A Viagem da Esperança - da caatinga ao asfalto

A VIAGEM DA ESPERANÇA

Da caatinga ao asfalto

A vegetação adusta da região informava as dificuldades de se viver em lugar tão árido. Contudo ali tinham nascido, era seu cadinho aqui na terra. Aquele sertão significava vida e morte, até para os mais valentes. Piancó no Estado da Paraíba encontra-se a leste de Olho D’Água, fincado no polígono das secas com sua tragédia carregada pelo próprio nome que em tupi significa terror, pavor.

Nossa viagem inicia-se ao redor de 1880 e avança por cinco décadas do século passado, quando a imigração para São Paulo fazia com que os naturais daqui no dizer de Paulo Egydio parecemos hóspedes. No imaginário da época, migrante e imigrante é o que ali está, mas não é membro nem se torna membro da sociedade que o recebe. É aquele que fica na latada de sapé. Neste caso o migrante é um ‘estrangeiro brasileiro’ quer dizer uma pessoa que vem de outra parte do país com outras tradições culturais. Se depara na origem migratória com uma sociedade estamental, ...de desigualdades definidas como “naturais”, de nascença e de origem. Deixemos as fazendas de café com o final da escravidão negra e vamos ouvir a história de Ignácio.

- Sou preto-moreno, campeador de tabuleiro, cantador e filho de minha mãe Catarina, irmão de Quitéria que cansado de tanto sofrer se pôs no mundo na esperança de melhorar.

Lá em Piancó cruzou uma tal de Coluna Prestes que arrepiava o governo por desandanças feitas. Foi-me dito que aqui terra de gente rica, com muita fartura recebia as gentes.

Quando parti, minha mãe da choça de barro se continha pra não chorar.

A terra seca deitava a macamba mirrada que nem boi mandingueiro podia rastrear.

Então com muita tristeza me despedi e disse fortuna vou buscar. Me pus na estrada e não sei quantas léguas caminhei. Fome, sede e frio passei naquelas veredas de mato esturricado a guisa de encurtar.

Com bolhas de sangue nos pés estanquei e pus-me a chorar. Sujeito valente não chora, mas chorei até derramar.

A noite naquela caatinga só zoada dos espíritos que não encontraram lugar onde ficar.

- Dormi.

O dia amanheceu e ainda encorrilhado lembrei-me da Quitéria que àquela hora recolhia sua esteira de palha e a um canto deixava pousar.

A mãe lidava com o fogo e a mana varria o horizonte – quem sabe, me encontrar.

- Sinto no peito tanta agrura que está difícil suportar.

- Bate a saudade, me ponho a caminhar.

Bem lá na frente um caminhão avança e meu desejo é nele assentar.

- Trepe na boléia companheiro – diz o motorista. Longa viagem estás por realizar.

Soberano me pus a cantar, com o vento na cara um abôio fiz soltar.

Venturoso estava, que retas e curvas me fizeram dançar.

A esperança cravada no peito, meus sonhos a realizar.

Longos dias e compridas horas me seguiram no anseio de chegar.

Que mundo estranho via passar.

Vulgos de parecença como a minha, mas de esquisito comportar.

Uma balbúrdia de casas e carros na minha chegada a esperar.

No Brás aportei e na Estação do Norte fui morar.

Com fome e sem dinheiro, me pus a cantar.

A irmandade ajudou.

E inda hoje na rua meu sonho de fortuna sequer adormeceu.

Firme continuo, no propósito de vencer.

De minha mãe, não sei.

De minha irmã, também.

A saudade dói.

Minha sina é a esperança desta viagem acontecer.

- Deixo alguns trocados com o Ignácio, agradeço e dou um pulo na Visconde de Parnaíba, na Hospedaria dos Imigrantes onde um recorte histórico pregado na parede revelava que já existia no final do século XIX os atravessadores de negócios. Literalmente, Os especuladores agiam tanto junto à hospedaria como no centro da cidade. Mesmo nas conduções, os fazendeiros eram abordados e lhes era oferecida mão-de-obra à razão de cinco mil réis por solteiro e vinte mil réis por família. A oferta era acompanhada da advertência de que: ou pagavam essas quantias ou não conseguiriam trabalhadores. Numa outra moldura registrava que no começo dos anos novecentos os italianos representavam 50% da população de São Paulo. A mega presença importunou a tal ponto que Durante uma apresentação no Teatro São José, em beneficio do Hospital Italiano, um grupo de nativistas invadiu o teatro e um gritou “Se há algum brasileiro aqui saia! Queremos acabar com esta canalha de carcamanos!” ...Seguiram três dias de lutas nas ruas, uma ”caça aos italianos”, segundo Brichanteau, “com cruel e selvagem insistência”.

Saio de lá convencido de que o preconceito social e étnico atravessou os salões burgueses da época e continua hipocritamente presente na sociedade contemporânea. De qualquer forma até o paulista é migrante e a literatura conserta: O caipira ingênuo é o esperto oculto, o sábio dissimulado, que na sua ingenuidade prática e conveniente revela os absurdos do que vem de fora, do que é estranho, diferente e estrangeiro.

A repulsa e o estranhamento estão na raiz do ser humano.

Em que contexto abrigamos ou repudiamos o [i]migrante nacional e estrangeiro.

-Bem, essa é uma longa discussão para os acadêmicos da qual não tenho competência para falar. Contudo, posso dizer que o migrante nacional negro aparece separado na contagem populacional simplesmente porque era negro. Nos dias de hoje expressa discriminação, àquela época concepção dominante.

Apesar da liberdade de conduta e costumes presentes no romanesco das novelas e permeadas na sociedade, ainda olhamos de viés atravessado quando um negro casa ou beija ardentemente uma loura fazendo o imaginário popular consumir-se em chamas.

Como não iremos apaziguar as diferenças e tampouco encurtá-las, muitos anos depois encontro casualmente o Ignácio, disposto, cheio de ouros que me diz: tornei-me o rei da embolada, comprei umas terrinhas, algum gado que deixei na observância da mãe e minha irmã, lá em Piancó. Não quiseram se juntar a mim.

A jornada migratória desse barbatão do agreste revela a inquieta necessidade do ser humano de soltar-se das algemas gregárias para aventurar-se pelo ideário de vida na busca da realização do mito pessoal. Sem bilhete, empreende a viagem da esperança na certeza de que nasceu com dote e sina no mundo para cantar.

paulo costa

setembro/2009

*MARTINS, José de Souza. História da Cidade de São Paulo, volume 3, págs. 153/154/155/157/163. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2004.

*NOGUEIRA, Arlinda Rocha. Como São Paulo Hospedava Seus Imigrantes no Inicio da República. São Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros nº 23, pág. 39, 1981. Disponível em: www.ieb.usp.br – Setembro/2009

*Martello de Romano com Ignácio. In: Francisco das Chagas Batista, Cantadores e Poetas Populares, pp. 58-74.

paulo costa
Enviado por paulo costa em 24/09/2009
Reeditado em 29/09/2009
Código do texto: T1828607
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