Eu entendo os solitários

O mundo está cheio de pessoas incompreendidas.

Pessoas cujas inaptidões para algumas atividades sociais as relegam a um segundo plano na percepção dos outros. Essa gente é mais distingüível entre professores. Digo isso porque, sempre que tenho um que a unanimidade burra tacha de mal-comida/mal amado, esquisito, frustrado, anti-social, maltrapilho e outros petardos supérfluos, eu me coloco no lugar dessa gente.

Porquê? Porque, em vários momentos específicos de minha vida besta, fui amplamente assolado por um aspecto ou outro. Todos provenientes da solidão, companhia essa que confere hábitos peculiares (pelo menos na visão dos que sempre se sentem acompanhados). Todos que, em maior ou menor grau, me acompanharão para sempre.

A introspecção gera uma individualidade que as pessoas desdenham. E que não entendem: o que é desleixo para elas, por exemplo, para um solitário é um aspecto de seu ser que não tem importância. Como um membro do corpo que não se usa, é assim aos poucos que as peculiaridades dos solitários vão surgindo. De novo, isso se torna proeminente em professores porque é uma profissão de grande exposição. Em qualquer outra posição profissional, o solitário se camuflará com facilidade.

Como professor, não: nunca lhe faltará legiões de gente julgando-o.

Já ouvi todo tipo de comentário a respeito de professores peculiares. E todos eles, por vezes diretamente constrangedores, em algum nível se aplicavam a mim. Por exemplo: uma professora cuja vida pessoal ninguém conhecia, sempre vinha com os mesmos pares de sapatos e era tão sistemática que a escola em que eu estudava na época, em má fase e paparicando os mimados com medo de perder aluno, se antipatizava com ela pelo simples fato de não estarem dispostos a estudar tanto quanto o conteúdo -- responsavelmente por ela repassado -- exigia. Outro exemplo: um professor de cálculo de quem estou tendo aulas no momento, ridicularizado por insinuarem ainda morar com a mãe e por usar em excesso um certo adjetivo para tentar convencer a gente da facilidade de sua matéria. Esse último tipo de comentário é comum; alunos são seres desprezíveis que estão constantemente a buscar fraquezas nas pessoas que se empenham na inglória tarefa de lhes orientar ao aprendizado. Encerrando por aqui as linhas gerais a respeito do assunto, partamos pra abordagens mais particulares:

* Fazendo uma observação dos elementos que normalmente levam as pessoas a segregar a individualidade dos solitários, o que temos? Pra começar, temos a sondagem alheia a respeito da vida sexual que se resume ao maldoso bordão "mal-comido". Que forma mais simplista e impúbere de pensar! Nossas convenções sociais tentam nos esquivar do constrangimento de nos submetermos a interpretações tribais (com conceitos como o do macho-alfa), mas isso acaba sendo inevitável. Toda uma evolução das espécies pra quê? Pra neguim ficar querendo comparar o desempanho sexual do cara como se isso fosse uma espécie de esporte clandestino envolvendo a auto-estima alheia? Porra, inventaram o dinheiro pra isso hoje em dia, seus merdas! Não é à toa que o infame pedaço de papel é carregado de tanta agressividade psicológica até hoje...

* A excentricidade, marca registrada de uma instrospecção forçadamente trabalhada por solidão compulsória, se configura em pequenas manias geradas por impulsos psicomotores dos quais não tenho leitura suficiente pra detalhar aqui. Deixando esse aspecto de lado, temos a excentricidade aplicada a roupas, ao idioleto do solitário, à forma como ele raciocina e pensa o mundo, e por aí vai. Normalmente, esse tipo de curva ante o que se denomina normalidade na personalidade duma pessoa não afeta diretamente as breves relações imediatamente sociais dos solitários. Mas há casos em que a pessoa, abatida pela dificuldade de se sentir ouvida, fala em excesso mesmo quando nada tem a dizer. Essa é da mais irritante espécie de excêntricos, porque transborda vários insumos inúteis de seus processos mentais devido à ausência de trocas lingûísticas reciprocamente voluntárias.

* A frustração é não raro fonte de julgamento maldoso dos a redor do solitário. Atribuem ao insucesso dele, em algum aspecto de sua vida, o surgimento duma suposta lacuna cujos processos mentais tentam em vão suprir e que, por conseguinte, se deixam notar por negativos traços de personalidade. Condições de felicidade que não foram devidamente atendidas na juventude, requisitos de ambição ou sensação de satisfação: quaisquer que sejam as carências do solitário, toda sua personalidade será julgada por isso, por meras lacunas. Eu tenho medo dos simplificadores...

* A vontade de se comunicar nunca é vinculada à capacidade de fazê-lo, quando os críticos do solitário mostram suas linguinhas de cobra pra soltar o veneno. Mais fácil tachar o sujeito de anti-social, mesmo. Como se se comunicar fosse uma gorjeta pela atenção que se recebe das pessoas a seu redor. Essas nunca estarão preparadas para entender o universo do solitário, esse vácuo que clama por uma combinação de interesses rara de se obter no outro.

* Por maltrapilho, me refiro à forma como um solitário se veste. Este desapego à própria aparência é outro elemento que outrem não compreende. Estes podem afirmar que certas mudanças na vida do solitário, como encontrar um amor, obter conquistas importantes ou conhecer pessoas especiais, podem fazer com que uma esquecida auto-estima seja reanimada. Sim, é possível. Mas o contrário também é: há uma legião de pessoas a seu redor, sem grandes guinadas na vida, que simplesmente mergulham vários fatores de seu ser numa pastosa letargia pra conseguirem levantar da cama no dia seguinte, guardar questionamentos existencialistas num lugar fácil de se esquecer, e tocarem a vida com metas cartesianas o suficiente pra não passarem pelo medo de se desiludir com a aparente proximidade de alguma mudança em suas vidas. No final das contas, o visual do solitário é uma parte de seu ser fossilizada. Uma amostra de sua agridoce razão de viver.

Dom Casmurro
Enviado por Dom Casmurro em 23/02/2009
Código do texto: T1453863
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