O SENSEI

O SENSEI

uma lembrança... um momento

A sua figura baixa e monolítica, com aqueles olhinhos apertados exibia um ar severo a caminho do ponto de ônibus. Repetia esse mesmo fazer todos os dias, menos aos domingos e segundas. Despreocupado, costumeiramente calçava meias trocadas, dando ensejo a brincadeiras levadas pelo riso naquelas manhãs frias e escuras de uma São Paulo ainda da garoa. Cursara agronomia na distante terra dos samurais. Por discordar da submissão imposta aos coreanos pelos japoneses, embarca a caminho do Brasil na esteira aberta pelo Kasato Maru. Curitiba no Paraná serviu-lhe de destino e perdas, diante das agruras que um imigrante enfrentava na lavoura, encimada pelo crash de 1929. Nada disso o fez curvar-se, devoto a Deus e às práticas do Budismo trouxe a família para São Paulo. Sua mulher, Dona Sakie, em silêncio acompanhava o marido, sem nada dizer. Não por realce, é costume.

No ônibus a sua presença replicava bom-dia do motorista ao cobrador. O percurso permitia algumas lembranças e lições que a vida impusera.

Aqui chegado, a convite da Federação Paulista de Natação foi trabalhar como técnico no Clube Espéria, situado às margens do Tietê.

- Dizia, Paurinho san, água não cansa, homem cansa. Sinta a água, deslize por ela, não lute com ela. Bambu verga, mas não quebra. Acompanhe o movimento da natureza.

- É o nosso ponto, avisei.

Descemos e fomos a caminho da atlética. Era o meu primeiro dia de aula de natação. Manhã garoenta, mas meu entusiasmo libertava-me das condições ambiente. A piscina toda em mármore localizava-se na AAAOC (Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz) da Faculdade de Medicina da USP.

Uma névoa pedrês envolvia o recinto aquático. Ao fundo e na lateral notava-se um bosque que soltava fumacinhas brancas ao compasso da cantoria dos pássaros.

Os alunos reunidos em circulo realizaram breve aquecimento e tchbum n’água.

- Fiz o mesmo, só que não sabia nadar.

Estava me debatendo quando o cabo do guarda-chuva do sensei foi-me oferecido. Agradecido e um tanto assustado foi-me dado o caminho contíguo à borda da piscina. Vereda dos iniciantes.

Sendo amigo de seu filho caçula, freqüentava sua casa há algum tempo. Apesar da amizade que nos ligava, jamais me convidaram a ingressar no curso, então sob a égide do CEB – Centro de Educação Bandeirantes.

O pioneirismo desse cristão-budista expandiu fronteiras através do conhecimento da natureza humana, explorando virtudes e defeitos, transformando desvantagem em vantagem e vice-versa, na dinâmica da vida, no constante aperfeiçoamento do homem à percepção do que ocorre a sua volta. É o ponto do satori do zen. E mais, "importa vencer o inimigo interno, o adversário nada na mesma raia, dentro de você. Você foi melhor que você, superou você mesmo. Isso é importante". A espontaneidade, o gesto livre, a mão aberta, a camaradagem de respeito ao longo dos anos permitiu que uma cadeia de pessoas notórias como Miroel Silveira, Paulo Eiró, Enos Costa França Mondadori, Charles Corbett e tantos outros - como eu que adicionei shoyu à guisa de café no leite do Nobuo - pudessem dispor de uma perspectiva intimorata de vida. Da distante Oita em que foi salvo das águas do ribeirão à saudade em que nos deixou para encontrar a sua Sakie, lembro Lao-Tsé: "A água não se detém nem de dia nem de noite. Se circula pela altura, origina a chuva e o orvalho. Se circula por baixo, forma as torrentes e os rios. A água sobressai em fazer o bem. Se se lhe opõe um dique, pára. Se se lhe abre caminho, percorre-o. Eis aqui porque se diz que não luta. Não obstante, nada se lhe iguala em romper o que é forte e duro. Uma longa viagem começa com um único passo".

À este formador de homens inda que demore entenderei que "a fazenda é do fazendeiro, mas a paisagem é do poeta". Recorte da memória de um momento junto a Kan-Ichi Sato.

paulo costa

setembro/2009

*Cenni, Roberto, KAN-ICHI SATO-Vida na Água, Pioneira, 1993, p.44-69.

paulo costa
Enviado por paulo costa em 19/09/2009
Código do texto: T1819781
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