A TOURADA

Houve um reboliço enorme em Água Preta quando viram o cartaz postado num dos pontos de mais movimento da cidadezinha, o Bar do Maçu.

O reclame anunciava uma tourada, coisa jamais vista pela gente humilde do lugarejo. Mulheres paravam, homens espiavam a figura do toureiro elegante, meninos comentavam a brabeza do touro, muito artisticamente estampada no desenho colorido.

E o circo foi sendo armado nas proximidades do Largo da Matriz, os trabalhos sendo acompanhados pela curiosidade geral. As estacas, o mastro principal, os panos e logo a tenda gigante estava armada, toda de pé.

A notícia em Água Preta era uma só:- o espetáculo do dia da estréia, que os organizadores prometiam ser de arromba. Viria, inclusive, um animal de fora do país, já que acreditavam não existir em nossos rincões touro capaz de resistir ao matador Hernandez, campeoníssimo famoso em todas as arenas do mundo.

Os tabaréus olhavam, o mulherio ria, a meninada se assanhava e todos aguardavam com ansiedade invulgar o dia marcado na tabuleta, um sábado, quando Água Preta veria, pela primeira vez em sua história, uma corrida de touros. Houve até um jornal da localidade que publicou noticiário a respeito, dizendo da importância do evento, que Água Preta se equiparava às grandes capitais como Madri, Lisboa, etc., nas quais eram comuns tais espetáculos. Invocava até o apoio das autoridades do lugar ao empreendimento, inédito para os cidadãos locais.

O Bar do Maçu transformou-se no ponto principal dos comentários. Baé, um crioulo forte, carregador, apostou com Janjão que seria capaz de carregar o touro nas costas. E os palpites choviam. Uns acreditavam na força descomunal de Baé, outros ficavam ao lado de Janjão, descrentes da possibilidade de tal façanha.

Dias antes do espetáculo, o cartaz foi retirado e em seu lugar afixado outro ainda mais convincente, que acabou por tomar conta de todos. A figura bela e esguia do matador Hernandez golpeava a cabeça do touro negro, o sangue escorrendo, as bandarilhas manchadas de vermelho rubro, o animal bufando, os olhos vidrados e, logo abaixo do desenho, um aviso:- “Recomenda-se às pessoas de nervos fracos não assistir ao espetáculo!” .

Foi o fim! A turma chegava a brigar por causa dos ingressos, quase já esgotados. Até o Intendente e família viriam. Banda de música, tudinho. Houve um que, no Bar do Maçu, puxou faca quando lhe disseram que ele não poderia ver:- era de nervos fracos! ... O homem ficou brabo, puxou uma lâmina e por um triz não rasgava o ventre do outro.

Finalmente, o grande dia! À tardinha não se encontrava vivalma nas casas de Água Preta. Todos estavam concentrados na praça da Matriz, defronte ao circo. Bandeirolas voejavam em seu topo, alto-falante irradiava música apropriada, o lufa-lufa era total. Carrinhos de pipoca, pamonha, refrescos, postados nas imediações, vendiam a mais não poder os seus quitutes. Foi o comércio de guloseimas mais farto que Água Preta já tinha visto por ali. A turba acabou com tudo.

O vozerio era ensurdecedor:- quem estava dentro clamava pelo inicio da função, os de fora lutavam para penetrar no recinto. Poucos minutos antes do começo da tourada , chegou o Intendente, acompanhado da mulher e dos filhos.

Adentraram e tomaram assento nos lugares mais confortáveis, já reservados, em camarotes especiais. A grande massa, contudo, se acotovelava nos poleiros, de preço bem mais reduzido e ao alcance de suas bolsas miseráveis.

De repente aparece no picadeiro o apresentador, trajando vistoso uniforme vermelho com botões amarelos, perneiras de couro negro e luzidio.

Fez a clássica curvatura, saudando a multidão, pediu silêncio, raspou a garganta e lascou um palavreado bonito por cima da plebe.

O pessoal gritava, num histerismo louco:- “- Cadê o touro? Queremos o touro! ...” O moço pediu calma, avisou que a tourada seria o ponto culminante do espetáculo, que tivessem paciência, todos sairiam contentes.

E assim começou a função. Números de mágica, truques comuns, de acrobacia e outros, arrancaram as primeiras palmas dos presentes. E logo após, os touros.

Veio o primeiro, um garrote castanho, de chifres curtos e retorcidos. Deu as marradas costumeiras, o toureiro defendeu-se como pode, as palmas choveram novamente mas o pessoal queria o número de fundo.

Após o intervalo, o apresentador entrou no picadeiro novamente. Falou pouco, anunciando apenas:-

“- Senhoras e senhores, aí vem o famoso matador Hernandez! ...”

A cortina se abriu dando passagem ao toureiro, que em movimentos rápidos chegou ao centro da arena. O povo logo o reconheceu:- era o do último cartaz. A vestimenta era a mesma, bem justa no corpo, repleta de lantejoulas. A capa vermelha, o gorro negro, as faces levemente amorenadas, faziam dele um personagem belo, atraente, irresistível. Houve até suspiros na platéia.

Hernandez cumprimentou a multidão, acenando com o seu gorro, demorando-se mais defronte ao camarote da família do Intendente. Seu gesto arrebatou fortes aplausos do povaréu frenético.

E veio o segundo touro! Nigérrimo, aspas afiadas, ventas arfando, cascos raspando o chão numa fúria incontida. Deu algumas voltas pela arena num trote garboso, fitando um a um todos os espectadores das primeiras filas. Mulheres levantaram-se com medo dos olhos do bicho, crianças gritaram, os homens suspenderam a respiração.

Hernandez incitou o animal com a sua capa vermelha. O touro respondeu investindo bruscamente contra o matador que, num passe magistral de balé, saltou de lado no momento preciso do choque. O touro passou perto, deu meia volta, raspou o chão com os cascos, bufou raivoso, veio de novo. Outra finta de Hernandez, novas palmas da platéia. Mais uma investida do bicho, outra saída do toureiro, novo delírio da assistência. E Hernandez foi cansando o animal até que este, resfolegante, parasse num canto da arena, cabeça pendida, músculos trêmulos, corpo molhado de suor.

O matador, então, num pouco caso provocante, deu as costas ao seu antagonista e dirigiu novo cumprimento à platéia. Palmas estrondosas reboaram por todo o circo, gritos histéricos, assobios. Após esses momentos de intensa emoção, um silêncio pairou no recinto:- Hernandez preparou-se para o golpe de misericórdia. De bandarilhas em punho dirigiu-se ao centro da raia e mexeu com o touro. Este lhe veio em cima, decidido, reunindo talvez suas últimas energias, músculos tesos, cabeça baixa, aspas perigosas. Hernandez saltou de banda e, simultaneamente, cravou as espadas no pescoço do touro. Este berrou, dolorosamente, o sangue correu, seus joelhos vergaram e seu corpo caiu, os olhos revirando nas órbitas enormes, as narinas arfando, babando e espumando, no estertor da morte que chegava.

A platéia aplaudiu de pé a coragem de Hernandez, que se curvou solene perante a multidão afoita. Água Preta vibrava! A banda de música repicou logo um dobrado bonito por cima de todo aquele barulho e o pessoal, sorridente e falador, foi deixando devagar o circo.

Baé e Janjão, todavia, pularam pra dentro da arena e foram examinar o bicho. Viram-no de perto. Era, de fato, um touro atrevido e parecia ser mesmo estrangeiro. Cutucaram seu dorso, seus chifres, sua cabeça, buliram com suas narinas ainda quentes quando Baé, repentinamente, ergueu-se e gritou furioso:-

“- Encheram o boi de cachaça, seus chibungos do inferno! Me dá cá meus duzentos mil reis!...”

E no domingo seguinte não houve função, pois naquela mesma noite o circo arribou com todos os seus tarecos, até hoje não se sabe pra onde ...

-o-o-o-o-o-

São Paulo, 11/05/67

OBS:- Reprodução do conto “A Tourada”, do livro “Agua Preta” de Jorge Medauar (exercício de Português, Prof. Abner, turma do 3o. ano de Contabilidade, Escola Técnica de Comercio de São Paulo).

RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 09/10/2009
Código do texto: T1856018
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.