O DESPERTAR DA DAMA

O Despertar da Dama

Qual personagem de pintura de gênero, na companhia de seu grudento companheiro e acomodada na poltrona, recordava nesse agosto friorento o aniversário mais significativo de sua vida. Três decênios tinham se passado quando assinaram aquele diploma legal (firula de advogado), anistiando de forma miúda àqueles que se insurgiram contra o regime militar. Os algozes de porão por sua vez sequer foram punidos, tampouco apensados por qualquer outra medida exprobratória. Tudo muito injusto, não posso concordar! Veja, foi o vanguardismo das mulheres que tomou a ofensiva na defesa dos direitos humanos e o leitmotiv que me levou aos manifestos está aqui neste papelucho dobrado pelo tempo que evoca o Burro do Moleiro, mas que na realidade é a minha mais veemente repulsa contra qualquer dominação. O que diz? Vou ler para você.

“Para que a sociedade seja feliz e o povo tranqüilo nas circunstâncias mais adversas, é necessário que grande parte dele seja ignorante e pobre. O conhecimento não só amplia como multiplica nossos desejos (...) Portanto, o bem-estar e a felicidade de todo Estado ou Reino requerem que o conhecimento dos trabalhadores pobres fique confinado dentro dos limites de suas ocupações e jamais se estenda (em relação às coisas visíveis) além daquilo que se relaciona com sua missão. Quanto mais um pastor, um arador ou qualquer outro camponês souber sobre o mundo e sobre o que é alheio ao seu trabalho e emprego, menos capaz será de suportar as fadigas e as dificuldades de sua vida com alegria e contentamento”.(1)

Foi através desse texto que minha consciência despertou para uma nova visão de mundo, mas estava quietinha, até que em BH naquele encontro dos estudantes resolvi falar o que achava de tudo aquilo que estava acontecendo. Acho que gostaram, pois me convidaram a integrar o Movimento Feminino pela Anistia. Conheci então um bocado de gente importante. Lembro-me do Perseu Abramo, Teotônio Vilela, Madre Cristina, Mércia Albuquerque, Iramaya Benjamin, Maria Augusta Capistrano, Ruth Escobar, Therezinha Zerbini e muitos outros. Protagonistas que ajudaram a derrubar o mito do colonizador, rebatendo em todas as frentes a investida odiosa daqueles safos manipansos do poder. Estranhas palavras reconheço, mas não se esqueça que tenho noventa e três anos. Nos meus anos de escola peguei ainda um restinho do Humanismo e como vês ainda faço uso. Conheci muitos episódios de conflito político a partir das revoluções de São Paulo nas décadas de 20 e 30, a segunda guerra mundial e a nefasta ditadura militar. Submeter-se aos caprichos impositivos por aqueles que tomaram o poder é negar minha cidadania. Bolas! Não nasci por decreto-lei. A tortura praticada contra os presos foi brutal, as armadilhas engendradas pela policia, com escutas e agentes disfarçados traçaram a estratégia do amordaçamento democrático. O passaporte do desterro, do banimento garantiu aos despachantes oficiosos excelências figuras do mundo intelectual, artístico, e político. Os que cá ficaram se alinharam nos corredores clandestinos de ajuda incentivando a luta pela retomada das liberdades cassadas. Tornei-me uma humanista de caráter socialista, tendo como capital mais valioso o ser humano. Ingressei no Partido dos Trabalhadores e a decepção foi confirmada por Francis Bacon que escreveu: “Os homens professam, protestam, comprometem-se, pronunciam grandes palavras, para depois fazer o que sempre fizeram. Como se fossem imagens mortas, instrumentos movidos exclusivamente pelas rodas do costume” (2). Apesar do costume ser uma conduta inercial, habitual e induzida não me dou por vencida. Não preciso de reconhecimento, só não posso me descuidar. A Eclea Bosi tem razão quando diz que: “um dos mais cruéis exercícios da opressão é a espoliação das lembranças”. E destas eu tenho que cuidar. A liberdade é o protocolo fundamental para a constituição de uma vida plena. As escolhas de rumo são suas e o Memorial da Resistência encafuado na cave das agonias acorda os atores da alforria acautelando os demais que ainda há muito por se fazer.

- Venha meu amiguinho, é hora!

- Adeus Helena Greco. Muito Obrigado.

paulo costa

agosto/2009

(1) E.P. Thompson, Costumes em Comum, Companhia das Letras, 3ª reimpressão, p. 15.

(2) Ibid., p. 14