciado como viciado, ou, talvez até, quem sabe, trazido para o mundo maravilhoso e lucrativo dos operadores do comércio das drogas. Tomou o último gole do seu “martelo” e, levantando-se vagarosamente, foi ao balcão com uma nota na mão esquerda. Aproximando-se dos dois, entregou o dinheiro e, enquanto o de trás do balcão foi fazer o troco, abordou o moço:
– Falavam alto e não pude deixar de escutar a conversa. Concordo com o dono do bar, pois até o trabalho braçal está refinado. O trabalho na cidade grande é tão diversificado que, quem quer trabalhar, tem serviço. É lógico que, para ganhar dinheiro suficiente para suas pretensões, o cara tem que ser ambicioso. As a ambição exige coragem e, para ter coragem, muitas vezes o sujeito tem que superar sua própria timidez. Hoje em dia tudo se resolve com uma boa dose de ousadia.
Com essas palavras bonitas, palavras de enfeite que pareciam uma despretensiosa “conversa jogada fora”, o traficante cativou o interesse do Nelson e o deixou à vontade para continuar o diálogo.
– Talvez para vocês cariocas isso pareça fácil. Mas a gente que vem fugindo da falta de terra para plantar uma rocinha, não é bem assim.
– É, isso é verdade. Mas existem coisas que o homem, mesmo não tendo muito estudo, pode fazer. É só conhecer o seu potencial de liderança. E isso você tem!
– Por exemplo?
– Você quase todos os dias está neste bar. O dono é seu amigo?
– Sim. Passo aqui porque gosto de falar com ele.
– Agora não tenho tempo para prolongar esta conversa tão agradável. É uma pena, mas estão me esperando em outro lugar. Mas não vai faltar ocasião para conversarmos.
Nelson ficou pensativo enquanto o homem se retirava. Ele era um homem simples, criado na roça. Nem por isso podia ser considerado um simplório. Seu pouco estudo não o limitava ao ponto de não estar sempre de olhos e ouvidos atentos para ficar a par de tudo o que o rodeava. Quando o dono do estabelecimento desocupou-se momentaneamente de suas funções e sentou novamente no seu tamborete atrás do balcão perto do rapaz, Nelson perguntou-lhe se conhecia aquele homem que acabava de sair.
– Ele vem todos os dias tomar um aperitivo e sai como veio. Mas não o conheço. Por que?
– Nada, não. Parece um sujeito com bastante experiência de vida. Só isso.
Estava, também, na hora do Nelson retirar-se para sua casa. Despediu-se e subiu o resto do morro. Jantou em silêncio, pensativo. O resto da família, com exceção da mãe, já tinha ido para a cama, tentando um justo descanso. Não lhe saía da cabeça a conversa daquele homem. Quem sabe se, ainda que estivesse atento a tudo, não tivesse visto este lado da vida. Era bem possível que existiam outros trabalhos que não exigissem maiores estudos, no entanto, bem remunerados. Numa cidade tão grande a diversidade de coisas a fazer devia de ser, obviamente, maiores e proporcionais ao seu tamanho. Mas nem todos, pensava, eram estudados ou tinham feito cursos específicos para aquilo que faziam. Deitou-se e ficou com aquelas divagações perturbando-lhe o sono. Resolveu que, quando encontrasse novamente o homem da pinga, lhe falaria e escutaria o que tinha a lhe propor. Adormeceu.
* *
*
O Rio amanheceu lindo – uma cidade exuberantemente maravilhosa. Era sexta-feira e na segunda seria feriado. Para o carioca isso se associava com a fuga para alguma praia mais distante ou a visita àquele sítio, onde moravam amigos, ou qualquer outro lugar fora do grande centro. Mas essas mordomias só eram lícitas aos ricos. Eles podiam tudo. Até, se quisessem não trabalhar, “enforcando” já a sexta-feira... quem os demoveria dessa ideia? Aos pobres cabia fazer as honras da casa, ficando na cidade maravilhosa. Enquanto as ruas esvaziavam, eles, os pobres, ficavam de donos da cidade. Os trabalhadores normais faziam isso. Mas, em falta de outra coisa por fazer, recolhiam-se às suas casas. Ocupavam seu tempo ocioso em alguma tarefa caseira. Por exemplo, para refazer o sono de tantas horas não dormidas – o sono atrasado de muitas noites – ou consertar alguma coisa doméstica que o trabalho e o tempo gasto nas demoradas idas e vindas para chegar até ele, não lhes permitia em dias normais. A família do Miraldo em naa era diferente. Enquanto que os homens davam vazão ao preguiçoso aconchego da cama, dona Bina aproveitava lavar tudo o que estava sujo do uso no dia-a-dia de trabalho dos filhos e do marido. A Tetê ocupava-se em fazer algum trabalho de escola atrasado... e ler. Ela lia muito. Sentia verdadeira paixão pela leitura. Quando podia, arranjava um título novo para devorar. A biblioteca pública mais perto da sua casa ficava a muitas quadras de distância. No bairro não havia. No máximo podia arranjar um ou outro livro na biblioteca da escola onde ela e o Gilson estudavam.
Depois de feito o último trabalho de escola, estudou para a prova que seria na semana seguinte, e estava pronta para o que mais amava fazer: ler. Como seus patrões viajaram para visitar um parente no interior, ela não se preocupou com seu trabalho de doméstica, onde era muito benquista e respeitada por todos os da família, constituída de um casal de jovens e os patrões.
– Sei que você tem o bom hábito de ler – dissera-lhe dona Margarida, sua patroa, antes de deixar seu trabalho na sexta-feira. É um romance espírita. Você vai gostar.
Tetê – o apelido tinham-lhe posto os filhos da dona Margarida, formado pelas iniciais do seu nome – Tatiane Tabajara – foi à cozinha tomar um copo de água e voltou ao quarto. Pegou da mochila o livro e, depois de olhar detidamente a capa, começou a ler. Segundo sua patroa, era uma psicografia que um espírito ditara ao médium que o escrevera. Nunca tivera informações precisas a respeito de espíritos. Sua opinião, se é que a tinha, era formada pelo que ouvia amiúde das pessoas das suas relações; daquilo que mais ouvia falar: o mal que poderia sofrer uma pessoa contra quem alguém mandara encomendar um saravá. Era, segundo sabia, um sacrifício feito ao demônio, constituído de uma galinha preta, uma garrafa de cachaça, velas e outros ingredientes. A pessoa que se fazia pagar para fazer mal a alguém, colocava tudo isso na encruzilhada de alguma rua pela qual teria que passar a vítima, destinada a receber o mal que o espírito das trevas lhe proporcionaria. Mas essas ideias eram muito vagas. Até então, jamais se interessara por essas coisas, mesmo porque, desde pequena sempre desejara o bem para todas as pessoas, nunca o mal. Abriu o livro e, logo no início, leu que era o espírito de um padre que contava a sua história. Um frio percorreu-lhe a espinha. Esse padre, se era um espírito, já estava morto! Benzeu-se com o sinal da cruz dos católicos para criar coragem bastante para continuar a leitura. Seria isso o “sarava” praticado por gente sem moral? Mas sua patroa parecia pessoa tão religiosa, distinta e querida? Não poderia ser! Devia de haver uma outra explicação para o espiritismo. Fechou o livro, deixando o dedinho para marcar a página e leu novamente o título: Trajetória de uma Alma, de Antonieta V. Meyer. Padre José (espírito). Achou importante munir-se de um bloco de papel e uma caneta para tomar nota de tudo o que lhe parecia estranho. Afinal de contas, tudo era novo para ela, pois nunca tivera contato com literatura desse tipo. Aliás, tudo era novo para ela. Sua mãe lhe ensinara que a religião devia ser aceita com fé em Deus e nas coisas que os padres ensinavam no catecismo. E nas catequeses que ela frequentara, quando ainda menina, ninguém ensinou nada sobre os espíritos. Só sabia que as pessoas traziam no coração a sua alma criada por Deus; que, depois quando a pessoa morresse, essa alma ia para o inferno, se tivesse pecado, ou para o céu, se morresse sem nenhum pecadinho. O livro que sua patroa tão gentilmente lhe emprestara, seria, no mínimo, mais um desses romances como já lera dezenas. Os autores imaginam uma história e escrevem o livro. Isso, segundo aprendera no colégio, chamava-se ficção.
Depois dessas reflexões, leu uma parte e gostou. Gostou do tipo de como foi desenvolvido o enredo. Tinha adoração por romances de príncipes, princesas, condes e essas figuras, que hoje, parecem mitológicas. Mas, no desenrolar da história, ficara sempre “com um pé atrás”. Pela educação que o pequeno conde tivera; suas companhias quando adolescente e seu gosto pela farra quando adulto deixaram a moça com peninha da jovem mendiga que ele recolheu para dentro do seu palácio. Imaginava que, embora ela sendo linda e meiga, o cara ia cobrar caro o fato de lhe ter dado uma vida digna de ser vivida. Não deu outra! Mesmo que não gostasse do conde sentiu-se no dever de pagar o preço que ele cobrasse em agradecimento do seu bem-estar de agora. Afinal de contas ela vivia na rua, não tinha casa, teve frio, teve fome e estava coberta de andrajos. Hoje era condessa e vivia num palácio. Tinha, até, um monte de empregados para servi-la. Isso, visto pelo lado unicamente material, fora um passo muito grande dado de uma hora para outra, como num abrir e fechar de olhos. Quando terminou aquele capítulo, Tetê fechou o livro e não pode deixar de pensar alto: – “Bem feito, ele ficou com remorsos e também se matou!”.
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Gilson Tabajara foi, desde menino, um moleque extrovertido. De tudo achava graça, de tudo ria. Em criança, quando ainda moravam no interior do Rio de Janeiro, na colônia, todos os bichos eram seus amigos. Até o galo velho brincava com ele. Sempre, e ainda hoje, levara a sério tudo o que lhe competia fazer. Era ele que sempre se lembrava de fazer pasto e, quando ninguém lhe quisesse ajudar, por não ter tempo ou por cansaço do irmão, brigava com ele.
– Leite você gosta, mas, o pasto para tratar a “mimosa”, para ela dar o teu leitinho, não quer buscar.
E, assim, foi crescendo um menino pivete, sempre com as antenas ligadas, exigente e brincalhão. Por isso, agora que lhe veio a oportunidade de estudar, esforçava-se para terminar seus estudos fundamentais. Não queria fazer o supletivo porque dizia que a gente fica preguiçoso para pegar os livros, nenhum professor tendo por perto para fiscalizar os trabalhos de aula. E, matar os estudos só para passar nas provas, seria a mesma coisa que não estudar. Pensava que em estudar sem o acompanhamento do professor, nada se aprendia, ou se aprendia muito pouco para enfrentar o vestibular dos estudos maiores. Seu sonho era formar-se em direito. Havia tantas injustiças sendo praticadas contra os operários por parte dos patrões! Queria defendê-los, pois a maioria desses empregados da construção civil era analfabeta ou, no mínimo, eram ingênuos demais para conhecerem seus direitos trabalhistas. Nem ele mesmo tinha noção de como se impor. O caso mais frequente era que, se alguém questionasse com o patrão a folha de pagamento, era taxado de rebelde e inoportuno e, por qualquer bobagem a mais, era despedido. Gente não faltava para ocupar seu lugar, dizia o encarregado. Todos os dias apareciam alguns procurando serviço, principalmente, na construção civil. Por isso, com medo de ficarem sem o ganha-pão dos filhos, os operários trabalhavam e calavam suas dores.
Naquele final de semana o Gilson tinha uma porção de trabalhos de aula por fazer. Aproveitou o sábado para colocar em dia esses trabalhos. Se tudo corresse bem, no domingo, depois do culto que era oficiado na capela do bairro, era sua intenção de visitar um amigo. Há tempo ele, o amigo, vinha insistindo para que essa visita acontecesse.
O domingo raiou lindo. Sol forte e calor. Nenhuma nuvem atreveu-se a cruzar os céus do Rio de Janeiro naquele feriadão. Na medida do possível, a cidade estava quieta. Foi até o orelhão da esquina e ligou para o amigo. Sabia que ele, a mulher e a filhinha de quatro anos viviam na mesma penúria que a sua própria família enfrentava. Por isso, era de bom tom que, indo almoçar na casa dessa família, levasse algum ingrediente para que a despesa do almoço não ficasse pesada para seu colega de trabalho. Faltava a carne. Acompanhou a mãe e a mana ao culto. Na saída, passou no açougue do Chico, comprou um pedaço razoável e saiu, a pé, para a visita planejada.
Gilson não era muito dado à ingestão de bebidas alcoólicas, mas, para não “fazer feio” na casa do amigo, acompanhou o casal nas várias “caipiras” tomadas antes do almoço, enquanto falaram sobre os mais variados assuntos. Tinham muitas informações a trocar e aproveitaram o dia para uma conversa amistosa e amena para consolidar ainda mais sua amizade. Ao se despedir, o Miranda disse:
– Não leve muito a sério a brincadeira que minha mulher fez sobre os que ganham a vida, e ficam ricos, com a desgraça alheia.
– Não tenha medo. Ela tem razão. O que mais se vê aqui no bairro é gente vendendo drogas. Que deve dar um bom dinheiro, ah! isso dá!
– Mas, ao mesmo tempo, é a maior causa de mortes de pessoas jovens, não só aqui, como em todo o Brasil.
– Infelizmente! E o campeão disso tudo é o tal de “crack”. Quantos fumam seu cachimbinho por dia! O interessante é que, com a divulgação que se promove, todos sabem que, em pouco tempo, é morte certa. Mas não acreditam e querem experimentar para ver se é verdade. Acho que a nossa geração é de doidos!
– Mas me diga: o que nós podemos fazer para melhorar isso? – nada!
– É só cuidar de nós mesmos. Já estamos fazendo a nossa parte.
O dia passou sem que notassem. Um dia lindo! Enquanto voltava para casa, já quase noite, Gilson ficou pensando em tudo o que foi comentado naquela tarde. O mundo das drogas; a felicidade desse casal amigo, que, apesar de pobres, mantinham-se íntegros, encarando a vida do jeito como ela vem. Pensou, lá consigo, que havia poucos casais que se mantinham fiéis aos seus princípios e viviam a vida com amor. Nem ele, que até hoje fora um cara centrado, sabia se, conforme fossem acontecendo as coisas no futuro, teria essa fortaleza. Faria esforço para vencer as tentações. Estava certo de que o maior obstáculo que via em seu caminho era a pobreza. Por outro lado sabia que nunca vivera outra situação que não fosse a da penúria. Estava, até, grato a Deus por terem seus pais trocado a vida da roça, onde não viam futuro nenhum, pela cidade. Pelo menos aqui eles, os filhos, poderiam estudar, e, talvez, trabalhar um futuro melhor para eles todos. Tudo era possível. Mas, o outro lado – o mal – era muito mais forte e convidativo nas grandes cidades, que o trabalho honesto e mal remunerado, na perseverança no bem.