A PERSONAL

A PERSONAL

“Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos”

Fátima Irene Pinto

Guardou a faca e ainda zonza da noite mal dormida – levantou-se da cama. A rotina de sua vida se repetia. Todos os dias a mesma coisa. Tomou um gole de café vencido, de agasalho ganhou a rua. A manhã fria fazia com que se encolhesse como quem procura abrigo, temendo todos os medos da sua solidão construída. Morava havia alguns anos naquele bairro central, conhecia muitas gentes que nada significavam. Todos preocupados com seus botões, inclusive Da. Arminda que tocava a loja de armarinho da praça. Em bom português comércio de capelista. Que adiantava ganhar tanto dinheiro, poder comprar todas as roupas que desejasse e até um carro de marca, se aquela angustia, aquele sofrer só não ia embora.

- Caracas! Que satisfação tinha?

- A tristeza de retornar a noite, na sua companhia e dispor-se enconchada naquele preguiceiro comprado em longas prestações.

Próxima do belveder da Higienópolis cumprimentou com huum o jornaleiro e tomou a descida rumo à casa da Sheilah, a primeira aluna do dia. O amanhecer ainda não tinha se livrado do manto da noite e do salão do prédio podia ver o acordar das luzinhas, bulindo com a geometria dos olhos em fragmentos de luminosas reticências. Gostava desses momentos, lembrando de sua infância quando apontava para o céu a contar estrelas. A mãe severa obrigava a menina a cumprir todo o amaldiçoado cordel de uma boa dona de casa. Não se arrependia de ter aprendido, embora preferisse jogar bola com os meninos e subir em árvores. Muito distante e próximo a esse tempo, a marca do abuso sexual sofrido jamais se apagara. A porta abriu-se e o simpático Fred com suas orelhas de abano resvalando o chão surgiu.

- Olá Fred!

- Venha cá menino.

Convencido pelo afago deixou-se ficar.

Cativo das caricias exibiu sua bela barrigona.

Sheilah observava o ar triste de sua personal trainer, suas delicadas mãos pequenas, a sua morenidade revelava contida relação, submissa ao protocolo social. Pouco ou nada sabia a respeito dela. Não era dada a revelações, zelava por uma conduta gentil e ao mesmo tempo se defendia dos convites que as pessoas habitualmente fazem, após estreitarem certa familiaridade. A tal ponto, que apesar dos anos de relacionamento declinou de todas as ofertas. Já estivera em seu apartamento e caprichosamente utilizou a entrada de serviço. Desenvolvia seu oficio de forma eficaz, com exemplar disciplina. Não se acomodava, mesmo doente cumpria com as aulas e horários estabelecidos. Dependia do seu corpo o sustento da vida. Em algum momento dormira num banco de jardim. Sua memória habilitava o momento e escondia os cacos do passado. Este só servia de atrapalho. Tinha namorado por cinco anos o filho de uma proeminente atriz do teatro. Nada restara, continuava sozinha na sua solidão. A depressão costurada de melancolia a levava por sombrias alamedas onde o desespero de existir era insuportável. Sufocada, cometia imprudências. Se perdia em intimidades de rua, sua estima refletia no excesso das compras supérfluas, comprometendo cada vez mais uma conduta de vida. Desgarrada de si, aventurava-se pela escoria encontrada. Arrependida, prometia tomar novo rumo. Faltava-lhe chão que pudesse pisar. Aturdida, com medo, trabalhava intensamente. Como conseguira aceitação na colônia judaica era um mistério. Sabia-se que tinha sido monitora numa academia das proximidades e uma das freqüentadoras dela se agradou, convidando-a a dar aulas particulares, tão em moda àquela época. Sendo figura de destaque na comunidade recomendou às suas amigas os serviços de sua protegida. De comportamento moderado, sabia lidar com os cochichos aleivosos de suas clientes. Não raro cabia-lhe o papel de ouvir confissões e desabafos daquelas senhoras que envolvidas com ações na sinagoga e por vezes com o próprio rabino, de tudo sabiam e fuxicavam. Nos bastidores de tudo se falava, até do brilho de alguns costumes por falta de asseio. Mas, sua grande batalha era travada ao cair da noite quando atendia seu ultimo apontamento e propositadamente protelava a volta para casa. Ocupava-se em examinar as vitrines das lojas, lambiscar algum salgado na Aracaju e depois enfrentar o desterro que sentia. O sentimento de auto comiseração alongava a tristeza, as lagrimas surgiam numa convulsão deixando-a extenuada, exangue, parecendo-lhe ser a única habitante da cidade a sofrer. Será que ninguém percebia isso? Lutava a seu modo para se reencontrar. Frustrada desejava a morte, mas tal não acontecia. O desespero a possui e da janela do seu pequeno apartamento testemunha a solidão plural da cidade. Faz-se silêncio.

Nesse exílio insular toma a faca guardada fechando a porta do quarto.

paulo costa

agosto/2009

paulo costa
Enviado por paulo costa em 27/08/2009
Código do texto: T1776912
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