Relato da Peripatéia Teológica
Segunda multiplicação dos pães
Marcos 8:1-9
1 Naqueles dias, novamente uma grande multidão se ajuntou e não tinha o que comer, por isso Ele chamou os discípulos e disse-lhes: 2 ”Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias que está comigo e não tem o que comer. 3Se os mandar em jejum para casa, desfalecerão pelo caminho, pois muitos vieram de longe.” 4Seus discípulos lhe responderam: “com poderia alguém, aqui no deserto, saciar com pão a tanta gente?” 5Ele perguntou: “Quantos pães tendes?” Responderam: “Sete”. 6 Mandou que a multidão sentasse pelo chão e, tomando os sete pães, deu graças, partiu-os e deu-os aos seus discípulos para que eles os distribuíssem. E eles os distribuíram à multidão. 7 Tinham ainda alguns peixinhos. Depois de os ter abençoado, mandou que os distribuíssem também. 8 Eles comeram e ficaram saciados. Dos pedaços que sobraram, recolheram sete cestos. 9 E eram cerca de quatro mil. E então os despediu. 10 Imediatamente subindo para o barco com seus discípulos, partiu para a região de Dalmanuta*
*Nome de localidade desconhecida; ou talvez, transcrição de expressão aramaica mal identificada.
FONTE: Bíblia de Jerusalém
Edição de 2002, São Paulo, Edições Paulinas
Direção Editorial: Paulo Bazaglia
Rosália Cristina
Não basta a estrada, as motivações e a organização para protagonizar-se numa peripatéia. É necessário sentir-se humano, credor de conhecimentos, necessitado de novas imagens e de diferentes concepções. E como humano tal, fazer-se paralelepípedo de calçadas, areia de caminhos, concreto de vias, de forma a constituir-se como objeto de alcance do outro. Caminhar em busca de um conhecimento exigia dos filósofos aprendizes a paciência para acompanhar os passos do Mestre, a sapiência para escolher o momento exato da reflexão e a sensatez para indagar no momento em que a resposta seria, pelo traçar dos passos, plena de assertividade. Exerciam, pois, a peripatéia – a busca do conhecimento através de caminhadas.
Todo ser humano é um contínuo peripateico e, embora o seja, não se percebe muitas vezes, como assim deveras. É necessário um traçado mais evidente em sua vida para fazê-lo perceber-se dessa forma. O diferencial de quem entende o traçado evidente é a consciência do ser peripateico, o que o torna mais sensível às visões da estrada. Para atingir essa sensibilização – necessária para que você continue a ler minhas considerações – lanço-lhe ao esforço literário da Peripatéia Teológica, realizada aos 18 dias, do 5º mês, dos 2008 anos de Cristo.
Manhã chuvosa, daquelas em que o corpo parece agarrar-se à cama e esta, com um afago, oferece-lhe lençóis e travesseiro aquecidos. Manhã do despertador ativado no celular, da vontade de ligar para os amigos a fim de confirmar o evento peripateico, do quebrar da nota única da chuva, pelo mesmo celular, indicando um amigo que conseguiu desvencilhar-se da cama. Uma luta!!! Consciência e corpo. Curiosidade e resignação. Sob outros tetos, entretanto, a peripatéia já iniciara. A preocupação com as horas que virão dá o primeiro proveito: a oportunidade de amar ao próximo como a si mesmo, através da preparação dos pães e dos peixes, parafraseando o versículo bíblico que abre esse instrumento de lembranças.
Pouco a pouco, a chuva se dispersa e os peripateicos chegam. E como sempre, ávidos (embora não tenham certeza disso!), fazendo-se areias, paralelepípedos, concretos. Após terem balbuciados uns “bons dias”, frutos do novo e do imprevisto, acontece a partilha do alimento. A Peripateia já acontecia nos olhos tímidos, nos sorrisos despojados, nas bocas famintas, nos corpos cenográficos e na sincronia do grupo que se deixou registrar em fotos, vídeo e, inconscientemente, nessas linhas que lhe desnuda. Desnudamento prazeroso, não de corpos, mas de seres humanos que se propuseram a ser areias, paralelepípedos e concretos de uma estrada de conhecimento.
No caminho para Olinda, o primeiro local de visitação foi o Templo Budista Fo Guang Shan; a seguir, visitamos a Igreja da Sé e o Terreiro de Candomblé Nação Nagô. Em Recife, visitamos o Centro Islâmico e o Judaico.
Mas, diferentemente de outros relatos, não descreverei as curvas traçadas no caminho, descreverei aqueles que as circundaram: grupo formado a princípio pela turma de Licenciatura em História, da Universidade Católica de Pernambuco, que receberam com o afeto silencioso de um primeiro olhar, alunos do Curso de Letras, Arquitetura, Fisioterapia, Direito, Informática e Ciências Contábeis além de professores da área de Teologia e Noviços Jesuítas, totalizando 40 pessoas. Turma que não conhecia os outros e se aventurou numa peripatéia construindo diálogos múltiplos, possibilidades infindas, descobertas que impressionam. Os receios se tornaram evidentes, mas a luz que a estrada proporcionou trouxe-lhes novos anseios e indagações.
A Peripatéia Teológica mais que um momento de aprendizagem, fez-se um momento de comunhão:
Comunhão da natureza com o que o homem criou, comunhão de passos (seguros, firmes, lentos, rápidos, tresloucados, medidos, fora da estrada), de mãos (que se apóiam, se revelam, apontam, insistem, organizam-se), de olhos (que buscam, meditam, confrontam, observam), de sons (das vozes, dos ventos, dos pensamentos, dos passos). Comunhão sincrônica de um passado próximo nas lembranças de cada um.
Essa imagem, não ocasionalmente registrada, marca o início do momento mais sublime daquele dia: a 2ª partilha dos pães. Aquela estrada de duras pedras, aquecidas pelo sol, não do deserto bíblico, mais do litorâneo de nossos passos levou-nos a uma praça. Todos, cansados, sentaram-se em bancos da praça que, satisfeita, empresta o tronco de suas árvores e os rodapés de seus limites. Momento sublime porque honrados somos em reviver, no nosso momento teológico, um dos momentos bíblicos mais significativos do poder divino diante dos homens.
Naquele momento éramos a multidão; estávamos juntos não há três dias, mas em três lugares; se não nos alimentássemos, desfaleceríamos no caminho, pois tínhamos vindo de muito longe; alguns inocentes, incrédulos, duvidavam da existência do pão; comemos do pão distribuído até ficarmos fartos; do que sobrou, foram recolhidos cestos e feitas doações a outra multidão que nos observava ao longe; e, numa última comparação, seguimos à região desconhecida: Templo Islâmico, no Recife. Se a Peripatéia ali se encerrasse, dava-me por completado o caminho. Já atingira o conhecimento que o Mestre sequer propusera e ouvira, num redemoinho de vozes, as respostas às perguntas que sequer faria. Mas os demais necessitavam ainda concluir a estrada. E sentindo as mãos seguras, segui o grupo.
O Recife nos recebeu calorosamente, tal qual Olinda, banhando nossos olhares com águas azuis – reflexo do divino que estava em nós. Cidade do mar, Cidade do rio – passos entre ladeiras, passos sobre pontes que levam às curvas de estreitas ruas. Ruas do silêncio (ruidoso, na memória dos mais sensíveis): cadê os camelôs com seus jargões? Cadê o trânsito com seu ruído de pneus no asfalto e buzinas falantes? Cadê os passos rápidos dos transeuntes apressados e os lentos dos transeuntes exaustos? Que cidade é essa?
- BOCA DE FORNO!!!
- BOLO!!!
- ABACAXI!!!
- XI!!!
- SE O REI MANDAR?
- JÁ FUI!!!
- SEU REI MANDOU DIZER QUE... QUE... QUE TODOS VOCÊS LEVEM ESSE PESSOAL ATÉ O FINAL DA RUA!!!
E batem em disparada! Meninos do asfalto...
Que mais a Peripateia poderia exigir do desconhecido? Foi recepcionada por um rei, dignificado por fiéis súditos, do Reino mais importante de nossas vidas: o Reino Infantil. Cada menino me foi a imagem do menino Jesus, em descrições bíblicas de minha imaginação. E cada força de corrida nos levou ao nosso último ponto de visitação.
Se não por mera propositalidade do ciclo, o fato é que concluímo-lo com um cunho histórico, onde o passado se fez surgir no presente e toda história fundiu-se no propósito da criação e emancipação do homem em nossas terras. Saímos do rasgo de uma rígida doutrina, da qual humildemente somos “analfabetos”, para o encontro arquitetônico com as raízes de nossos antepassados.
Encerrando o ciclo peripateico, em grupos, envoltos ao cansaço, à satisfação e às lembranças fugazes do tudo que tínhamos vivido naquele domingo, despedimo-nos com a troca de sorrisos, as falas, os olhares, os acenos, os emails, os nomes, os valores, os afetos conquistados, o recolhimento do aprazeramento do dia e a força para, tal qual o início, fecharmos o ciclo individualmente, mas não com nossas individualidades impostas, e sim com o coletivo ainda nos cercando: aprendizado primo de toda essa estrada – Amai-vos uns aos outros, assim como Eu vos amei.