A importância do leitor

Sem o leitor, a literatura não se realiza, mas destina-se a ser mero amontoado de palavras que nada comunica, desprovida de qualquer mérito ou significado. Mas esta não é uma opinião unânime, pois o tema divide os teóricos, colocando-os em duas extremidades: de um lado aqueles que valorizam o leitor, colocando-o em lugar privilegiado, e de outro, os que o ignoram, defendendo a idéia de que a obra literária é autônoma, portanto se realiza por si só. Mallarmé (in COMPAGNON, 2001, p. 140)* , em estudo a respeito da negação ao leitor, comenta: “O livro, a obra, cercados por um ritual místico, existem por si mesmos, desgarrados ao mesmo tempo de seu autor e de seu leitor, em sua pureza de objetos autônomos, necessários e essenciais”. Assim, a obra literária não reivindica nenhuma identificação e não pretende expressar nada.

Também defensor da obra literária como auto-suficiente, e problematizando a presença do leitor está Richards, que afirma ser a má compreensão e o contra-senso na leitura um problema do leitor, e esse problema só pode ser resolvido com a educação: “esta lhes daria acesso à possibilidade de uma compreensão plena e perfeita de um poema.” (in COMPAGNON, 2001, p. 142). É pela educação, segundo o crítico, que o leitor aprende a ler mais cuidadosamente, superando suas limitações culturais e individuais. Tal afirmativa corresponde a ignorar a necessidade de uma hermenêutica que pesquise a má compreensão e o contra-senso, colocando a leitura rigorosa e objetiva suficiente para corrigir os erros habituais.

Essas tentativas de ignorar o leitor, considerando-o peça avulsa da arte literária, devem-se em grande medida pelo entendimento dos teóricos de que o leitor detém um caráter empírico, cuja capacidade de interpretação é limitada. A leitura maltrata o texto ao adaptá-lo ao entendimento do leitor, pois este aplica aquilo que lê à sua situação particular, o que causa constrangimento ao autor em relação ao seu texto. A respeito dessa tese Compagnon (2001, p. 144) comenta: “O leitor é livre, maior, independente: seu objetivo é menos compreender o livro do que compreender a si mesmo através do livro; aliás, ele não pode compreender o livro se não se compreende ele próprio graças a esse livro.” Assim como o autor é livre para lançar mão de suas idéias na construção do texto, o leitor também o é para compreender tais idéias, o que presume a necessidade de convivência pacífica entre ambos, pois se não há um, impossível será a existência do outro. O referido autor, citando Ingarden, analisa:

o texto literário é caracterizado por sua incompletude e a literatura se realiza na leitura. A literatura tem, pois, uma existência dupla e heterogênea. Ela existe independentemente da leitura, nos textos e bibliotecas, em potencial, por assim dizer, mas ela se concretiza somente pela leitura. O objeto literário autêntico é a própria interação do texto com o leitor. (COMPAGNON, 2001, P. 149).

Portanto, de acordo com Ingarden, o leitor é aquele que concretiza a existência da obra literária, pois é ele quem preenche as lacunas implícitas no texto. Quando exercita a leitura, traz consigo certo grau de compreensão antecipada, fundamentada em suas experiências adquiridas em leituras e obras anteriores. Tal concretude se realiza a nível de cada leitor, pois cada um tem seu modo particular de completar o que não foi explicitado pelo autor. O que não fica claro neste posicionamento é até que ponto o texto pode permitir a interferência do leitor nesse preenchimento de lacunas, que tipo de controle o texto exerce sobre as normas e valores próprios de cada leitor.

Semelhante posicionamento sobre o leitor encontra-se em Iser, que entende ser o texto um dispositivo potencial, cuja realização cabe ao leitor por meio da sua interação. Haveria, segundo o crítico, um leitor implícito imposto pelo leitor real, que permite a este compor o sentido do texto. Iser (apud COMPAGNON, 2001, p. 151), afirma que o leitor implícito:

encarna todas as predisposições necessárias para que a obra literária exerça seu efeito – predisposições fornecidas, não por uma realidade empírica exterior, mas pelo próprio texto. Consequentemente, as raízes do leitor implícito como conceito são implantadas firmemente na estrutura do texto; trata-se de uma construção e não é em absoluto identificável com nenhum leitor real.

O leitor implícito é, portanto, as instruções do texto, a estrutura que permite ao leitor real imaginar os personagens e acontecimentos, aplicar sua própria compreensão às descrições e narrações, perceber os elementos dispersos que se juntam coerentemente na realização da leitura.

Mas esta aparente liberalidade concedida pelo texto pressupõe essencialmente a leitura realizada pelo leitor ideal, que mais se aproxima de um crítico culto. Sobre a atuação do leitor implícito, Compagnon (2001, p. 154) comenta: “A hipótese implícita é que, diante de um romance moderno, cabe ao leitor informado fornecer, com a ajuda de sua memória literária, algo com que transformar um esquema narrativo incompleto numa obra tradicional”. Assim, tal leitura se restringiria ao romance dos séculos XVIII e XIX, excluindo o romance pós-moderno, muitas vezes desestruturado e fragmentário, cuja busca de coerência não encontraria lugar no paradigma do leitor implícito.

Outro posicionamento, em alguns pontos semelhante ao de Ingarden, tem Jauss em relação à recepção da literatura. Ao contrário da tradição, ele não concorda com uma literatura de significação única, que pressuponha a mesma experiência clássica nos dias de hoje. Ele quer compreender como se apreciou e se aprecia uma obra de arte em momentos diversos de realidades históricas diferentes. O crítico se declara convicto de que a experiência relacionada à arte não pode ser privilégio dos especialistas e que a reflexão sobre as condições desta experiência tampouco há de ser um tema exclusivo da hermenêutica.

Uma obra não se apresenta nunca, nem mesmo no momento em que aparece, como uma absoluta novidade, num vácuo de informação, predispondo antes o seu público para uma forma bem determinada de recepção, através de informações, sinais mais ou menos manifestos, indícios familiares ou referências implícitas. Ela evoca obras já lidas, coloca o leitor numa determinada situação emocional, cria, logo desde o início, expectativas a respeito do ‘meio e do fim’ da obra que, com o decorrer da leitura, podem ser conservadas ou alteradas, reorientadas ou ainda ironicamente desrespeitadas, segundo determinadas regras de jogo relativamente ao gênero ou ao tipo de texto. (CEIA, E-Dicionário de termos literários apud JAUSS, 1970, p.66).

Disponível<http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/H/horizonte_expectativas.htm. Acesso em 19/11/2008.

Para o crítico, uma obra de arte literária só seria efetiva, concretizada, quando o leitor a legitimasse como tal, relegando para plano secundário o trabalho do autor e o próprio texto criado. Para isso, seria necessário descobrir quais as expectativas que envolvem essa obra, pois todos os leitores, em virtude de estarem condicionados por outras leituras já realizadas, vêm para o texto esperando encontrar certas regras com as quais seu espírito já está familiarizado. Isso seria o horizonte de expectativas do leitor atuando como a memória literária adquirida em outras leituras e aquisições culturais anteriores.

Assim, parece não haver possibilidade de equilíbrio, dentro da teoria, entre os elementos da arte literária. Ora o leitor é ignorado em favor da supremacia do texto, ora é colocado como o centro, deixando o autor e o texto em lugar insignificante. Contudo, a experiência da leitura, para a qual não há necessidade da radicalização teórica, é também ambígua, na medida em que se envolve entre o compreender e o gostar.

* A bibliografia completa encontra-se ao final do texto "Conclusão".